The Outsider (2020) é uma minissérie que se destaca bastante pela mistura de elementos de gêneros diferentes, juntando o criminal com o terror. Baseado em um livro de Stephen King, a série começa na pequena Cherokee City, no sul dos Estados Unidos, onde o detetive Ralph Anderson (Ben Mendelsohn) investiga o assassinato monstruoso de uma criança da cidade.
O conflito, estabelecido no fim do primeiro episódio, é que Terry Maitland (Jason Bateman), principal suspeito do crime e, até então o único suspeito possível, tem tantas provas a favor quanto contra sua inocência. É nesse cenário de incertezas e fatos inexplicáveis que o impossível começa a se tornar a única opção viável: uma criatura sobrenatural é a principal suspeita.
Seguindo essa premissa, se constroem regras narrativas que tentam abordar as temáticas do sofrimento, do medo e do pavor acerca dos elementos monstruosos da história. Sendo assim, hoje veremos como essas regras são utilizadas pelo trabalho de fotografia da minissérie.
O monstro:
Algo que só é verbalizado no quinto episódio da série, batizado de “Tear-Drinker” (o bebedor de lágrimas), é que o real culpado do assassinato é a versão de King para o Bicho Papão. Porém, ao invés de se tratar de uma criatura medonha de canções de ninar, essa representação da lenda segue regras muito claras para viver no nosso mundo:
1.Ele pode se transformar em uma cópia idêntica de qualquer pessoa existente, ganhando o mesmo DNA e digitais e tendo acesso aos olhos, ouvidos e pensamentos de seu alvo a qualquer instante. Para tal ele passa por um processo que lhe custa sua força e cerca de um mês para concluir.
2.Ele se alimenta de carne, principalmente humana. Carne animal não parece lhe saciar.
3.A dor e o sofrimento dos humanos são sensações que lhe agradam, sendo assim ele tende a se estabelecer em locais perto da morte, como cemitérios ou sítios com histórico de tragédias.
4.Aqueles que são tocados pelas suas ações tendem a sofrer e morrer. Famílias inteiras, geralmente das vítimas de sua caça, perecem em meio a dor e a tristeza que sua presença traz.
5.Ele também tem o poder de escravizar lacaios. Preferindo sempre aqueles com habilidades especiais e cheios de sofrimento. Ele os marca com uma queimadura em sua nuca e, por meio dela, entra em sua cabeça e manipula seus pensamentos.
6.Ele consegue acompanhar todas as pessoas que ele quiser – aparecendo em seus sonhos ou se manifestando por meio de uma projeção que os visita fisicamente.
Por se tratar de uma minissérie criminal em primeiro lugar, o roteiro de The Outsider tende a uma análise fria e cética acerca do assassino em questão. Sendo assim, todos os episódios anteriores ao quinto fazem uma construção bem estruturada dessas condições – nos fazendo lentamente entender a presença do sobrenatural nesse mundo.
Ao mesmo tempo, existe uma amostragem de cenas que abordam o sofrimento e a tristeza, algo que torna esse uma peça fundamental da história. O que é interessante é que assim como o monstro, a fotografia tenta se deleitar de tais sentimentos expressos pelos personagens. Colocando o publico numa posição de voyeur muito semelhante à criatura comedora de crianças.
Para isso, as lentes da série criam imagens seguindo as seguintes regras:
1.De forma geral, a focagem da minissérie é bastante fechada independente do objeto ou da pessoa em que esteja sendo utilizada. Sempre separando um plano de outro.
2. Além disso, é possível notar bastante o uso de enquadramentos próximos dos rostos dos personagens e muitas vezes em plongée – ângulo muito utilizado para criar relações de poder entre pessoas ou objetos. Porém, nesse caso é utilizada para destacar o sentimento dos personagens, nos fazendo sentir o peso sobre sua cabeça.
3. Ainda falando sobre planos, para provocar incomodo e falta de empatia, a fotografia da série se utiliza de duas estratégias: Ou ela faz planos abertos em que os personagens aparecem isolados ou distantes entre si;
Ou em planos mais fechados se faz um corte do corpo dos personagens que não são o foco do plano.
4. Existe também a quebra da regra dos terços, algo que aparece raramente na minissérie, mas que quando é utilizado tende a se somar com a focagem para criar planos mais particulares e passar a ideia de isolamento.
5. Para complementar com um tom mais melancólico, ambientes tanto fechados quanto abertos, tanto claros quanto escuros se utilizam de uma paleta de cores menos saturada e uma luz mais suave. Algo que, por si só, já ajuda no clima soturno da minissérie.
O mito:
Além dessa construção de voyeurismo, é interessante notar como tais aplicações da fotografia tem um papel fundamental na construção do mito do Bicho Papão de King. Ideia que só fica mais clara após rever os episódios da série, quando já se tem consciência de como a criatura é e como ela age. Porém, estes elementos estão presentes desde o primeiro episódio:
1.Se utilizando do foco mais fechado, quando se trata de planos que destacam objetos aleatórios ou sem muito significado para a cena, em certos casos pode indicar a presença da criatura de forma metafórica. Como um perigo que se espreita nos cantos.
2.Já a diminuição dos personagens em foco e o isolamento, utilizados pra provocar uma falta de empatia, também é aplicado nas primeiras aparições da criatura.
3.Além da paleta pouco saturada, existe uma utilização muito importante da escuridão e da penumbra para construir o pavor quanto a criatura. Quando se trata do Bicho Papão, uma coisa é certa desde a infância: se está escuro ele pode vir te pegar.
4.E por último, o plongée, antes utilizado para simbolizar o peso na consciência dos personagens, agora também tem um significado de superioridade da criatura quanto aos protagonistas da série. Da natureza quanto a humanidade.
A aceitação da realidade:
Ralph Anderson: Porque não tenho tolerância para o inexplicável. – T01E03: Dark Uncle.
Assim como a fotografia de Mr. Robot, já analisada aqui neste texto, o trabalho de câmeras de The Outsider tem um efeito dramatúrgico semelhante ao dar um tom mais realista para a minissérie. Porém, enquanto na primeira esse trabalho mascara certos atributos caricatos do roteiro, nesta obra ele torna a presença do bicho papão mais ameaçadora e palpável.
Como já citado antes, existe uma construção lenta e meticulosa até que seja verbalizada a suspeita de que a criatura é a real assassina. Até mesmo depois de que essa teoria é revelada, custa muito por parte dos personagens a acreditar que o seu real adversário é uma lenda sobrenatural para pôr crianças para dormir.
Porém, nesse meio tempo, todas as vezes em que, tanto o roteiro quanto a fotografia demonstraram a frustração e o sofrimento dos personagens quanto a investigação, também nos fazem passar pelo mesmo processo de aceitação de tal realidade. Uma espécie de “fases do luto” quanto a aceitação do inexplicável.
Holly Gibney: Quando os fatos estão cheios de coincidências misteriosas, o primeiro passo para ver as coisas claramente não é descartar os fatos, mas expandir a ideia do que a realidade pode implicar. – T01E06: The One About the Yiddish Vampire
Sendo assim, ao invés de ficarmos com o voyeurismo macabro do Bicho Papão, o efeito que a fotografia e o roteiro nos passa é de que aceitar o impossível é algo doloroso e lento. De que sempre vamos ter medo dele, e de que ele sempre nos ronda. Porém, assim como Ralph Anderson fez quanto a morte de seu filho, sua aceitação é necessária e libertadora.
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