Trabalhar como artista muitas vezes é ter que estar em um looping constante de criação de ideias que nem sempre vão ser as melhores, mas que de alguma forma precisam ser criadas. Porém, nessa “indústria” o que é interessante (e bastante aliviador, às vezes) é observar os processos de outros criadores e ver as falhas e acertos que todos nós cometemos. Há 6 anos atrás, a banda britânica Blur, lançava ‘The Magic Whip’ (2015) álbum que tem uma história bastante interessante sobre o processo artístico.
Para começar, um pouco de contexto: em maio de 2013, o Blur seguia de viagem para o Japão para sua participação no Tokyo’s Rock Music Festival que foi inexplicavelmente cancelado. Sabendo disso, a banda decidiu estender a sua estadia em Hong Kong por mais cinco dias e ao invés de ficar fazendo compras ou turistando, eles rumaram para o Avon Studios simplesmente para tocar e se distrair.
Existem alguns fatores interessantes nessa parte do processo: o primeiro deles é que a banda não tinha datas de entrega ou objetivo claro. Eles se reuniram em estúdio para tocar e ponto, se permitindo uma liberdade criativa maior do que a normal – algo que pode ajudar muito no processo de criação de qualquer artista.
“Nós literalmente só estávamos usando nosso tempo e eu pensei, vou fazer isso em cinco dias e lançar na semana que vem ou algo assim” – Damon Albarn, vocalista
Com essa falta de um guia, a banda voltou para Londres e manteve a viagem em segredo para não gerar pressão da mídia. Mesmo tendo algumas demos, para a banda de uma forma geral a estadia em Hong Kong foi apenas uma viagem boa, nada de mais.
Eles seguiram suas vidas e o trabalho ficou de lado por mais de um ano, até que Graham Coxon, guitarrista recém reintegrado da banda, decidiu dar uma olhada nas gravações. Seu principal objetivo era tentar aproveitar algo que havia ali e tentar compensar algumas faltas que ele cometeu com a banda no passado.
“Precisa-se de alguém para empurrar as coisas adiante. Me surpreende como ele fez isso, isso que me surpreende.” – Dave Rowntree, baterista
Aqui vale citar um outro fator muito importante que está ligado com o trabalho musical do álbum: o ambiente. A experiência de estar em Hong Kong foi algo tão enriquecedor que inspirou diretamente a composição das musicas. É possivel ver essas influências de duas formas: pela sua sonoridade, que algumas vezes tenta criar uma atmosfera como em Lonesome Street, Ghost Ship, Pyongyang e Ong Ong. Ou pelas claras referências a locais e símbolos em suas letras.
New World Towers
Green, green, the neon green, New World Towers
Carved out of grey white skies, twenty-four hours
Glide through the glass arcade to Hollywood
The psychopomp, it leads me dreaming
Verde, verde, neon verde, o New World Towers
Esculpido do céu branco-acinzentado, vinte e quatro horas
Deslize pela galeria de vidro até Hollywood
O psicopompo me leva a sonhar
Ice Cream Man
Here comes the ice cream man, parked at the end of the road
With a swish of his magic whip, all the people in the party froze
Screwball, chocolate chip, umbrella in his white glove hand
Shade from the sun was his intention
Ghost Ship
Swinging on a cable up to Po Lin
Climbing panda, ghostly wine, and a battery
That light in your eyes I search for religiously
When it’s not there, oh Lord, it’s hurting me
I got away for a little while
But then it came back much harder
Balançando no cabo para Po Lin
Panda escalando, ghostly wine e a bateria
A luz dos teus olhos que eu procuro religiosamente
Quando não estão lá, ó Deus, me machuca
Eu saí for um tempo
Mas então voltou muito mais forte.
Ong Ong
Além da experiência em Hong Kong, existe também um relato mais profundo sobre a visita de Damon a Coréia do Norte, posta na musica Pyongyang. Aqui podemos ver um tom mais frio da música, enquanto a letra soa como um “cartão postal” onde ele descreve a atmosfera da capital do país.
Ong Ong
I look down from my window
To the island where I’m held
They listen while you’re sleeping
And darkness is itself
Tomorrow, I’m disappearing
‘Cause the trees are amplified
The never-ending broadcast
To which I do not aspire
Eu olho da janela
Para a ilha em que estou guardado
Eles escutam enquanto você dorme
E a escuridão é ela mesma
Amanhã, eu estou sumindo
Pois as arvores são amplificadas
A transmissão sem fim
Na qual eu não desejo
“Coreia do Norte. Eu li muito sobre ela e eu estava estranhamente fascinado com como aquele lugar poderia existir e eu fui lá. Então eu entrei no país. […] Todo mundo parecias estar, uh, sob algum feitiço que eu estava falando. Isso por si só é extraordinário.” – Damon Albarn
Para Damon inclusive, todo o processo de criação, desde os 5 dias em 2013, está intricadamente ligado com se emergir no ambiente. Não é à toa que boa parte das letras das musicas só foram compostas poucos meses antes do álbum sair em 2015, após o vocalista dar uma última passada em Hong Kong na volta de sua turnê solo na Austrália.
“Eu decidi voltar para Hong Kong sozinho. Eu fiquei lá por um dia e meio, mas assim, eu literalmente sai do avião e comecei a escrever e filmar e etc. E basicamente tentar reviver todas as jornadas habituais e todas as jornadas extraordinárias que eu já fiz. […] Eu me senti um pouco como um astronauta e eu comecei a tomar doses de níveis distópicos de isolação pessoal e angústia e medo e tudo se tornou bastante intenso, o que ajuda muito quando você está escrevendo” – Damon Albarn
Assim, precisando de alguém de fora, Coxon chamou o produtor amigo da banda Stephen Street para seguir com o trabalho instrumental do álbum. Albarn voltou a Londres, a banda se reuniu e seguiu para finalizar o álbum.
Em meio a uma pausa inusitada, vindo de uma ideia que nasceu sem propósito ou objetivo claro e fruto de uma imersão no encanto de um lugar novo, o Blur lançou um álbum simples, mas bastante surpreendente. Com letras interessantes e uma sonoridade bastante atmosférica e que mostra todos os questionamentos que acontecem em um processo criativo.