A VIAGEM DE CHIHIRO

Ela nunca quis se mudar. Não havia um único dia que não pensasse em voltar para sua cidade, que não calculasse mentalmente como seria abandonar seu emprego, juntar tudo no pequeno carro e partir de volta para a rua em que nasceu, pra perto da sua família, dos antigos amores, daquela maldita cidade em que todos sabiam seu nome e que apesar de ter muitos motivos para odiá-la, continuava sendo insuportável não estar nela. Ela chegava a ensaiar um discurso de demissão, verificava se poderia sair do contrato de aluguel. Porém sempre que tentava pôr o plano em prática, a chefe dizia que iria aumentar o seu salário, sua inquilina lhe entregava caixas de biscoitos e chocolates em troca na sua permanência e, sufocada em gentilezas, ela acabava adiando seu movimento de romper com aquele novo mundo. Afinal era muito nova para abrir mão de uma nova oportunidade de emprego como aquela. Todos lhe diziam que jovem como era – bonita até – ela deveria ser grata por ter um emprego com salário tão bom, mesmo sendo numa cidadezinha que ninguém sabia o nome. Logo, se deparava outra vez com mais uma noite deitada entre as cobertas do seu pequeno novo apartamento com uma dor inexplicável em seu peito, decepcionada por sua incapacidade de defender seus próprios interesses. O mundo parecia sempre dar um jeito de jogá-la na direção contrária do que seu coração queria, e ela parecia cada vez mais fraca e incapaz de nadar contra corrente. Logo, adoecia cada vez mais seu pobre coração e sua capacidade de desejar verdadeiramente as coisas, sentindo-se mais como uma jovem cordeira, idiota e dócil, que só sabia seguir o rebanho, só fazendo barulho quando lhe era permitido e sonhando com o dia do abate. Volta e meia, se pegava pensando coisas do tipo. Como que desejando que uma doença terrível a tornasse inválida para seu trabalho, ou mesmo um acidente horroroso que não deixasse outra alternativa que não mandá-la pra perto dos seus pais, pros cuidados de uma cidade maior, ou qualquer escapatória do tipo. Mais de uma vez se pegou dirigindo com seu pequeno carro tarde da noite, passando por postes e muros e fantasiando que dirigia contra eles a toda velocidade. Depois se sentia esquisita e patética e voltava para casa.

Com o passar do tempo e da constatação que não iria embora tão cedo, ela nem mais ligava para família ou amigues. Demorava dias para retornar suas mensagens. Começou a torcer para que a esquecessem, facilitando aquela separação dolorosa. Na esperança de que dessa forma sua saudade poderia se transformar numa raiva amarga até eventualmente desaparecer. E com o novo esforço em ser distante e desagradável, as ligações e mensagens diminuíam gradativamente. Quando veio a pandemia, a cidade fechou sua hospitalidade aos turistas e ela se resignou à ideia de que estava mesmo presa lá. De que seria melhor assim, incapaz de transmitir o vírus para ninguém que realmente amasse. O prefeito colocou viaturas nas fronteiras, o que deveria fazer com que se sentissem mais segures, mas ela tinha quase a sensação de que – no contrário – as viaturas eram uma forma de impedir que fosse embora. Tinha sonhos em que tentava sair de carro e era cercada por policiais com rostos pálidos, baba espessa, zombando dela e a arrastando violentamente de volta para casa. Ou pior, às vezes sonhava que sua própria chefe aparecia na estrada escura a noite, com olhos flamejantes de ódio, e abria duas enormes e assustadoras asas, fazendo inúmeras e sanguinolentas ameaças para que retornasse para casa e abandonasse de uma vez a ideia estúpida de partir. Ela acordava suada, uma vez até – pra sua imensa vergonha – mijada, apavorada e constrangida. Sentindo-se ainda menor e indefesa às circunstâncias. Logo ia trabalhar, com a mesma cara de sempre, a fazer as mesmas tarefas de sempre, ouvindo elogios dos colegas que afirmavam: “desse jeito você vai ser grande aqui, ter uma longa e promissora carreira, morremos de inveja do seu potencial”. Ao que ela respondia sorrindo, sem acrescentar mais nada. Ouvindo a palavra “longa” ecoar e ecoar feito uma sentença. Uma sentença repetida e repetida incansavelmente.

