Engana-se quem pensa que somente ornitólogos sentem profunda admiração por pássaros. Nossos amigos alados são fonte inesgotável de inspiração para os mais variados artistas. Do famigerado pintinho amarelinho, do saudoso Gugu Liberato, até o “Black Bird” revolucionário do queridíssimo Paul McCartney. Como não amar o “Kingfisher” do genial desorelhado Van Gogh ou o papagaio José Carioca criado pelo dono da Disneylândia? Sim, porque em minha terra tem palmeiras onde cantam os sabiás, que ensinam seno A e cosseno B para a garotada do C.A.
“Meu filho, mas e na literatura?” você deve estar se perguntando. Pois bem, mamãe, na literatura o fascínio é ainda maior. Talvez pelo ciúme da liberdade de poder sair à francesa de qualquer exposição em um terraço estranho ou por puro receio de ter suas asas frágeis queimadas pelo sol. Quem não se lembra do Corvo sacana do Edgar Allan Poe, o “mockingbird” da Harper Lee, em seu assombroso “O Sol é para todos”, “Fernão Capelo Gaivota” de Richard Bach, “A Águia e a Galinha” do teólogo Leonardo Boff, o tal Pardal de “Pulp” do Bukowski, “O Falcão Maltês” do Dashiell Hammett, e aquele bicho chato lá dos “Jogos Vorazes”? E eu não vou nem entrar no mérito do aclamado “O Peso do Pássaro Morto” da pavônica Aline Bei.
No entanto, se você é um bom observador, com espírito justo e contrário ao especismo dissimulado, tenho certeza de que percebeu a ausência de um velho conhecido. Sim, ele mesmo, o Pombo! O sobrevivente das aves, que vive à margem da sociedade voadora e é pejorativamente conhecido como o “rato de asas”, uma expressão que busca ofender de uma só vez dois animais e destrói qualquer ponte futura de diálogo quando estivermos em uma inevitável guerra pelo domínio dos céus e dos túneis.
Porém, para juntar forças aos idosos das praças que lançam milho todos os dias para aplacar nosso descaso, Luís Fernando Amâncio amansa, com o perdão do trocadilho, nossos prováveis algozes com o seu ascendente “O Voo Rasante do Pombo Sem Asas”.
Ultrapassado esse longo introito, que se provará inútil já na próxima explicação, preciso avisar que não é um livro de, nem para, especialistas em bicos. (O que pra mim, é ótimo. Afinal, não tenho essa admiração toda por essas tais aves que o começo do meu texto deu a entender. Pelo contrário, em meu parco entendimento, voou é pássaro. Do morcego ao dragão. Eu sei que vai ter gente defendendo que o Dragão é réptil, mas a partir do momento em que ele sai do chão, bate suas asas, opta por voar, ele fez sua escolha, portanto, pássaro. Aliás, eu sempre considerei o dragão uma espécie de bombeiro do mundo invertido. Bem, isso é material para outro ensaio.). Fato é que esse livro não é sobre dragões, nem sobre pombos, tem apenas um canário para cumprir a cota exigida pelo “Birdperson” do Ricky and Morty, todavia, paira bem acima da média da nova literatura nacional.
Nesse bando, também conhecido como antologia, são 21 contos que vão depenando o “status quo” literário, trazendo novas ideias e estruturas, mesclando narrativas longas, curtas e mínimas, os famigerados microcontos, que provam de forma inequívoca que o autor transita como um nativo nesses três mundos. Há de se destacar o humor, ora mordaz, ora mais refinado, que invariavelmente Amâncio aplica em toda sua obra, bem como o tom crítico que igualmente alterna suas versões entre o elementar e o sub-reptício.
O primeiro conto é o “Problema”, onde é possível escutar a voz do personagem tamanha é a proximidade criada com o leitor. Nesse sentido, a linguagem é precisa. Você fecha os olhos —depois de ler, claro, ou durante, se o formato for em audiobook — e consegue ouvir a voz desse desconhecido contando sua história triste e improvável, que vai te convencendo até o final, mas não sem uma surpresa desorientadora.
Em “O garçom paga a conta”, o autor apresenta uma dessas historietas intervalares, divertidíssimas, que abrem três ou mais interpretações para uma situação ordinária que alcança seu extremo. Uma peça rara que combina sobremaneira forma e conteúdo, gerando dúvidas e certezas em cada leitor.
“Cheiro de Bicho” é um dínamo, famoso nos desafios literários do Entrecontos por sua ousadia e potência. Nele, há uma sublime construção de personagem, com passado, motivação, conflito e uma inesperada virada. A realidade que choca, que constrange, que dói.
Outro grande destaque desta peculiar reunião de histórias é o “Notas sobre um linchamento” que faz uma crítica social e, em último efeito, a própria natureza humana. Portanto, o autor atira suas pedras para dentro, nos dutos sujos e escuros do nosso âmago, revelando que o líder, o detentor do poder é, na grande maioria dos casos, apenas um reflexo do ideário predominante nessa cloaca que chamamos de mundo. Ok, falando assim parece bem menos engraçado do que ele é, admito. Leia, tire suas conclusões e volte aqui para arremessar alguns pedregulhos… pois com elas construirei minha casa na árvore. (Desculpe-me, não podia perder a oportunidade de alfinetar a sabedoria coach nossa de cada dia.).
Em “Meia idade”, Luís alcança o ápice do contar, convidando para sentar-se ao seu lado e observar o protagonista com uma lente, do alto, como se a vida desse sujeito fosse um experimento em uma placa de Petri. E nesse livro são muitos os personagens pitorescos; um juiz de futebol com crise de consciência e um matador sem nenhuma sombra de remorso, feito um típico cidadão cristão de bem. O cenário, Bom Jesus do Cascalho, o que parece ser a pasárgada do Amâncio, ou melhor, Macondo, ou melhor ainda, Bacurau! Que também é um pássaro, sacou?
“Ladrão” e “Ata de Reunião” são duas joias da metalinguagem, guiando o leitor pelas nuances da estética, que envelopa essas histórias, e pelos caminhos claudicantes da criatividade. Como praticamente em todas as partes dessa coletânea, Luís Fernando Amâncio sustenta os episódios em um binômio estilo/ideia carregado de muita força dramática, com conflitos e incidentes.
Por fim, para não dizer que não falei sobre alpiste insosso e chumbinhos desgarrados, confesso sem qualquer pudor ou arrependimento que não gostei do “Canário Rei” justamente o único conto que faz menção a um representante dos voadores. Sim, sou desses!
São 120 páginas que recomendo ingerir com mordidas rápidas e vorazes, tal qual quem devora uma torta de pombo sem pombo descrita por George R.R Martin em um de seus banquetes detalhadamente descritivos.
Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️
Mais vale um pombo na mão do que uma horda de cegonhas trazendo filhos de um carnaval, que já não me lembro, voando.
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