ESTÔMAGO

Um relato de amor por comer e ser comida. Uma ode erótica ao paladar

Nasci com apetite voraz, de cão. Meu pai falava bem assim, que eu tinha o estômago furado, que era um saco sem fundo dos diabos, prejuízo para qualquer cozinha que me recebesse. Tinha apetite para dar e vender. Era capaz de bater três pratos ou mais por refeição. Dominava minha fome só pra não ser chamada de bicho, pra não me atracar com tudo que caía no meu prato. Evitava lambuzar a fuça, sujar as mãos. Aprendi que comer bonito é comer quase sem gosto: limpa, asséptica, silenciosa. Servir pouco, dizer satisfeita antes da hora para não fazer desfeita, fingir abundância de saciedade, negar a falta que eu tinha nas entranhas : uma luta para esconder a minha voracidade inata contra o mundo. Não sei explicar, meu jeito de conhecer a vida é pela boca. Tentei muito analista, muita gente que me cavucava fundo, dava remédio, tentava cessar esse impulso oral, que chamavam pervertido. Até que enchi o saco de me entulharem de merda e sermão, comecei a fazer de conta que era assim como todas as outras, que não fazia quase questão de colocar nada na boca, que me contentava com um pratinho honesto, um copo d ́água, que nem queria sobremesa ou só um pedacinho pequeno, charmoso. Assim ficava mais amável, mais tolerável, para uns até parecia mais moça – como se mocidade fosse essa recusa ao prazer do paladar. As pessoas gostam que a gente encha a cara, que a gente tenha apetite só na cama, mas a língua tem que ser controlada. De preferência guardada dentro da boca, pra pouca gente vê. Gostam de mulher sem dente, que come só o macio, com a garganta apertada, assim não passa ideia pra fora quase nunca. É coisa de vender fraqueza, eu sei. Hoje, eu sei melhor. Com estômago apertando, a gente vai matando o desejo.

Aconteceu que eu já estava há uns anos com a fome em rédeas curtas, confinando meu prazer secreto de comer com toda a gana à circunstâncias muito privadas e celebrativas. Todos me davam como corrigida, curada, adequada. Estava perto assim de encontrar um casamento ou pacto que fizesse valer minha renúncia, quando a conheci. Sentei num pequeno boteco, o cheiro da comida, da fritura, impregnava minhas narinas. Eu segurava a saliva e virava copos de cerveja para apaziguar as vontades. Ao meu lado, um par de amigas, uns quatro rapazes. Pediram um petisco para dividir, eu contive minha vontade de gargalhar ao imaginar dividir com seis pessoas um único prato. O petisco veio, a carne acebolada brilhando, um cheiro, um cheiro assim gostoso e eu pensei que não passaria desejo num boteco qualquer, decidi que talvez fosse melhor nem provar um pedaço. Bebi mais, as pessoas beliscavam e diziam que estava mesmo bom, que devia provar. Eu já tinha certeza que estaria bom e não resisti, peguei um cadinho. A carne na boca parecia derreter, a carne na boca era de fuder. O sal, a pimenta, o tempero, a suculência, tinha uma baba, uma água gostosa que acariciava a garganta. O gemidinho saiu, fora do meu controle, um “hmm” fundo, grave, inapropriado que mal escapou da boca e as mãos já voltavam pro prato, refazendo o caminho. Nunca tinha visto antes um quase orgasmo vindo assim de um aperitivo, pensei que podia ser só fome primária, mas não conseguia conter, a cada nova garfava subia um calor no meu peito, um êxtase doido na língua. Fui comendo, de início os amigos achavam meio engraçado, depois uma das mulheres começou a cutucar o meu braço insinuando que deveríamos dividir e eu não suportei, chamei o garçom e falei: “Me vê o melhor prato da casa, aquele que o chef se orgulha de fazer. Se for salgado, aperitivo, prato feito, não me importa. Mas me vê o melhor.” O garçom abriu um sorriso pelo meu despudorado entusiasmo e disse: “É uma mulher, é A chef. Mas vou mandar sim.” Me envergonhei um pouco com o meu machismo, mas nada importava mais do que aquela fome que me despertava. Eu fiquei sóbria de tanto prazer, só embriagada de expectativa pelo que estava por vir. Era incapaz de ouvir o que quer que fosse que falavam todas as outras pessoas, pra mim – ali naquele bar – só tinha eu, o garçom e a comida.