O fechamento do prefeito funcionou tão bem, que os casos na cidade eram pouquíssimos e ela podia trabalhar na empresa em dias alternados, com testes e baixa no número dos funcionários. O que ela até gostava mais do que ficar em casa cercada de fotos e memórias da sua antiga vida. Ali, tinha às vezes a breve sensação de esquecer quem era, de ser absorvida pelas conversas idiotas nos corredores, pelo barulho das máquinas de expresso, pelo riso gostoso da secretária que flertava com o gerente. Alguém começou a levar pães caseiros que cheiravam muito bem e davam uma sensação de acolhimento quando comidos ainda quentes. Os pesadelos diminuíram, eram mais curtos, ela nem chegava à fronteira da cidade. Às vezes, via apenas os olhos flamejantes brilhando na escuridão, sem dizer nada. Ela se convencia que sua saúde mental deveria estar se restabelecendo. Fez até uma tímida amizade com uma colega de trabalho que agora lhe dava carona todos os dias nas idas e voltas pra casa, livrando-a da necessidade até de dirigir melancolicamente sonhando com as estradas. Sinais de progresso, aparentemente. Nem ela, nem você que está lendo, poderiam em tais circunstâncias suspeitar de outra coisa se não de que ela se recuperava de uma estranha síndrome nervosa ou terror noturno. Ninguém em sã consciência pensaria que os seus sonhos poderiam ter de fato acontecido, ou mesmo pensaria em verificar que agora – com a nova e diária carona – o seu carro esquecido na garagem tinha os quatro pneus estranhamente furados. Muito menos poderia supor que todos os dias enquanto trabalhava, as fotos de sua família e amigues eram substituídas – uma a uma – por fotos suas ao lado de pessoas que desconhecia completamente e que por isso lhe causavam menos e menos angústia, saudade, desejo. Não são coisas que você ou ela perceberiam assim tão facilmente ou mesmo conseguiriam comprovar que estavam de fato acontecendo sem serem internades numa clínica psiquiátrica. Não, para isso é preciso algum outro movimento extraordinário.

