Nesse mês de abril chegou ao fim a novela global Amor de Mãe (2019-2021). A acompanhei, principalmente, na reta final. Desde seu o início ouvi muitos burburinhos a respeito da trama. Do quando estava sendo inovadora. De fato, Manuela Dias escreveu uma história não convencional. Ao invés de focar numa protagonista, desenhou três. Quer dizer, quatro. Já que Camila (Jéssica Ellen) também é central na narrativa. Dentro da estrutura de roteiro, chamamos esse modelo de multitrama ou multiplot. A dramaturgia contemporânea tem utilizado com frequência essa estrutura para fugir do padrão clássico de apenas um protagonista dentro da jornada do herói.
Além dessa questão, Manuela Dias tratou de temas sociais importantíssimos. Colocou no debate a questão do racismo, da educação, do capitalismo predatório que destrói o meio ambiente e explora as pessoas, além de um monte de coisa mais. A novela, por si só, apresenta um grande potencial social transformador. Há uma cena que me marcou bastante – a da captura de Tiago (Guilherme Rodrigues), filho adotivo de Vitória (Taís Araújo), pela polícia. Ao revê-la no resumo que aconteceu antes da retomada da novela (após a pausa por conta da pandemia) lembrei imediatamente do caso dos meninos que estão desaparecidos em Belford Roxo. Não sabemos o que aconteceu com eles, não sabemos se houve “dedo” de policiais escrotos. Porém, sabemos da ausência do Estado em investigar o caso. Isso já demostra a perversidade do racismo que Manuela apresentou com delicadeza, horror e maestria.
Embora admire profundamente o trabalho da autora, reconheça todo seu esforço dramatúrgico e também enquanto mulher para chegar onde chegou – na maior emissora de televisão do país, escrevendo para o horário nobre, num lugar onde os espaços de poder estão ocupados primordialmente por homens – preciso fazer algumas críticas ao desenho das personagens da novela. A crítica não se refere diretamente a autora e não desejo aqui desqualificar seu trabalho. Muito pelo contrário. Tenho muitos aplausos.
No podcast Calcinha Larga, Manuela se descreveu como grande obcecada. Confesso que também me reconheço nesse lugar. Para ocuparmos certas posições num mundo dominado por homens, a obsessão, o controle, o perfeccionismo, por vezes, se tornam necessários. Não só por isso. Fazer as coisas bem feitas é fonte de prazer para as mulheres. Dá paixão, tesão. Mulher tem sede por criar, trabalhar e transformar. Mesmo diante de tantas opressões.
Nesse caminho, se queremos mesmo mudar o mundo, transgredir os papéis de gênero, precisamos entender que o poder da narrativa – talvez a forma mais eficiente de mudar o mundo – está na nossa mão. Na mão das escritoras, roteiristas, dramaturgas, jornalistas, produtoras de conteúdo (o que também me incluo por aí em alguns lugares). Então, precisamos entender como podemos fazer melhor uso desse poder. Como podemos ser perspicazes e sagazes.
Na criação narrativa, de modo amplo, é preciso olhar para nossos vícios sobre a definição das características das personagens. Do desenho do papel da mulher, dos homens e dos arquétipos que ambos representamos na sociedade. As escritoras, principalmente, precisam estar muito atentas para não reproduzirem em suas obras a lógica do sistema colonial-patriarcal. Comecei esse debate no meu Instagram e continuo aqui na coluna porque acredito na importância de avançarmos. Mais uma vez reforço: não me coloco em disputa com a autora (até porque seria impossível), não quero desmerecer ou cancelar seu trabalho. Trago algumas questões ao debate porque considero essenciais.
Sei que a pandemia atrapalhou bastante a dramaturgia da obra. A forma como algumas personagens foram obrigadas a caminhar, a fechar sua jornada. Mesmo assim, algumas definições gerais são extremamente problemáticas. Elas reforçam estereótipos. O senso comum. A respeito da manutenção de estereótipos, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie debate sobre o perigo das histórias únicas, como elas reforçam uma série de violências para diversos grupos oprimidos na sociedade.
Para entrar na discussão da novela, vamos ao tema. Ao amor de mãe. Será que a forma como a novela apresenta o amor de mãe é engrandecedora para quem assiste? Ou será que ele reforça uma visão de anulação da mulher diante de sua função social estabelecida no patriarcado, a função da reprodução? Ou seja: viver o amor de mãe seria a necessidade primária das mulheres? Sua função mais importante no mundo? E o principal: mulheres só são felizes e realizadas quando são mães?