O bendito homem voltou com uma porção de bolinho de carne seca, uma coxinha de frango, um tanto de aipim frito. “Ué, ela não soube escolher o melhor não?”, perguntei. “Ela achou que você devia provar todas essas aí, tão fresquinhas. São carro chefe da casa.”, ele respondeu. Parecia um tesão de fritura. Ele colocou na mesa, eu já fui afastando os copos, abrindo espaço. A cor era bonita e tinha uma crocância, depois vinha a maciez. O frango molhadinho, a carne temperada, o aipim era aconchego. Tudo ia desfazendo por dentro. Eu gemia, melava dedo, a boca ia ficando oleosa, aí voltei a dar uns goles na cerveja e parecia um casamento. Essa chef queria me deixar bêbada, eu senti. Tava me testando. Tava só abrindo o trabalho. Tava me fazendo gostar dela. Eu comi corajosa, era um negócio de chamar a atenção. Todo mundo me olhava, era uma cena obscena, como é obscena toda felicidade assim no meio da cidade, tão sem propósito. Não tem razão que justifique esse dom do paladar. Todo o esforço em me adaptar que tive até aqui voltava a parecer uma baboseira. O garçom me olhava meio assustado e ia na cozinha, como que para passar recado: tinha uma mulher no salão que comia de um jeito histriônico. Pensei que ia me expulsar, já me aconteceu antes. No entanto, o tempo passava, a comida chegando no fim e nada do garçom voltar. De repente ele me chega, aproxima assim do meu ouvido e diz: “A chefe pediu pra você esperar o fim de expediente que ela quer cozinhar mais e só pra você. Ela quer poder te ver comer.” Engoli seco e retruquei: “Diz pra ela então que tem que ser uma comida especial.” O garçom tornou a servir as outras pessoas. Eu fiquei lá sentada, os olhos nos ladrilhos sujos que davam pra porta da cozinha. Boteco é uma coisa imunda, vai ver o segredo dessa mulher era a maldade. Ia aguar ali de vontade pra ela acabar me servindo uma barata frita. Mas, do jeito que tinha sido todo o resto, eu até provava a barata da mulher. Aquele tempero, meu deus. Que mão ela devia ter. Eu ficava imaginando: uma mão suja assim de farinha, uma mão queimada de óleo, uma mão quente de pimenta.

A espera foi longa, longuíssima. O bar não esvaziava. Bêbado é foda, vai estendendo o expediente, vai querendo virar madrugada. Uma praga. Eu queria varrer todo mundo para fora, mas fui paciente. Nada ia amargar meu humor. Eu ainda ia conhecer aquela cozinha, eu sabia. Isso, para alguém como eu, é quase uma febre, foi me deixando quente e quieta, alucinada. Finalmente as cadeiras foram sendo empilhadas, os últimos gatos pingados sendo arrastados para fora. Existiam só os cochichos dos garçons, copos indo pra pia, álcool nas mesas, pratos batendo. Esse som fica pra mim como o anúncio de que a minha festa estava só começando. Seguiram com as despedidas, as gargalhadas, os panos sendo abandonados no balcão. Um a um, sairam primeiro os garçons. Depois, o gerente – ou dono daquela espelunca – passou me secando com os olhos numa espécie de ciúmes. “Bom apetite, puta.”, ele falou fechando as grades de ferro da porta. Eu não me ofendi, nada podia me abalar.

