Scanners: Sua Mente Pode Destruir

Fragmentos de um texto não escrito sobre Scanners: Sua Mente Pode Destruir de David Cronenberg

O que se segue são anotações de algo não terminado. O tema, como o título sugere, é o filme “Scanners: Sua Mente Pode Destruir” (1981) de David Cronenberg. Devido a sua natureza embrionária, as ideias e reflexões que virão podem parecer um tanto desconexas ou inconclusivas, nos levando a verdadeiros becos sem saída retóricos. Mesmo assim, depois de dar voltas e voltas no mesmo lugar, preferi publicar o texto tal como está — uma forma de liberar espaço em minha mente e de por um ponto final, ainda que momentâneo, nesta questão.

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“Scanners” é um exemplar curioso na obra de David Cronenberg, apesar de muito lembrado e cultuado, não parece ser tão bem avaliado ou reconhecido quanto merece. Talvez isso se dê por sua aparente despretensão e convencionalidade, ou por ser mais comportado do que outros filmes do diretor — principalmente quando pensamos em seus trabalhos entre os anos 70 e 90. Apesar disso, ou talvez, justamente por isso, vejo tantos elementos interessantes nesse filme.

Poster clássico de Scanners, onde há um desenho do personagem Michael Ironside com os olhos totalmente brancos e com diversas veias saltando ao longo do corpo
Material publicitário de Scanners

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O cinema de Cronenberg sempre foi muito associado a dicotomia corpo-mente, e há uma boa razão para isso. Seus primeiros filmes — aqui incluo seus curtas “Transfer” (1966) e “From the Drain” (1967) — parecem transitar entre esses dois polos temáticos. Mesmo em filmes como “Calafrios” (1975) e “Enraivecida na Fúria do Sexo” (1977), em que a matéria parece dominar a mente, ainda que indiretamente, está lá — evidenciada pela sua submissão aos transtornos físicos, pela perda da razão. Mas é em “Transfer” e “From the Draim” e, principalmente, em “Stereo” (1969), que a mente humana e sua influência na forma de apreensão do mundo externo pelos indivíduos são abordados de forma mais direta. Desta forma, estes últimos estão bem mais próximos de “Scanners”.

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Em “Stereo”, aliás, há muitos elementos que reaparecerão em “Scanners”. Entre eles, os mais óbvios, como a presença de poderes telepáticos ou a reutilização de ideias ou situações similares. Porém, estas semelhanças vão além disso. Tanto no longa de 69 quanto no de 81, há uma relação entre médico/pesquisador com paciente/cobaia em que a linha divisória entre as partes são borradas. Em “Stereo” — que simula um registro em vídeo de uma pesquisa —, para melhor entender a natureza dos poderes das cobaias, os pesquisadores/terapeutas são incentivados a ter relações com os cobaias/pacientes. Já em “Scanners”, esta relação se dá de outra forma.

Cena de Scanners em que o ator Patrick McGoohan olha para alguém fora de quadro, o fundo está desfocada.
Patrick McGoohan como Dr. Paul Ruth
Stephen Lack, em uma cena de Scanners. Ele olha muito sério para alguém ou algo fora de quadro.
Stephen Lack como Cameron Vale
Michael Ironside como Darryl Revok

No caso do Dr. Paul Ruth (Patrick McGoohan), ele não só é pai de Cameron Vale (Stephen Lack) e Darryl Revok (Michael Ironside) como usou o efemerol, componente que causou o surgimento dos scanners, em sua própria esposa. Este é um ponto interessante, se pensarmos bem, Paul Ruth parece estar de alguma forma relacionado de uma figura recorrente no imaginário do Sci-fi e em alguns filmes do próprio Cronenberg: o do cientista maluco e megalomaníaco ou do “Prometeu moderno” — algo que é mencionado brevemente neste texto de Sergio Alpendre e em outros trabalhos dedicados a obra do cineasta. Assim, como não lembrar do Dr. Hal Raglan (Oliver Reed) em “Os Filhos do Medo” (1979), de Seth Bundler (Jeff Goldblum) em “A Mosca” (1986) ou Brian O’Blivion (Jack Creley) de “Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (1983). Nestes personagens há uma busca quase messiânica pelo futuro, pelo amanhã. Na verdade, podemos ver tais características até mesmo em um personagem como Vaughan (Elias Koteas) de “Crash – Estranhos Prazeres” (1996).

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Mas por outro lado, em “Scanners” também há Kim Obrist (Jennifer O’Neill) e sua abordagem terapêutica baseada na integração e na busca de um autoconhecimento por meio de “uma união com o todo”. Ela, como uma scanners, busca criar uma comunidade de ajuda mútua. Dessa forma, já podemos ver um quadro um pouco mais complexo daquele que se poderia supor a primeira vista. Em “Scanners” existe um “subterrâneo“, um submundo scanner, em que diversos grupos, com diferentes objetivos coexistem e, volta e meia, se confrontam.

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Em “Scanners” também se pode observar uma atmosfera de paranoia e conspiração, logo no início vemos Vale maltrapilho entrando em um Shopping em busca de restos de comida. Logo, nos é revelado que ele é dotado de poderes paranormais e em consequência disso ele é capturado por dois sujeitos misteriosos vestindo sobretudo. Nesta primeira cena do filme, em poucos minutos, nos sentimos em um terreno pantanoso. No decorrer da narrativa isso é uma constante, uma informação que obtivemos anteriormente ou são negadas, ou são substituídas por outras que virão.

