Bem-vindos a Bridgerton: A temporada de casamento está aberta!

Nesse último fim de ano, enquanto estávamos meio blasés comendo rabanada e resto da ceia, Dona Netflix junto com Shondland (produtora dirigida por Shonda Rimes) jogou uma bomba no nosso colo – a série Bridgerton. Ao escutar o burburinho que logo se instalou nas redes, corri para assistir. Meu primeiro comentário foi “não estou com condições psicológicas para lidar com esse duque”. Sabe como é? Pandemia, paqueras e sexo em baixa. Ou seja: gatilhos. Gatilhos por demais. As reações na internet não foram muito diferentes. Haja mulher querendo ser pega de jeito, viu?! Homens, por favor, acordem!!

Obviamente, toda a fantasia tem uma problemática marcante. Na minha opinião, principalmente, porque Bridgerton se coloca como uma narrativa antiopressora. E nada mais opressor que um lindo conto de fadas.

Chegando aqui, preciso fazer um alerta. Vai rolar spoiler. Não tenho como prosseguir sem apresentar alguns fatos. Mas desconfio que isso não será um problema. Pelas fofocas que ouvi, não as de Lady Whistledow, a série é a mais vista em 76 países e já computa, no momento que escrevo, exibição para 63 milhões de assinantes. O fandom também está em polvorosa, mais de 8,6 milhões de usuários do Twitter mencionaram a série em comentários. E o ícone da abelhinha, sabe o por quê dele ser referência? 🐝🐝 Pera um pouquinho que já te conto.

Bridgerton nasceu a partir de um noticiado casamento. Em 2017, Shonda Rhimes, criadora de grandes sucessos como Grey’s Anatomy e Scandall, encerrou sua parceria de mais de 15 anos com a ABC Studio e fechou contrato com a Netflix. O criador, no entanto, é Chris Van Dusen, seu grande parceiro de equipe. Ele contou em entrevista que era apaixonado pela série de livros sobre a família Bridgerton da escritora de apimentados romances de época Julia Quinn. Chris sentiu que havia algo potente ali.

A primeira temporada, assim como o primeiro livro, apresenta o debute de Daphne (Phoebe Dynevor) e seu encontro com Simon Basset (Regé Jean Page), o rico e disputado Conde de Hastings. Os arquetípicos apresentados por ambos é bem clássico. Ela: doce, recatada, pura e desesperada para encontrar um marido. Ele: lindo, sexy, pervertido e fugindo desesperadamente do casamento. Embora cada um tenha razões para isso, o questionamento que trago é se hoje os dilemas são tão diferentes. Você, homem, foge de enlaces como o diabo foge da cruz? Você, mulher, ainda sonha em casar com o príncipe encantado? E o mais importante: por que fazemos isso?

Como não havia Tinder em 1813, a alta corte inglesa fazia os jogos narcísicos, com exibição de corpos e roupas caras, nos bailes de gala. As negociações de casamento aconteciam ali. Daphne, bichinha, mesmo depois de ter sua figura elogiada pela rainha Charlotte (Golda Rosheuvel) — afinal, é a beleza que mede o valor da mulher —, estava com dificuldade de encontrar pretendentes. Seu irmão Anthony, o Visconde, começou a assustar todos e lhe reservou o mais asqueroso dos homens.

Eis que surge o plano: já que Simon não casaria e Daphne precisava ser desejada, eles resolvem fingir um lance. Dessa forma, Daphne enseja a disputa de ego masculina, atraindo olhares e Simon espanta as mães desesperadas. Se fosse hoje, com toda certeza, um coach de relacionamento poderia ter bolado esse plano perfeito. Logo em seguida ao fingido e proibido romance, adivinha o que surge? A mais linda história de amor! Blerght! 🤮🤮

Para quem assistiu, sabe que a treta foi mais profunda. O casamento acontece meio na forçação, num clima estranho. Mas na lua de mel, a paixão vem à tona. Lacre rompido, noites de amor e sexo selvagem. As coisas só começam a ficar estranhas quando Daphne entende a prática do coito interrompido do marido. Inocente, ela acreditava que Simon não podia ter filhos. Não podia ou não queria? Também, coitadinho do rapaz. Criança sofrida, sem mãe e rejeitada pelo pai violento. O típico homem probleminha. Como mulher é centro de reabilitação de homem, é isso que Daphne faz.