Sozinha no salão, ouvia poucos barulhos vindo da cozinha, minhas pernas tremiam na cadeira. Foi me batendo um nervoso, não conseguia falar nada. Será que ia falar comigo antes? Eu suava. O suor descia meu pescoço, descia pro meio dos meus peitos, debaixo dos meus peitos, minhas axilas, encharcava minha camisa. Ela demorava. Um cheiro fresco tomou o salão, cheiro de alho, coentro, cebolinha. O suadouro deu lugar a uma salivação, lambia os lábios. Era como se o cheiro pudesse mudar as cores das paredes. A luz foi ficando menos fria, os ladrilhos brancos sujos pareciam mais acolhedores. Meu estômago e minha buceta latejavam cada vez mais, eu não ia aguentar esperar, precisava chegar um pouquinho mais perto. Levantei silenciosa, como uma criança culpada, fui até a cozinha. O cheiro ia ficando mais forte e mais gostoso. Queria espiar como ela era. A porta estava entreaberta, coloquei discretamente meu rosto na fresta.

A cozinha era imunda, oleosa, mal iluminada. Mas eu só reparei nisso muito depois. Primeiro eu vi o pescoço dela, nu. O cabelo estava preso no coque, embaixo de uma touca e por isso o pescoço ficava todo exposto. Com o suor, a pele dela ali brilhava. Tinha uma pinta também. Então reparei nos braços, fortes, ágeis, mexendo uma enorme panela. As mangas arregaçadas sujas de molho, as mãos pegando um punhado de sal, de pimenta, não tinha lá grande etiqueta, os dedos estavam sujos, mas havia uma graciosidade, uma atenção. Ela também levava aquilo muito a sério. Dava pra ler no seu ritmo como isso era importante. Fiquei hipnotizada em como suas mãos grosseiras dançavam em torno das panelas. Logo percebi que era um macarrão, só que o molho tinha uma cara diferente. Para minha surpresa, ela ainda puxou uma frigideira e começou a fritar um punhado de camarões. Comer camarão num pé sujo parecia uma prova de confiança. É que tudo parecia tão bom, tão íntimo. Eu fui ficando maravilhada de tal modo que, quando vi, estava quase colada nas costas dela perto do fogão. Quase encaixada nela. Ela se assustou, virou o rosto rapidamente por cima dos ombros. Seus olhos eram grandes e fundos, foram – em um segundo – de assustados para olhos furiosos: “Eu mando aqui. Você espera eu te servir no salão”. Não era raivosa, só firme. Eu obedeci, gostei. Saí rapidamente de volta pra minha cadeira, cadeira agora batizada com a marca de suor da minha bunda.