Esse papo de feminista pode parecer chato, eu sei. Apesar de constantemente reclamar das injustiças do design de Deus, a maternidade e a função biológica de gerar e parir não é um problema. O amor da maternidade pode sim ser encarado como uma coisa linda, divina. O que precisamos questionar são as estruturas sociais criadas pelo o homem. As estruturas no qual nosso potencial reprodutivo confere a eles poder e a nós opressão, submissão. Quando dizemos que a função mais importante da mulher é ser mãe, a quem isso interessa? Por isso, entendo que mística da maternidade reforçada pela novela é problemática em muitos níveis. Não nego aqui o amor de mãe, mas questiono a forma como esse amor vem sendo construído através das narrativas.
Dentro disso, me incomodou bastante a trajetória da personagem Thelma (Adriana Esteves). Eu sei que é uma novela, que precisa ter uma vilã (precisa mesmo?). Que as pessoas curtem disputas (curtem mesmo?). Porém, induzir que Thelma (Adriana Esteves) é quem é por ter um amor de mãe exagerado, por amar demais, não é algo legal. Ou que ela se tornou “louca” porque perdeu marido e filho num incêndio. Se existem mulheres como Thelma, o que não acredito muito, a razão delas serem assim não é amar demais, é uma psicopatia. Uma necessidade doentia de controle a partir da dissimulação. Acredito mais no amor como liberdade, como respeito. Estamos longe de alcançar esse amor, entendo. Mesmo assim, acredito na necessidade de buscarmos um amor enquanto prática de liberdade.
Thelma fala ainda de um lugar retratado com frequência nas narrativas – mulher louca, descompensada, histérica. Para mim, isso é um grande gaslighting teledramatúrgico. Uma estratégia extremamente violenta com as mulheres. A quem essa construção interessa? O que ela reforça? Faça as contas: das novelas que você assistiu, tem mais homens ou mulheres no papel de vilão histérico? Puxando aqui na minha memória (não sou a maior noveleira, posso estar cometendo injustiça) só me recordo de Felix (Matheus Solano em Amor à Vida), a bicha má. Ou seja: um personagem masculino de trejeitos lidos como femininos. Em Amor de Mãe temos o Álvaro (Irandhir Santos) como outro grande vilão. Álvaro, porém, é um psicopata frio, calculista. Prioriza o dinheiro, o lucro. Não esconde que sua natureza é essa. Não simula ser quem não é. Não mata porque ama demais.
Enquanto Thelma é a louca, Lurdes (Regina Casé) projeta um ideal de mulher, de amor de mãe, que não é novidade. Lurdes é o arquétipo da Virgem Maria. Um modelo a ser seguido por todas nós – a bondosa, a prestativa, a sofrida, a que perdoa, a que nunca se revolta, adoece ou surta. A super mulher. Como a novela acaba? Com Lurdes visitando Thelma, a mulher que lhe fez prisioneira, que tentou assassinar sua filha e um monte de coisa mais. Lurdes a perdoa no leito de morte porque nela não cabe ódio, só perfeição. Como isso pode ser saudável para gente? Não seria esse padrão de doçura e feminilidade que nos aprisiona a tanto tempo? Que não permite a nós o lugar de revolta no mundo?
O percurso Vitória na trama também nos diz muito perversamente qual é o lugar da mulher no mundo. Se, quando jovem, optou por não ser mãe dando seu filho a uma criminosa para poder seguir seu sonho de ser advogada de sucesso, o que aconteceu? O arrependimento, obviamente. Para alcançar a felicidade, a alternativa foi se tornar mãe e recuperar o filho rejeitado. Nesse mundo, só homens podem escolher não ser pai. Inclusive, se houvesse aborto legal e seguro aqui esse conflito poderia nem existir. A trajetória da Vitória reforça muito violentamente o estereótipo de que uma mulher só é realizada através da maternidade. Outra questão igualmente tensa é: ter carreira de sucesso, priorizar o dinheiro, significa necessariamente trabalhar para um criminoso? Que crença essa trajetória quer reforçar? A de que uma mulher não deve priorizar o sucesso profissional? Esse espaço só cabe aos homens, então?
