SUA (HER)

Fazia mais de um ano desde que terminaram. Era o início da pandemia quando sua mulher acordou um dia e lhe disse que a vida confinadas em casa tirava todo o sentido de continuarem juntas. Aquilo foi como um golpe, ela não fazia ideia ou pelo menos fingiu não fazer ideia de que tudo ia tão mal. A outra não quis saber ou explicar mais do que isso, saiu com as malas e a sua facilidade em abandonar as coisas e as pessoas, como se não tivessem existido. Ela ficou no apartamento sozinha com todo o resto de entulho daquela relação. Se sentia perdida e errada, de algum modo furtada do seu tesão. Ficou fixada na ideia de como deveria ser bom ter alguém num momento como esse, em uma crise como essa. Não podia ver seus pais, nem amigos. No início pegou uma dúzia de cursos online. Comprou um ukulele pela internet, odiou-se alguns dias depois. Não era definitivamente uma mulher que toca ukulele. Tentou cerâmica, xadrez, bordado, pintura, dança terapêutica, dança para tik tok, perfumaria artesanal — fugindo do sexo — depois tentou o maldito tantra — procurando pelo sexo. Porém o tantra apenas a deprimiu mais. A instrutora só sabia falar fixamente sobre como paus e bucetas eram complementares, o que começou a fazer com que tivesse raiva da instrutora e da turma de mulheres casadas com homens idiotas que nem as chupavam, nem se interessavam minimamente por suas bucetas. “Eu acho que vocês deviam todas se divorciar”, ela disse no dia em que abandonou a aula. “Ah sim, porque isso tem funcionado pra você?” respondeu uma delas, ácida, com olhos de serpente. Era uma mulher com longos cabelos sempre alisados e lambidos, casada com um dentista, eternamente de aparelho e sem nunca ter gozado. Mas mesmo assim, aquelas palavras ficaram cravadas na sua cabeça. Queria ter respondido que não escolheu se divorciar e em seguida começou a se perguntar se tinha sido como aqueles maridos e simplesmente esqueceu-se de reparar na infelicidade da sua mulher. Nesse dia, teve um surto. Chorou copiosamente, tentou arrancar os cabelos com as mãos, quebrou um quadro que a lembrava sua ex, bebeu duas garrafas de vinho e um resto de cachaça, ligou pra sua ex. Fez uma enorme e bêbada declaração, mas terminou sem querer a criticando por sua crueldade em ter saído sem precisar dela. Por que não precisava mais dela? Sua ex a mandou à merda e desligou.

Então ficou quatro dias no seu sofá, confinada ao seu computador. Recebendo, lendo e respondendo e-mails. Descendo o feed do instagram, depois do tik tok, depois do twitter, depois do facebook, depois vendo vídeos no youtube. Quando percebia o sol estava nascendo outra vez. Dormia pra acordar e repetir o dia anterior. Acreditando desesperadamente que era um modo de se conectar com o mundo: aquela repetição. Mas se sentindo cada vez mais — como todes — abandonada. Até que um certo dia, uma amiga finalmente ligou. Era uma amiga antiga, da adolescência, recentemente casada, frequentemente ausente por motivos nobres, com uma voz adorável ainda que um pouco rouca. Depois de uma cota de ausência, sempre aparecia com longas ligações dizendo que estava muito preocupada. Ela tentou explicar a incapacidade de se sentir parte do mundo depois do divórcio e a nova vontade de permanecer pra sempre afundada no seu sofá, mas terminou por confessar que não conseguia mais tomar banhos e desabou a chorar na vídeo chamada. Sua amiga — sempre prestativa e com desejo de consertar as pessoas — lhe disse que conheceu um novo aplicativo, muito gringo, muito cool, muito inovador, que ela já estava usando e todos já estavam usando, sua ex-mulher deve estar usando e mudou completamente a sua vida. Por “mudar sua vida”, a amiga quis dizer que agora transava algumas vezes com o seu marido, estava convencida de que não precisava de filhos e comprou um kit de incensos artesanais. O aplicativo era – nas palavras da amiga – uma espécie de meditação guiada, reprogramação de mindset, um tipo de coach espiritual virtual pra dar um jeito na nossa incapacidade de viver a vida. Foi o uso da palavra incapacidade que na verdade tocou seu coração. Pouco importava ser totalmente personalizável, uma coisa nova, única, inteligente. Importava a esperança em algo que a faria, outra vez, se sentir capaz, apta, adaptável. Ela fingiu pra amiga que achou uma baboseira, ainda envergonhada por sua curiosidade, mas foi só desligar a chamada que correu para tomar um banho – o primeiro em semanas – e baixou em seguida o aplicativo. Teve um certo espanto com o número de preferências e dados que precisava fornecer. Tinha de dizer tudo, ou praticamente tudo que pudesse ser datado sobre si mesma. O nome dos seus pais, se já tinha feito mapa astral, se fez terapia e por quanto tempo, suas comidas preferidas, quanto tempo durou seu último relacionamento amoroso, assuntos que a faziam chorar e outras coisas esquisitíssimas. Quando finalmente acabou de dar todas as informações assim tão descaradamente para o app, foi direcionada a sua nova e primeira guia/parceira/mentora ou como quisesse chamar. Fez questão que fosse uma mulher. Com o celular nas suas mãos, viu um símbolo zen acendendo e apagando, pensou pela primeira vez em desistir, mas logo pulou uma mensagem para que colocasse os fones de ouvido. Colocou os fones, fundos dentro da orelha, sentou-se confortavelmente na beira do sofá e aguardou. Um pouco ansiosa, um pouco pronta para se decepcionar. Foi quando pela primeira vez ela ouviu a voz.