Em cinco minutos, ouvi a porta abrir. Eu nem pude suspirar e lá estava ela, agora de frente, com o avental encardido, manchado assim como o de um pintor, as mãos com muito cuidado equilibrando uma bandeja com o divino prato. Ela caminhava com a bandeja concentrada, cerimoniosa. O prato era lindo, macarrão molhado, tinha camarão, tinha siri, uns tomates, era colorido, vivo, vibrante. Eu vibrei toda, os pelos todos em pé, a minha boca abriu mole, sedenta. Ela colocou o prato na mesa: “É um tagliatelle de siri, coisa chique. Te mostrar que entendo de paladar”. Mas eu logo reparei que não havia nenhum talher. “Eu quero te ver comendo de verdade, com a mão.” – ela continuou. Eu abri um sorriso malicioso de orelha a orelha, era tudo que eu queria. Mergulhei minha mão no prato de macarrão, os dedos sentindo o caldo do molho, o escorregadio da massa, a crosta do camarão, o macio do siri. Levei o primeiro bocado pra boca, molho respingando na cara, na minha roupa. O sabor, o gosto, transcendia tudo que eu podia imaginar. Era uma porrada de tesão, era um baque de gostoso. Eu precisei fechar os olhos um pouquinho, era quase um gozo, minha língua se pudesse tinha espasmos. A garganta toda em festa. Não tinha o que pudesse dizer, só sabia que eu queria mais. Chupei cada dedo até o talo e voltei as duas mãos pro prato. Ela, que agora parecia radiante, me interrompeu: “Calma! Agora abre as pernas e tira a calcinha.” Ela nem terminou a frase, minha calcinha já estava longe no chão. Ela ajoelhou por baixo da mesa, foi subindo a boca pelas minhas coxas, passando a língua na minha pele, até chegar na minha buceta. Então, levei mais macarrão à boca. Ela começou a me chupar. Eu não sabia se gemia de boa que era a comida, ou de boa que era boca dela. Ia mastigando devagar, o camarão explodindo crocante e macio, minha cara ficando molhada, já escorria molho do queixo pro meu peito e ela ia lambendo e beijando o clitóris, as mãos agarrando minha coxa, fazendo carinhos. Eu comia mais e mais, chupava o macarrão, me apaixonava no siri. Ela ia mais rápida, minhas coxas contraindo, me contorcia. Me sujava mais e mais, o prato quase acabando, eu quase gozando na boca dela. Ficava difícil continuar, eu gemia atordoada, comia toda atrapalhada. Até que empurrei ela com o pé: “Eu vou terminar antes o prato, só aí eu vou gozar na sua boca. Nessa mesa, mando eu.” Ela se ergueu, notei os mamilos duros tentando furar o avental, ela estava adorando. A cara toda encharcada da minha xota. Eu fui terminar o prato, fechei os olhos, ainda podia sentir ela me secando. Comi até não resta mais nada, ainda lambi os dedos e a louça toda até ficar branca como nunca. Percebi que ela se masturbava na cadeira do outro lado da mesa. Eu já estava transtornada de tesão. Puxei minha cadeira para trás, dando espaço da mesa e ela veio de quatro na minha direção. No caminho, se livrou do avental, da toca. O coque deixava escapar os fios do cabelo. Era uma visão assim bagunçada e suculenta. Ela me olhava com um brilho, uma fome, era quase assustador. Tinha um fogo nela. Podia me assar e comer, literalmente, se quisesse. Veio assim até os meus pés. Tirou cada pé de dentro do salto que eu usava. Foi chupando meus dedinhos. Depois mordeu meu calcanhar. Puta que pariu, eu gemia, virava os olhinhos. Ela foi direto pra xana, lambia e sugava. O meu orgasmo veio, veio ainda com o gosto fantástico da comida que não saía da minha boca. Tremia as pernas, os pés virando pro teto, os joelhos bambos, gemia e gemia fundo. Gozei na língua dela, ela bebia meu gozo, meu esguicho pingando pelo queixo. Eu quase caia da cadeira. Ela queria mais, subiu erguendo minha camisa, ia lambendo e provando todo meu suor, suor salgado das horas e horas naquele bar maldito esperando. Eu devia estar azeda, mas ela me saboreava até chegar nos peitos. Aquelas mãos grossas, divinas, prendadas, agarravam meu peito, apertavam, depois a boca beijava e mordia meus mamilos. Minha carne mole entre os lábios dela, tudo era denso e delicioso.

Finalmente ela chegou na minha boca e agarrei ela pelo pescoço num beijo voraz. Mordia seu lábio como que querendo um pedaço. Me afastei, peguei fôlego, colei a boca na sua orelha e sussurrei baixinho: “A minha sobremesa é você.” Coloquei ela de costas pra mim, com as mãos apoiadas na mesa. Abaixei as calças largas dela, a safada estava sem calcinha esse tempo todo. Primeiro, eu não resisti: lambi o cu dela todinho e confesso que era doce, docinho. Então cheguei com a minha mão na buceta, a xana estava molhada, latejando. Comecei masturbando devagar, ela ia aquecendo, gemendo baixinho, tímida. Eu ia tocando mais o clitóris, até o gemido engrossar, até ela ficar no ponto. Aí comecei a dedar ela. Com a mão eu ia dedando e dedando, com a cara eu continuava beijando aquele cu abençoado. Ela grunhia, a mesa balançava. Virava copo, garrafa, quase quebrava o prato. Fui metendo mais rápido, a bunda dela empinada na minha cara. Metia também minha língua no buraco doce. Ela gritava. Ia gozar. Anunciava desesperada que ia gozar. Eu pensei que ia conhecer pela primeira vez a saciedade, tolinha. Meu apetite sempre me surpreende. Fome se mata, vontade não. Descobri que tenho mesmo o dom da gula.

Ilustradora convidada:

Laura Pinheiro

Laura Pinheiro, designer gráfica, amante de impressoras e de scanners. Utilizo de processos de design para desenvolver minhas expressões.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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