O final de semana chegou, ela estava outra vez entre as cobertas desde o final da tarde. Agora tinha uma enorme televisão no seu quarto. O sinal não pegava muito bem, mas conseguia ver filmes baixados pelo computador. Maratonava sequências e sequências de filmes e séries até cair no sono. Assim eram agora seus finais de semana. Não conseguia ainda se animar de ir beber na casa da sua nova amiga, mas se afundar no mundo das ficções lhe era prazeroso o suficiente. Estava lá, quase adormecendo diante do ruído na televisão. Nem mesmo sabia mais o que estava assistindo quando ouviu um barulho alto na sala. Móveis caindo, algumas coisas quebrando. Levantou assustada e teve medo. Muito medo de se deparar com um violento assalto sem ter muito o que entregar e pensou que talvez fosse melhor fingir que estava dormindo ou se esconder e deixar que os ladrões levassem tudo que tinha. A ideia de ser assaltada também parecia – pela primeira vez em meses – algo plausível de forçá-la a ir embora. No entanto, a curiosidade foi incontrolável. Se eram assaltantes, eram terrivelmente desastrados. Abriu a porta do quarto que dava para a sala e tentou olhar apenas com a cabeça silenciosamente para fora. O que viu não podia ser explicado. Havia um enorme bicho, uma espécie de dragão branco gigantesco se debatendo no chão do seu apartamento. Sua fascinante pele com múltiplos arranhões vermelhos, alguns sangrando e sujando todos os móveis. Os olhos fechados de tanta dor. Sem saber exatamente porquê, teve o estranho impulso de trancar todas as portas e cerrar todas as janelas, fechando persianas e tudo que poderia dar vista aos vizinhos. O enorme e mítico animal, exaurido, permanecia deitado, apenas respirando pelas grandes narinas brancas e os olhos cerrados. Ela tentou se aproximar, ele abriu os enormes olhos olhando em sua direção. Sua alma gelou. Prendeu a respiração, o coração batia acelerado. Era como olhar nos olhos de uma fera, de uma besta com seus dois enormes chifres de marfim. Era pavoroso e encantador. Ficou olhando no fundo dos enormes olhos dele. Percebeu que havia algo, algo doce naquele estranho olhar. Sentiu como se o conhecesse. Como se de alguma forma aquela enorme fera lhe fosse familiar. Teve o estranho impulso de tocá-lo, acariciá-lo, demonstrar que o queria ali e que queria ajudá-lo. Aproximou a palma da sua mão da testa do dragão, fazendo um tenro carinho. A fera primeiro pareceu tensa e ficou imóvel. A medida que o afago continuou, foi relaxando. Ela também, com mais confiança, foi se aproximando mais dele, sentando ao lado da sua cabeça no chão. Então, colou seu rosto ao rosto dele, testa com testa, num sinal de profunda empatia. Aquele toque lhe fez sentir-se acolhida, em casa. Uma onda de pertencimento parecia tomar seu corpo. A pele do dragão estava quente, mas era macia e agradável. Não queria parar de tocá-lo, ou se afastar dele. Permaneceu um longo tempo acariciando sua fantástica crina, sentindo o ar abrasador que saia de seus pulmões. Pensava que deveria ser desses seres que realmente cospem fogo pelo calor que sentia emanar dele. Aos poucos, aquela brisa tórrida, como o próprio verão soprando em suas pernas, deu início a uma nova atração. O dragão roçava levemente sua face nela, sentia a gigantesca boca úmida passando por sua pele, sua calcinha umedecia. Um tesão fantástico começou a dominá-la. Imaginava a boca abrindo e a enorme língua áspera, fogosa e cálida, passando por seu corpo. Pensava que apenas com a língua o bicho podia lambê-la inteira, dos peitos à buceta, ao cu, até a alma. Tentou de início não deixar o pensamento a afetar tanto, mas era impossível disfarçá-lo. Com tamanhas narinas, devia estar sentindo o cheiro da sua buceta desde antes mesmo dela saber que se excitava. Mal terminou esse pensamento, notou que tinha parado o afago e que a fera lhe olhava com seus olhos ameaçadores. E sorria. Um dragão sorrir não é coisa de todos os dias. Revelava assustadores e afiados dentes, inúmeros. No entanto, pra sua surpresa, ela continuava enlouquecidamente excitada.

