As Construções Narrativas em ‘Minari’

A sensibilidade e inteligência por trás do roteiro de Lee Isaac Chung

O longa-metragem de Lee Isaac Chung, Minari, é um dos grandes indicados para o Oscar de 2021. O filme trata de questões relacionadas a experiência de imigrantes de primeira e segunda geração nos Estados Unidos, desde o que toca a cultura e identidade das famílias até a estrutura social que reserva a esses imigrantes um estilo de vida muito específico e pouco emancipatório. O principal conflito da obra se dá justamente a partir de uma tentativa de fugir da condição social que é imposta aos personagens.

Trata-se de uma obra semi-biográfica do autor e diretor. O filme conta a história de uma família coreana que vai para os EUA, assim como no caso da maioria das imigrações para países ditos “desenvolvidos”, em busca de uma melhora em suas condições de vida. Os pais trabalham em uma “linha de montagem”, numa fábrica de frangos, onde fazem a sexagem dos pintos (separam as fêmeas dos machos), na Califórnia. Depois de economizar um pouco, cansado de seu subemprego de repetições mecânicas, o pai, Jacob (Steven Yeun), decide investir em um terreno numa área rural. A família começa sua pequena fazenda no Arkansas, em uma tentativa de mudar de vida através da agricultura. A mãe, Monica (Han Ye-ri), apesar de contrariada, segue os planos do marido.

A posição da mãe, por sua vez, se dá por conta do estado de saúde do filho, que sofre de uma condição cardíaca. David (Alan S. Kim), o filho, tem um sopro no coração, e por essa razão é criado sob uma redoma familiar extremamente limitadora. O menino de cinco, seis anos não pode correr, se agitar ou fazer grandes esforços como uma criança normal. Por conta disso, o fato da fazenda se localizar em uma área herma e relativamente distante de hospitais e serviços emergenciais coloca Monica em um estado alerta redobrado. Criando-se assim, de maneira muito sutil e talvez até um pouco cruel, uma força antagonista na mãe, que o tempo todo questiona a mudança de vida da família.

Dessa forma, começam-se a traçar também diferentes perspectivas a respeito da ideia de pertencimento. A mãe, com um ponto de vista mais urbano quanto ao senso de comunidade, e o pai, rompendo completamente com o que o personagem mesmo chama de “coreanos da cidade”. Ainda sim, é possível observar a profunda ligação do pai com sua cultura, visto que todo seu plano de negócios é justamente o de fornecer produtos consumidos dentro da culinária coreana, cultivando legumes e frutas que não são habitualmente produzidos em plantações norte-americanas. A ideia é produzir para os seus.

Além disso, é possível observar a tentativa do pai de conseguir dar um exemplo a seus filhos no sentido de não aceitar se adequar ao que o sistema de exploração de trabalho capitalista estadunidense designa a ele. Para o pai, é importante que seus filhos o vejam em um caminho de vida que foi o que ele escolheu seguir.

O roteiro de “Minari” aborda as críticas a cultura norte-americana de maneira muito inteligente e delicada. Diferentes cenas evidenciam tanto o racismo presente no inconsciente coletivo dos brancos estadunidenses, quanto a condição estrutural que vai além dos indivíduos e permeia toda a realidade da família coreana. O filme propõe mostrar de maneira extremamente imagética as violências veladas e as vezes até pouco perceptíveis para olhos desatentos e desinformados. Em uma cena, os filhos, David e Anne (Noel Cho), brincam na sala de espera do consultório. De repente, uma senhora branca entra na sala, se esquiva das crianças de forma a nem chegar perto de encostá-las, tratando-as como páreas apenas com o olhar. A crítica ao comportamento reativo dos brancos estadunidenses está presente em praticamente todas as cenas que envolvem o convívio da família com o mundo externo, mas quase sempre de forma simbólica e não necessariamente explicitada por diálogos.

Apesar de seu caráter denunciativo, o filme trata de muito mais do que apenas a relação daquela família com a sociedade em que foram inseridos. Na verdade, o arco mais interessante e bem construído está numa relação interna da família que é chave para diversos conflitos de criação e identidade. Como o pai começa a se dedicar exclusivamente às plantações, a mãe passa a trabalhar em longos turnos no mesmo serviço que já fazia antes, sexagem de pintos. Para não deixar as crianças sozinhas, a mãe de Mônica, Soonja (Yoon Yeo-jeong), vem da Coréia do Sul para os EUA para cuidar de seus netos.

Diferentemente de sua irmã Anne, David não nasceu na Coréia e, apesar de falar coreano com sua família em casa, toda sua experiência de vida se deu em solo estadunidense e a sua visão de mundo se deu até então a partir de uma concepção norte-americana. O embate entre David e a avó é quase instantâneo, mas se dá unilateralmente. Soonja, quebrando quaisquer expectativas sobre a imposição de uma figura de autoridade, surge na história para apresentar uma perspectiva de vida completamente diferente da de todos que ali viviam. Uma mulher que passou por uma guerra, foi vítima de diversas perdas e ainda sim, talvez justamente por isso, nunca parou de apreciar o que há de melhor na vida.