Cena de Scanners em que dr. Paul Ruth de olhos fechados e com as mãos tapando os ouvidos tenta controlar seus pensamentos, atrás dele Braedon Keller aponta uma arma em direção dele
Braedon Keller (Lawrence Dane) vs. Paul Ruth

Outro elemento interessante é como este momento foi pensado pelo cineasta. Nesta cena notamos dois grupos de indivíduos muitos distintos: aqueles que conhecem e aqueles que desconhecem a existência dos scanners. Assim, há no longa uma verdade que é mantida em segredo e que só é conhecida por poucos indivíduos, ainda que de forma parcial e fragmentada.

Trecho da cena inicial de “Scanners”

Aqui fazemos um retorno a ideia de um “underground”, representado neste submundo de telepatas. Em “Scanners”, assim como em outros filmes de Cronenberg observa-se um mundo “subterrâneo” em que existem grupos, cultos, segredos ou acontecimentos que grande parte sociedade não tem conhecimento. Na verdade, se pensarmos o inconsciente, outra ideia muito presente no trabalho do cineasta, como um prolongamento desta ideia, podemos admitir que boa parte da obra do diretor gira em torno do que é oculto, secreto e desconhecido.

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Mas se há o desconhecido, há também a curiosidade e a vontade de entendê-lo e controlá-lo. Em “Scanners”, ao acidentalmente se dar conta que todas potencialidades do ser humano não foram alcançadas, uma vez que uma substância química foi capaz dotar alguns indivíduos com habilidades antes inimagináveis, inicia-se uma guerra pelo controle desse poder desconhecido. Mas há muitos “lados” e interesses envolvidos.

Darryl Revok, vilão de Scanners, em um vídeo antigo em preto e branco. Em sua testa há uma grande ferida.
Darryl Revok quando ainda era um dos pacientes do Dr. Paul Ruth

Não irei muito a fundo neste ponto. No entanto, o que vale destacar é esse ir em direção ao desconhecido não é algo exclusivo deste filme. Podemos ver isso, em maior ou menor grau, em outros filmes de Cronenberg. Mas o mais interessante é que nem sempre os protagonistas são os que originalmente empreendem esta busca. As vezes eles são vítimas desta, em outras acabam participando, meio ao acaso, sem nem ao menos compreender de fato o que tudo aquilo significa. Cameron Vale, o protagonista de “Scanners”, é um exemplo perfeito, ele parece unir os dois mundos.

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Outro ponto pacífico em relação a obra de Cronenberg são as transformações e/ou mudanças físico-psicológicas pelos quais alguns personagens passam ao longo de seus filmes. Geralmente isso se dá devido a um trauma físico ou psicológico, sejam eles acidentais ou não. No entanto, o que é praticamente certo é que uma vez que esses processos se iniciam, eles evoluem independente da vontade dos indivíduos. Uma vez afastados da “normalidade”, os personagens passam a perceber o mundo ao redor ou eles mesmo de outra forma — as vezes, inclusive, tendo sua forma de entender e apreender a realidade alterada.

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Há uma particularidade em “Scanners” que parece afastá-lo dessa ideia: Cameron desde o início sabe que não é “normal”. Suas habilidades já são de seu conhecimento, ainda que não compreendidas. No entanto, ao desenvolve-las, ao usá-las em suas investigações ou no combate a Revok, tudo o que ele acreditava como certo é posto em xeque, inclusive sua própria identidade. Algo que é levado as últimas consequências quando, após um longo embate telepático, Vale se apossa do corpo de Revok — e mais uma vez a dualidade corpo-mente é colocada em jogo, mas aqui o corpo é posto como um tipo de hardware, um suporte para a mente.

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Os personagens de Cronenberg são enigmas, suas motivações não parecem ser tão claras. Eles agem quase como uma engrenagem em um plano maior. Isso pode ser observado em “Scanners” e, de certa forma, até em filmes mais recentes como “Mapas para as Estrelas” (2014). Nos longas do diretor, o rumo das coisas nem sempre pode ser previsto. Os personagens, guiados por suas curiosidades, parecem ser submetidos a uma sucessão de acontecimentos e descobertas.

Close nos olhos de Michael Ironside
“Nós vencemos!”

Cameron Vale, por exemplo, vai de uma lado para o outro tentado seguir os rastros de Revok, mas acaba encontrando peças de um quebra-cabeça muito mais complexo. Em boa parte do filme o protagonista está a um passo atrás de seu adversário. Lentamente, ele é conduzido para uma armadilha. Crendo ser agente, ele na verdade é um fantoche. Assim, como outros personagens de Cronenberg, ele é levado por uma rede intricada de acontecimentos.

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Como dito anteriormente, estes são fragmentos de um texto não finalizado. Mas, se pensarmos nele apenas como uma tentativa de dar forma a alguns pensamentos soltos, quase como um tatear no escuro tentando encontrar algo que valha a pena, acredito ele que não é de todo mal.

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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