Levantou-se diante do dragão. Era como se pudesse se comunicar com ele por telepatia. Como se soubesse o que ele queria que ela fizesse. Ao se levantar, ele também se ergueu, ouriçado, como pronto para um bote. Ela tirou as roupas e ficou de pé, completamente nua diante dele, os peitos duros, a buceta com os pelos arrepiados. A fera sacudia levemente a enorme cauda, derrubando um vaso de planta aqui, um quadro acolá. E então parou. A boca abriu novamente, como ela esperava. Como uma úmida gruta gotejante. A língua era fina e comprida, ágil como a própria cauda ou como poderiam ser os tentáculos de algum outro bicho. Primeiro envolveu sua perna, se enroscando em sua coxa. Melada, babada, pegajosa. Era capaz de tanta pressão que quase lhe deixava roxa. Ao mesmo tempo, escorregadia. Foi se enroscando dos pés até sua virilha. Chegou na buceta e cobriu-a por inteiro. A língua cobria toda sua xota, de quase o cu ao clitóris. Todos os lábios, toda sua carne agora em contato com aquela carne mole e quente da língua do dragão. A temperatura parecia aumentar. Os pelos da fera se arrepiaram, estava excitada. Os olhos se fechavam de prazer. Então a ponta da língua desceu e subiu pelo clitóris, era firme e áspera. Se movia quase violentamente. As pernas dela abriram mais e mais. Mal conseguia se manter em pé. A língua continuava, agora passava a ponta por toda sua buceta, em todas as direções. Ela sentia que ia cair pra trás. Quando percebeu que o dragão estava erguido diante dela e sua cauda agora amparava seu corpo, tirando seus pés do chão. Trazendo ela mais pra perto, para se emaranhar no seu longo corpo e na sua longa língua incansável. Agora apoiada na cauda, a fera soltou sua perna, e brincou de lambê-la toda, subindo da boceta até seu queixo. Ficava toda molhada, sentia na pele inteira o calor da boca dela, tremia, tinha espasmos involuntários. Nunca na vida tinha provado sensação parecida. Estava completamente entregue e mole. Se quisesse, o dragão poderia facilmente engoli-la. Mas não o fazia. Continuava ali passeando por seu corpo, sugando com uma sucção sem comparação os seus peitos, se movendo ágil por seu clitóris. Ela gemia e gemia, virava os olhos, suava, agarrava os pelos da fera com toda força. Então o dragão parou, enroscou a cauda em sua cintura e a ergueu até quase bater no teto. O corpo dela pendurado no alto, bem em cima da boca gigantesca do dragão. No início, ficou tensa, contraindo toda musculatura, pensando se não estava numa emboscada. Mas de pronto relaxou, olhou no fundo dos olhos dele e sussurrou: “ eu confio em você”. O dragão então meteu só a enorme cabeça de sua língua em sua buceta, penetrando ela profundamente. Meteu e girou a língua lá dentro, debatendo-se no seu ponto g, tocando o colo do seu útero, acariciando tudo. Parecia estar voando, seu corpo erguido do chão, ia relaxando e se sentindo mais e mais leve, mais e mais aberto ao prazer mais delirante que alguém poderia imaginar. O orgasmo é como voar, pensou. E fechou os olhos enquanto ele fodia sua boceta com a língua. Enquanto enroscava ela em sua causa, que agora também segurava seu pescoço para não pender pra trás e roçava em sua nuca, fazia cócegas em sua orelha. A língua entrando e saindo, girando mais. Sentia as paredes da buceta latejando. Gozava como nunca. Esguichava pra fora, pra dentro da boca do dragão. Até ele pousá-la no chão novamente, doce e delicado.

Ela o abraçou com toda força que restava. Em seguida, tentou se aninhar nele, entre suas patas, colando seu corpo molhado nele. Adormeceram ali, exaustos os dois no chão do apartamento. Mal amanheceu, o dragão de pronto levantou novamente, agitado, se virando para a janela. Ela compreendeu, ele precisava ir embora. Abriu a janela ao máximo e ele saiu voando, desaparecendo no céu azul, como num sonho extraordinário. Era belo e esguio, agora podia vê-lo melhor no céu ensolarado. Até não conseguir ver mais nada. Sem conseguir concluir exatamente o que tinha acontecido, agradecendo nunca ter aceitado colocar grades nas janelas. Olhou no entorno, mas a cidade parecia exatamente igual. Nenhum vizinho ou vizinha encarava ou nada parecido. Principiou a arrumar o estrago que o dragão fez em seus móveis pela sala, até que encontrou o pequeno bilhete: “Esteja pronta meia noite, eu venho buscá-la. Não confie em ninguém. Quando me ver, você saberá.” Ela preparou uma mala, pela primeira vez em tantos meses sentia-se cheia de coragem, e então esperou.

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Ilustradora:

Carolina Morales

graduanda em pedagogia pela PUC-Rio, cenógrafa e caracterizadora do Grupo Fúria, coletivo teatral, trabalha com artes plásticas e é tatuadora iniciante – Carolina Morales é cientista.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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