Também quero discutir a trajetória da personagem interpretada por Jéssica Ellen. Para Camila, mulher negra, não restou outra alternativa a ser forte. Diversas tragédias aconteceram em seu percurso. A imagem de professora heroica que toma tiro, faz o discurso que está cansada, mesmo assim segue fazendo de tudo pelos seus alunos, ganha prêmio por garantir condições educacionais na pandemia, não estaria colocando nas costas dos professores uma responsabilidade que é do Estado? Garantir segurança, condições para que estudantes possam estudar, incluindo durante a pandemia, não é responsabilidade do Estado? Será que esse papel de heroico não é desumano? Será que ele não desumaniza professores, mulheres negras, e protege o Estado de suas responsabilidades? É possível professores terem saúde mental quando as condições de trabalho são essas apresentadas? Ou piores? É possível jogar nas costas dos professores a mensagem “seja como Jéssica”?
Outra coisa que me incomoda muito nas novelas – em Amor de Mãe não é diferente – é a imagem do homem banana. Enquanto o arquétipo da mulher louca está sempre presente, o do banana não falta. Danilo (Chay Suede) é um grande sem ação. Bonzinho, parado e sem brilho, embora no final tenha descoberto o cativeiro de Lurdes. Por mais que Chay Suede seja um grande gostoso, juro que não consegui sentir tesão nenhum por Danilo/Domênico. Camila merecia um homem com mais sal, você não acha?
Da mesma forma, Magno (Juliano Cazarré) fica perdido diante de uma mulher ardilosa no meio da trama. O pior, para mim, é a Sra. Unicórnio. Durval (Enrique Díaz), grande bananão, simplesmente se ausentou da criação da filha. Sumiu no mundo, retornou quando quis (se não me engano, Thelma o influenciou a se reaproximar da filha) e foi perdoado. Afinal, nesse mundo, um homem não precisa de muito para ser perdoado. A eles a segunda chance. A terceira, a quarta, ao infinito e além. Juro, fiquei com ódio da mulher e filha por terem o aceitado de volta numa boa. Assim, o núcleo acabou como uma família feliz de comercial de margarina. Afinal, não é esse modelo nosso objetivo final de vida?
Diante de todas essas questões, o que acho mais chato nas novelas é essa dualidade cansativa entre o bem e o mal. A vida tem muito mais nuances. Deus e diabo, mocinha e vilã, é uma narrativa cristã. Não ajuda a gente a se olhar, a olhar para sociedade e reconhecer o que precisa ser transformado. Somos Deus e diabo ao mesmo tempo. Não adianta só colocar a culpa no outro, no vilão. Fundar mitos ou salvadores da pátria. Temos que desenvolver responsabilidade individual e coletiva. Por isso, chega de reforçar que: a mulher resta o perdão, o nordestino é antes de tudo um forte, mulher negra precisa ser guerreira, professor é herói, mulher só é feliz através da maternidade e um monte de coisa mais.
Entendo que o embate de Thelma e Lurdes aconteceu do modo que aconteceu pela necessidade de fechar a novela rapidamente por conta da pandemia. Ou, talvez, seja impossível para a autora (por mais que quisesse) abandonar essa narrativa clássica de mocinha-vilã. Como disse inicialmente, a novela tem muitos pontos fortes. Muitas escolhas narrativas a serem exaltadas. Porém, o desenho dos personagens reforçam alguns estereótipos. Contam histórias únicas sobre ser mulher, mesmo diante de diversas nuances. Narrativas transformadoras precisam sair desse lugar comum. Precisam destruir padrões. Desmantelar esses papéis sociais pré-estabelecidos.
Tenho plena consciência que não é fácil, não é simples, não é apertar um botão. Se estivesse no lugar de Manuela, não sei se conseguiria. O poder de quem produz as narrativas, quem paga a conta, além dos autores, também é decisivo. Porém, o mundo está mudando. As narrativas estão mudando. As plataformas de streamming e as séries televisivas já traçam caminhos diferentes, ainda que muitas obras sigam reproduzindo antigos padrões. Acontece que a revolução tecnológica e da comunicação tem tornado o público mais consciente sobre as lógicas de opressão. Minha avó, por exemplo, têm 83 anos e passa seu tempo maratonando séries da Netflix. Mesmo sendo formada por novelas, seu interesse teledramatúrgico se ampliou. Cada vez mais, tem ela tem mergulhado em narrativas com personagens mais densos, mais tridimensionais, que não ficam vinculados apenas a bondade ou maldade. Não acredito que o público não aceitaria mudanças. Pode haver resistência, de fato. Porém, no mundo de hoje, penso que precisamos ser um pouco menos Shakespeare e um pouco mais Tolstói e Tchekhov. Evolução ou morte! Para mim, Manuela já deu muitos passos em direção dessa necessária transformação.
E você, o que pensa disso? Gostou da novela? Ficou com raiva do final?