Apesar de Soonja representar de maneira muito clara a ideia de uma identidade étnico-cultural dentro da família, em nenhum momento isso é imposto por ela. Ao mesmo tempo, o conceito que David tem da figura de uma avó é baseado nas imagens observadas por ele dentro dos Estados Unidos. Em diversos momentos o personagem repete que “sua avó não é uma avó de verdade”. Que ela “não assa biscoitos” como as outras avós. Quando ela chega, David diz que não quer dormir no mesmo quarto que ela pois ela tem “cheiro de Coreia”, uma afirmação bem problemática e especialmente simbólica desse processo de “aculturação” sofrido por um imigrante de segunda geração.

Porém, aos poucos, David e Soonja — que não mede esforços para isso — vão se tornando cada vez mais próximos. Essa aproximação se dá pelo caráter desobediente da avó. Assim como uma criança, Soonja não gosta de seguir as regras restritivas do pai e da mãe, e é a primeira pessoa na vida de David que o permite brincar, correr, se aventurar sem muitas proibições. Em uma das cenas que considero ser das mais bonitas, ela chama David de “strong boy” (garoto forte, em inglês). Ele leva um susto e tenta entender por um tempo. Isso se dá porque durante toda sua experiência de vida, ele ouviu que era um garoto fraco, que não podia fazer as coisas pois não tinha força. A chegada da avó na vida de David dá a confiança que é necessária para uma criança desbravar a vida.

Outra característica muito interessante do roteiro são as suspensões em momentos de tensão que são criadas e interrompidas. Em diversas cenas, nossos olhos viciados em escolhas óbvias e talvez um pouco menos realistas esperam que “o pior” aconteça, pois o cinema sydfieldiano nos ensinou que toda a escolha narrativa tem que resultar numa ação dramática se não, torna-se desnecessária e até mesmo “contraproducente” para a narrativa. Porém as escolhas do filme muitas vezes se dão apenas para construir o universo, a perspectiva da personagem. Há uma cena em que Soonja e David visitam o lago perto da casa, ele avista uma cobra e taca uma pedra nela. Por sorte e talvez falta de força, a pedra de David não alcança a cobra. A avó para o menino e pede para que ele não faça mais isso. Diz que é melhor ver a cobra do que não vê-la. Que “as coisas que se escondem são mais perigosas e assustadoras”. E os dois continuam o que estavam fazendo tranquilamente.

O tempo todo a avó constrói em seu neto um imaginário que é bem diferente daquele imposto pela sociedade onde ele cresceu e, especialmente, pela educação na qual ele foi criado. Enquanto a mãe ensinava o filho a pedir “clemência a Deus”, a avó desensinava o neto de que sequer havia algo a se pedir a Deus, de que ele precisava rezar para continuar vivo. Aí é que se dá o último ponto de virada do filme, marcado até de maneira extremamente simbólica.

Desde o início do filme, David não consegue controlar seu xixi na cama. Ele diz que sonha estar indo ao banheiro e acaba fazendo xixi. Já no início do terceiro ato do filme, David e Soonja dormem abraçados em uma cena extremamente dramática na qual David chora sem conseguir dormir por medo de morrer. Soonja o abraça e promete que ele não vai. No dia seguinte, os dois acordam com o xixi na cama. Ele se levanta e estranha pois sua cueca não está suja. Ela não se mexe. David não sabe, mas ela teve um AVC.

Nesse momento, ocorre uma “transposição” entre os personagens. Dias depois, David vai no médico e seu problema cardíaco está muito melhor. É claro que isso não se deu do dia pra noite. Houve toda uma transformação na forma de olhar a vida feita pela avó em seu neto. O menino foi ficando mais confiante e por consequência, mais forte e saudável. Mas a partir daquele ponto, as crianças passam a ter que cuidar da avó, que a partir de então, mal podia se mover.

A maneira como o autor conseguiu trabalhar imagens profundamente icônicas para simbolizar tantas nuances diferentes em cada cena, em cada relação, é realmente admirável. Até mesmo os diálogos são extremamente sensíveis e trabalhados de forma muito inteligente. Não foi à toa que o filme recebeu 6 indicações para o Oscar, dentre elas a de melhor filme e melhor direção. Minari explora a força do afeto, a importância do simbólico e as diferentes formas de pertencimento e identidade, sem deixar de criticar o que há de pior na cultura estadunidense.

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Magdalena Vianna
Magdalena Vianna
Magdalena é roteirista, diretora de arte e produtora cultural. Criada nos palcos dos teatros cariocas, é filha de atores e sempre viveu e respirou a cultura do Rio de Janeiro. Apaixonada por todas as formas de arte, hoje aspira criar no meio audiovisual.

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