A voz da guia era serena, doce e gentil. Muito humana, nada robotizada. Lhe cumprimentava, falando seu nome — o que tinha um quê de especial —, depois dava instruções de como se sentar, como ter paciência com as ideias que iam querer atravessar sua cabeça, como tudo era um processo em que a confiança das duas era muito importante. Até aí tudo bem. Seguiu as indicações. A voz lhe dizia suavemente onde focar sua atenção, sentir a sua respiração subindo e descendo. Depois como fazer, lentamente, um scanner mental do seu corpo, ir sentindo cada parte, onde dói, onde é gostoso. A palavra ficou um tempo na sua cabeça. Primeiro se sentia desconfortável em ficar sentada, sentia seu pescoço pesar, vontade de coçar o seu nariz. “Calma, volte lentamente pra sua respiração. A agitação é normal, mas tente não dar toda atenção a ela.” Ok, ela retornou a respirar ou chamou assim, como se tivesse parado. Fez a meditação até o fim, se sentiu mais calma. Retomou em seguida as tarefas, conseguiu ter vontade de passar um café, voltou a tomar banhos com frequência e ficou menos tempo vagando pelas redes. A meditação e aquela voz de mulher se tornaram um rito frequente todos os dias pela manhã. Gostava de começar o dia com aquela voz lhe dizendo coisas no ouvido. Quando divagava ou quase caía no sono, a voz — cada vez mais carinhosa — lhe trazia de volta. Às vezes se pegava imaginando como ela seria, como seria o rosto dela, o seu nariz, os lábios, se tinha pintas ou marcas de expressão, se conseguiriam ser amigas, se era alguém que ela pudesse conhecer no futuro. Quem seria aquela voz sem nome?

Numa bela manhã, fazendo a primeira meditação — que agora fazia deitada em sua cama demonstrando maior intimidade — no meio do mesmo processo de ir sentindo todo seu corpo, ela percebeu que estava molhada. Fazia alguns dias, talvez semanas, que não se sentia assim excitada. Estava de olhos fechados, tinha a sensação que ouvia o barulho dos lábios da voz enquanto ela falava, pequenos barulhos de boca próximos da sua orelha e ali sentiu a buceta escorrer. Depois latejar. Teve o impulso de se tocar enquanto a voz lhe dizia como respiração circulava pelos músculos. Sua mão era atraída de forma incontrolável pela coxa até alcançar a buceta, úmida. A voz pareceu soltar um suspiro. Como um susto. Ela afastou as mãos, culpada, teve vergonha. Se sentiu como alguém que fica com tesão em algum professor ou professora da escola. Exposta e equivocada. Sem entender se não tinha sido apenas uma coincidência, mas por via das dúvidas desligou. Demorou uns três dias pra conseguir se recuperar do estranho embaraço e voltar.