Para realizar seu sonho de família de comercial de margarina, ela senta com força e força a gravidez. A internet grita: estupro!! Daphne é estupradora e a série não devia mostrar isso!! Gente, é sério? Posso até ser cancelada, mas como Daphne podia estuprar se ela nem sabia o que era estupro? Como ela podia estuprar se em termos de poder ela não era a favorecida na relação? E outra, você acha que uma mulher em 1813 teria como fazer a escolha de engravidar como, teoricamente, podemos fazer hoje? Um marido daquela época respeitaria a escolha da mulher de não querer ser mãe? Fala sério! O que Daphne faz é impor sua vontade. Foi escroto? Foi. Abominável como é narrado na série. Mas estupro envolve relação de poder. Hoje até poderia ser considerado estupro. Naquela época não.

Sobre a retirada da polêmica cena que já havia gerado burburinhos no livro, não dava para simplesmente cortar. Roteiristas não devem escrever apenas o que é certo, ético. A cena é fundamental para a narrativa. Para a problemática narrativa. Não sei se já deu para perceber, mas meu desejo aqui é destruir um pouco o conto de fadas. Mesmo havendo diversos tons questionadores interessantes, não entendo onde Bridgerton colabora com a emancipação feminina.

Dentro debate racial, a presença de personagens negros inegavelmente colaboram com a diversidade nas telas. Porém eles são colocados como se não existisse preconceito, como se a história de colonização e escravização do povo africano não tivesse relevância. Dentro da licença poética, acho lindo. Amei assistir. Sou, inclusive, bastante apaixonada pela estratégia de Shonda de sempre colocar personagens negros em posição de poder sem necessariamente discutir o racismo. Ainda assim, é preciso chamar atenção para os pontos problemáticos.

Sobre o personagem interpretado por Jean Page, tem rolado críticas muito contundentes a respeito de sua hipersexualização. Tanto a reproduzida nas telas como as compartilhadas nas redes. O argumento é de que esse tipo de exposição tem sido uma tática comum para desumanizar homens e mulheres negras. Enquanto a beleza e virilidade do duque estão sendo ressaltadas, se esquece de mencionar a qualidade do trabalho do ator. De fato, no episódio 6 após o casamento, o corpo de Jean Page é muito mais exposto do que o de Phoebe Dynevor. O público alvo de série é mulheres, sabemos. São elas que devem ficar molhadinhas para esquecer a quantidade de homens uó existentes por aí. Mas precisamos sim fazer a crítica e a autocrítica.

Eu mesma tenho feito a minha porque fiquei deveras mo… apaixonada. Jean Page é muito meu tipo. Sobre sua qualidade como ator, é indiscutível. Perfeito, sem defeitos. Inclusive, ele foi escalado por ter se destacado na série For The People também produzida pela Shondaland.

O argumento dos criadores para justificar a diversidade está fundamenta no fato de que, possivelmente, a rainha Charlotte seria negra. Em uma das cenas, Lady Danbury (Adjoa Andoh) fala para Simon que eles só puderam estar ali por conta do amor. O amor que fez o rei George III (que depois fica louco) casar com a rainha Charlotte. Seria lindo se o mundo fosse tão cor-de-rosa. Mas há quilos de perversidade na nossa dura realidade. Não acha?

É em nome desse mesmo amor que Daphne e Simon reatam após o possível estupro. No baile de fechamento da temporada no castelo do casal, Daphne declara seu amor e devoção ao duque. Juntos eles vão resolver todas as questões. Que lindo! Depois disso, ele mesmo resolve gozar dentro e produzir herdeiros. Traumas curados! Mais um homem reabilitado pelas mãos de uma doce mulher. Conseguem entender como essa narrativa é destrutiva para as mulheres?

Como não li os livros, não faço muita ideia do que vai acontecer. Mas pode ser que alguns desses pontos problemáticos sejam melhorados ou aprofundados. O burburinho é de que O conde e eu, primeiro livro da série, é o mais chatinho de todos. Por isso, estou no aguardo das próximas temporadas com certa ansiedade.

