“Pele Velha” de Giselle Fiorini Bohn

Da dura poesia concreta da carnificina, da deselegância sintética das serotoninas

Por razões que todo homem deveria saber, a literatura mundial sempre privilegiou histórias sobre Pais e Filhos: Heitor e Príamo em Ilíada, Jesus e seu Papai no Novo Testamento, Pinóquio e Geppetto numa fábula de Florença que não me recordo o nome, “Carta ao Pai” do grande Franz Kafka, “Como Deus Manda” do Niccolò Ammaniti e, recentemente, em território nacional, Cristovão Tezza no seu atordoante “O Filho Eterno”. Mesmo os famigerados russos, Renato e Turguêniev, abusaram do óbvio e apelaram para os batidíssimos “Pais e Filhos”.

Imagem do cantor Renato Russo segurando rosas.
Renato Russo levando flores para a mãe
Imagem da capa de uma das edições nacionais de "Pais e Filhos" de Turguêniev
Turguêniev copiando a canção da Legião Urbana

Sim, eu sei que é pau, é pedra, é pai, é filho e não vou nem entrar no mérito do Espírito Santo. Mas onde estão os romances sobre Mães e Filhas? Onde estão? Escondidos, camuflados, proscritos, tombados em prateleiras de poucas Lygias e Sylvias? Pode ser. Mas, aqui não, meu irmão! Nesse “Adorei! Nota 2.”, embora Trevous, eles estão na luz. Vai ter mãe e filha, sim! E se chorar ainda vai ter avó e netinha.

A bem da verdade, em minha insuspeita opinião, a relação entre genitoras e descendentes sempre me pareceu muito mais fascinante do que a disputa protocolar de testosterona. E se você, machão, não gostou da minha simplificação, a gente pode resolver no braço. Só marcar horário e local! Enfim, como eu ia dizendo, hoje trago uma história que desenlaça uma complicada e bela relação entre duas mulheres, “Pele Velha”, romance de estreia de Giselle Forini Bohn.

Preliminarmente é crucial destacar a inspirada capa que acrescenta uma nova epiderme, com o perdão do trocadilho, por intermédio de um recurso ótico que brinca com poros e pixels, aproximação e distanciamento. O enredo, em suma, apresenta uma protagonista que recebe alguns escritos de sua genitora — verdadeiro legado — enviados um pouco antes de sua morte. A premissa, talvez a mais velha na história da humanidade, é a busca, em maior ou menor efeito, das próprias origens. No entanto, o que observamos em “Pele Velha” é a personagem principal tentando se afastar racionalmente das perguntas que buscam conclusão, do atavismo implacável que incomoda, ou seja, Giselle subverte a jornada habitual da caça ao tesouro já bem acomodada na literatura. Para tanto, ela constrói uma filha niilista, autossuficiente ao extremo (ao menos assim ela se enxerga) com um insólito rancor pela figura materna.

Todavia, após uma dilacerante luta interna, ao encarar os relatos, poemas e cartas, essa personagem começa a compreender sua mãe e, consequentemente, entender-se um pouco melhor. Ao longo das páginas entramos em uma gangorra, numa grande continência de histórias, onde o estilo das escritas dessas personagens duelam: do passado, uma mãe que discursa de modo mais polido, elegante, sensível, enquanto no presente, sua herdeira imprime um certo desespero visceral em seus riquíssimos e imparáveis fluxos de consciência.

Foto de Giselle Fiorini Bohn ao lado de seu livro "Pele Velha".
Giselle Fiorini Bohn e seu livro

Nesse sentido, é preciso abrir um parêntese (pois a autora joga na cara do leitor toda sua habilidade, alternando pessoas e estilos com muita naturalidade, contrastando um pretérito angustiante frente ao tempo corrente de muita revolta). Além disso, Giselle Fiorini Bohn se utiliza de recursos interessantes como hifens para juntar palavras e criar-uma-voz-dentro-do-próprio-perspicaz-pensar, e parágrafos em bloco e sem pontuação, com o intuito de imitar o frenesi de uma queda na qual você respira junto com o personagem ou melhor não respira até ficar roxo e cair para trás o que obviamente não aconteceu comigo mas fiquei sabendo que ocorreu com o borracheiro do meu primo na semana passada que morreu disso e colocaram Covid no seu atestado de óbito!

Por fim, mesmo eu, que sou um cro-magnon apático no que diz respeito ao lirismo da poesia, consegui me envolver no contexto e, ainda que seja duro admitir, derramei uma lágrima ou duas… mil. Pois é, quem vê barba, não vê maldição e, como diria Schopenhauer ou o Rocky Balboa, o amor é fofo, a dor é uma tragédia, o amor aumenta seu batimento cardíaco, a dor para seu coração. E, por mais que meus detratores digam o contrário, permaneço vivo e chorão!

Ah, miguxos, sugiro ler “Pele Velha” uma vez só!

Avaliação: ⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️

Bonequinho bate palma com dificuldade, afinal não consegue levantar por completo seus braços pois está soterrado por arrependimentos de sua própria relação parental conturbada.

* * *

Imagem de capa do livro "Pele Velha" de Giselle Fiorini Bohn . Nela vemos parte do que parece ser um rosto de uma mulher pixelado, de forma que o que vemos é um borrão mais ou menos definido.

Título: Pele Velha
Autor: Giselle Fiorini Bohn
Editora: Autopublicação
Ano: 2020

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Rafael Sollberg
Rafael Sollberg
Rafael Gondim D`Halvor Sollberg tem nome de príncipe escandinavo, mas é plebeu latino-americano até a raiz dos ossos. Antinatural em qualquer lugar, embora nascido no Rio de Janeiro, é um sociopata com consciência social, ateu pouco convicto, escritor moderado e leitor radical. Integrante proscrito do Podcast “Esculachos Cacofônicos” e vídeo-resenhista de clássicos clandestinos da literatura nacional no Canal do Youtube: “Adorei! Nota 2.”.

6 COMENTÁRIOS

  1. Grande Rafael Sollberg…
    Ótima resenha. Eu li Pais e Filhos do Turgueniev, e o personagem que é o filho, o médico, também é niilista.
    Há mais relações entre os dois livros?

    • Fala, Peu! Cara, você sabe que essa minha introdução foi mais uma provocação e que nem tinha me atentado para este fato que você mencionou. Tirando o choque de gerações, não consigo tecer mais nenhuma relação entre os dois livros. Que bom ver você por aqui, grande abraço!

  2. Adorei a sua resenha, sempre muito inteligente e descontraída. O livro da Gi não merecia menos. Bjs.

    • Valeu, Fernanda! Esse livro é realmente muito bom. “30 textos para descontrair” certamente vai pintar por aqui daqui a pouco!

  3. Eu adorei a resenha! Parabéns, Gi! Você é muito sensível, criativa e cheia de ótimas histórias que a gente se vê nelas! Quero o livro impresso aqui no Brasil! Quando tiver, eu vou buscar! Beijos amiga querida!

    • Obrigado, Alessandra. Giselle tem uma perspectiva sensível e muito singular, além das ótimas histórias. Volte sempre!

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