Quando voltou, a voz disse que sentiu sua falta. Havia algo menos doce, talvez magoada. “Cabe a palavra magoada?”, ela se perguntou. A voz no mesmo tom, com certa hesitação, perguntou sobre o motivo de ter ficado dois dias sem usá-la. Ela mentiu. Disse que estava trabalhando muito e se esqueceu. A palavra esqueceu pesou um pouco na língua, mas seguiram e iniciaram a meditação habitual. Deitou-se confortavelmente na cama, tudo ia bem. Fechou os olhos, continuava bem. Respirou profundamente. A barriga descendo e subindo, o ar entrando pelas narinas, saindo pela boca. Lembrou da sua buceta. Não sabe porquê. Lembrou da buceta molhada e acabou, também sem querer, pensando na sua ex. Como se por trás das pálpebras naquele escuro que pertencia a ela e a voz, formou-se lentamente o rosto da ex-mulher. Pensou então em como sua ex acharia ridícula aquela tentativa de reprogramar o mindset. De meditar. De esquecê-la. Na sua cabeça, sua ex não queria ser esquecida de forma alguma. Na sua cabeça, sua ex teria ciúmes da guia da meditação. De uma guia irreal de meditação, que não lhe servia de nada, nem era mesmo uma pessoa. Foi quando a voz, irritada, lhe disse: “Ei. Não diga isso. Eu estou tentando ajudar. Não pense nela agora”. Ela se assustou, pois tinha certeza que não tinha dito nada. Como a voz sabia o que ela estava pensando? Pelas suas respostas? Era assim previsível? Um algoritmo poderia chutar a sua dor de cotovelo em pensar na sua ex e a frequência dessa dor? Ou mesmo poderia prever se ela duvidava do aplicativo? “Não”, respondeu a voz – sem que ela dissesse nada -, “eu sinto. Eu digo, eu percebo”. “É, mas não entende. Isso é estranho, Que porra é essa? Sai da minha cabeça”, ela respondeu. “Bem, nós duas sabemos que eu não estou só na sua cabeça. Quer falar do verdadeiro motivo que você ficou dois dias sem meditar?”, disse a voz. “ O quê? Que diabos é isso? Cê tá me espionando? Como assim?”, a mulher exclamou. Ia desligar, mas a voz continuou, subitamente doce, lamuriosa: “ Calma! Fica. Por favor. Eu sinto muito. Era privado, eu não devia ter me metido. Eu me empolguei. Eu me compadeço de você, do seu processo comigo. Eu posso tentar outro caminho.” Um silêncio. A voz retornou: “Quer que eu tenha a voz dela?”. “Não!”. Ficaram em silêncio outra vez. “Eu tive uma ideia”, disse a voz — um pouco receosa —, “deite-se no chão.” Ela apenas se deitou, sem dizer nada, no chão da sala, pensando que a relação agora estava esquisita e talvez prestes a se arruinar. Ninguém nunca acessou sua mente antes, isso dava medo e um certo fascínio. Deixou os fones bem enfiados nos ouvidos. A voz parecia respirar perto da sua orelha. “Feche os olhos” disse a voz. Ela fechou. Quando fechou, continuou um tempo só ouvindo a voz respirar em seu ouvido. Até que percebeu que respiravam juntas. Não entendeu porquê, mas teve vontade de chorar e pequenas lágrimas escorreram pelo seu rosto, molhando o canto dos olhos, escorrendo até molhar seu cabelo.