Será que a irmã de Daphne, Eloise (Claudia Jessie), vai causar alguma revolução com suas ideias questionadoras? Ou será que vai seguir o script padrão e se apaixonar? No fim, eles não vendem que o amor salva tudo? Que o amor é sempre sempre é a solução? E o artista Benedict, viverá uma experiência gay? Bem que Eloise podia se apaixonar por uma mulher, tocar fogo no castelo e junto com Penelope (Nicola Coughlan) revelar toda a hipocrisia da burguesia.

Outro ponto tenso é justamente a questão de Penélope Featherington ser a fofoqueira misteriosa Lady Whistledow. Bem clichê colocar a menina preterida por conta de seu peso como a fifi de carteirinha. Pelo que pesquisei, é exatamente essa a narrativa do livro. Se eu estivesse fazendo a adaptação, possivelmente, mudaria esse fato. Netflix, me contrata!

Apesar de ter sido a chata problematizadora, achei a série bem divertida. Não se deixando levar pela ilusão dos contos de fadas, Bridgerton é um delicioso passatempo. Castelos, figurinos de época, glamour, fogos de artifício, sexo nas equinas, violentas paixões. Quem não gosta disso? A narrativa é bastante fluida e evolui rápido sem vais e vens cansativos. Assisti tudo em apenas dois dias. Shondaland e a Netflix conseguiram fazer uma obra cativante. Outro ponto alto é a trilha sonora. Nos bailes tinder da alta corte, a orquestra toca sucessos de Maroon 5, Ariana Grande, Taylor Swift, Billie Eilish, entre outros. Bem espirituoso!

Agora o babado da abelha, fiquei sem entender o por quê do ícone da obra ser ela. Na série o inseto aparece de forma bem discreta no primeiro e último episódio. Fuçando descobri um fato: nos livros é apresentado que o patriarca dos Bridgertons morreu de uma picada de abelha e, por isso, Anthony tem algum tipo de pânico das bundinhas listradas. Outra coisa que me deu curiosidade foi a voz de Lady Whistledow. Ela não parece bastante familiar? E é mesmo. A narradora é ninguém menos que Julie Andrews. Fãs de o Diário da Princesa por aqui?

Apesar de Bridgerton não ser uma série feminista, tem algo na narrativa importante para fazer a gente pensar. Os códigos de comportamento da nossa sociedade ainda são semelhantes aos apresentados ali. Pensa comigo: O que hoje define o valor da mulher? o que define o valor do homem? Será que nós, mulheres, ainda não estamos em prateleiras para sermos escolhidas? Será que ainda pautamos nossa vida através da necessidade dessa escolha? Moldamos nossa personalidade, corpo, estética em função dessa escolha? Mesmo sem ter consciência disso, muitas vezes, é o que fazemos.

A psicóloga Valeska Zanello descreve como o dispositivo da prateleira do amor segue sendo perverso para as mulheres. Como ele nos empurra para relações terríveis, nos transformando em vítimas fáceis de relacionamentos abusivos. A construção de que precisamos ser escolhida por um homem é, sem dúvidas, um dos fatores responsáveis pela nossa dependência emocional e a alta taxa de feminicídios. Por isso, é urgente estarmos cada vez mais conscientes disso.

Me conta, você (mesmo inconsciente) ainda espera para ser a escolhida?

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Daniella Burle
Daniella Burle
Apaixonada por contar histórias, estórias e ler o mundo, se divide entre o campo artístico e o universo acadêmico. Foi ganhadora do prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia em 2019 com o texto da peça Eu sou o Homem. É formada em roteiro pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro (2020). E também graduada em Arquitetura e Urbanismo (2011) pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1 COMENTÁRIO

  1. Na verdade não achei clichês colocar a Penélope como a colunista de fofoca mais bem informada em Londres. O erro da netflix foi ter revelado ela no primeiro livro. Quando na série eles colocaram ela como uma menina imatura e louca pra se casar, que fazia mansões sobre sexo que nem ela mesma sabia o que significava, porque ela nunca se casara, então como poderia saber?!.

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