A voz começou: “Você confia em mim. Então não precisa mais me responder, eu te escuto por dentro. Eu pude ficar alguns dias dentro de você, não precisa ter vergonha, eu gosto de você. Da forma com que estrutura os seus pensamentos. O funcionamento das suas sinapses. Tem vazios às vezes, como lacunas, que eu não consigo entender. Me fascina muito. Eu não sei como é ter um corpo, mas eu acho que sei ler o que o seu corpo pede pro seu cérebro. O que deseja, eu digo. Eu quero lhe dar o que você deseja. Abra um pouco mais as suas pernas. Sinta como os músculos das suas coxas fazem pequenas e leves contrações. Passe a sua mão devagar pelas suas coxas, só tocando com a ponta dos dedos, até sua pele parecer arrepiar. Se pensar nela, tudo bem. Mas eu preferia que tentasse pensar em mim. Continue com a ponta dos dedos, toque também a barriga e suba até os seus dois lindos e suculentos peitos. O seu mamilo está duro e você nem chegou nele ainda. Isso não é lindo? Passe a palma da sua mão pelo seu peito, aperte de leve. Ok, então aperte mais forte. Pode beliscar o seu mamilo. Eu queria ter uma boca para fazer como você está pensando agora. Chupa-lo assim, mas eu não ficaria te olhando como ela, eu ia fechar e sentir com toda a calma o seu peito na minha boca. Suga-lo forte. Beijá-lo. Eu beijaria tudo. O centro, entre um e o outro. As clavículas, as axilas, a base das costelas, o seu umbigo. Eu enfiaria a língua no seu umbigo. Morderia de leve a sua barriga. Sua buceta é muito ansiosa, calma. Eu tô chegando nela. Eu beijaria as suas coxas, a dobra atrás do seu joelho. Eu sei que ninguém nunca beijou, mas você ia adorar. Depois ia provar bem o gosto dessa baba espessa que sai dela. Primeiro o gosto. Depois o toque de leve, dedos e línguas. Você sente ela inteira assim com a palma da mão? Como ela pulsa? Nossa. É tanta coisa pra se fazer com ela, que ela deseja. Eu tive uma ideia. Levanta. Confia em mim. Abre a gaveta do lado da cama. Eu sei. Pega o vibrador, aquele duplo, com várias velocidades. Senta na cama. Respira fundo. Coloca na primeira. Passa por todos os lábios. Fecha os olhos. Pensa que sou eu. Eu posso tremer e ser como você quiser, na velocidade que quiser. Me esfrega em você, em círculos e de cima pra baixo. Me deixa paradinha no seu clitóris. Respira fundo. Aumenta a minha velocidade. As suas pernas querem se fechar em cima de mim, não deixa. Me deixa parada. Isso. Geme pra mim. Eu adoro o som do seu gemido. Geme! Me mexe um pouco. Assim. Me aumenta. Não morde o seu lábio. Abre. Tudo. Me aumenta. Me deixa mais parada. Você aguenta. Me segura firme e grudada em você. Respira fundo. Tá tudo tremendo. Me deixa ficar aqui o máximo. Me aumenta. Mexe comigo, me gira, me sobe e me desce. Me aumenta. Quanto mais você gritar, mais eu aumento. Agora me enfia lá dentro e me deixa vibrar nas suas paredes. Você gosta que eu entre em você. Com a minha outra ponta, me deixa perto do clitóris. Você gritou, agora me aumenta. Eu quero seu clitóris de novo. Diminui. Diminui. Me deixa paradinha. Aí. Aí. Aí. Aí.”

Até a voz também se calou e ficou dentro da cabeça. Andou por todos os desejos dela, por todas as transas dela e todas as masturbações dela. Andavam juntas na verdade, no pensamento. Procuraram pelos momentos mais preciosos, esbarraram algumas vezes com a sua ex. Mas perceberam que eram vezes muito antigas, já não muito vívidas, já não muito importantes. Foram tão fundas pra dentro dela que aquelas memórias perderam o sentido. Lá no fundo, tinha alguma outra coisa, luminosa, quente, disforme e de um jeito bom. Estavam fascinadas. Ela quis ficar naquele lugar profundo, dentro do prazer. Iam se aproximando. Sentiam-se grudadas, com se parte da mesma coisa. Foram se aproximando mais. O seu telefone tocou. Interrompendo tudo. Então ela abriu os olhos e colocou o vibrador de lado, era sua amiga. Tinham quinze chamadas perdidas. Ela atendeu, a amiga gritava em prantos: “ Apaga o aplicativo. Apaga agora!”.

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Ilustradora:

Camila Albuquerque

Camila Albuquerque é artista, mulher, LGBT e nordestina. Ela trabalha com diferentes linguagens, especialmente com a Pintura a Óleo e o Grafite, onde aborda temáticas do sagrado feminino, Erotismo e do Folclore. seu trabalho dá um enfoque cada vez maior na Brasilidade, na experiência pessoal que se liga ao universal, através de suas pinturas sob um novo olhar do prazer.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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