Um soldado, uma cultista e uma raposa entram no Território Lovecraft

Aviso de pequenos spoilers

Mais recentemente, no cinema e na televisão, a intertextualidade tem sido uma ferramenta bastante utilizada por roteiristas e diretores. O que a princípio era uma forma de fazer reverência a outros artistas, atualmente ocupa boa parte de obras audiovisuais: São falas que referenciam outras obras e que acrescentam algo a história (Capitão América: Guerra Civil), aparições não muito claras que servem como Easter Egg (Parasita) ou até mesmo elementos secundários que se somam ao tom e o gênero da obra (Os Mortos Não Morrem).

Montrose: “Garoto, viu como eu pulei? Jesse Owens não chega aos meus pés!” – T01E04: “A History of Violence”

Nesse contexto, é cada vez mais comum achar exemplos em obras audiovisuais, sejam eles ainda como forma de reverência ou sendo utilizadas de novas maneiras e com novos propósitos. Sempre costurando sua própria obra puxando as linhas de outras e, assim, difundindo essas como símbolos culturais. Assim a minissérie Lovecraft Country (2020), criada pela roteirista Misha Green e adaptada da obra de Matt Ruff, busca fazer da intertextualidade uma parte essencial da sua trama.

Referências literárias:

Como seu título indica, o primeiro elemento puxado para dentro do livro é o universo fantástico de H.P. Lovecraft, onde é possível encontrar: criaturas monstruosas, que testam a noção da existência humana, cultos secretos e poderes mágicos sobrenaturais. A princípio, essa mitologia parece ser a única a ser referenciada, sendo uma parte importante do conceito da trama. Porém, aos poucos o próprio livro se liga a outras obras, mas de forma mais presente, algo que o roteiro do seriado segue como um dos principais elementos de adaptação.

“A prateleira de cima estava abarrotada de livros da série do Tarzan, e a debaixo tinha a coleção completa de John Carter, assim como Carson Napier de Vênus e a série Pellucidar. As outras prateleiras tinham autores e títulos que ele conhecia, alguns dos quais pareciam muito fora de contexto naquele ambiente. […] A prateleira de baixo era o Território Lovecraft: Angernon Blackwood, Robert Bloch, August Derleth, William Hope Hodgson, Frank Belknap Long, Clark Ashton Smith, além, é claro, do próprio Lovecraft…” – Território Lovecraft, Capitulo 1: “Território Lovecraft”, página 67.

Assim, livros como “Viagem ao Centro da Terra”, “Guerra dos Mundos” e os quadrinhos da “Mulher-Maravilha” (entre vários outros) são inseridos em diferentes cenas e contextos. Ajudando a ditar o tom do seriado, trazendo elementos que enriquecem os personagens e expandindo o universo para além das linhas Lovecraftianas. Aos poucos, algumas destas obras se mostram mais presentes quanto a questão central dos episódios e servem como objeto para alguns questionamentos feitos no seriado. Dá-se o exemplo de Atticus (Jonathan Majors), ao ler “Uma Princesa de Marte”, cujo seu herói, John Carter, é um ex-soldado confederado:

Senhora: “Espera aí, você disse que o herói era um soldado confederado?”
Atticus: “Ex-confederado.”
Senhora: “Ele lutou pela escravidão. Você não pode por um ‘ex’ nisso.”
Atticus: “Histórias são como pessoas. Amá-las não as torna perfeitas, você só tenta apreciá-las, e ignorar suas falhas.”
Senhora: “Mas as falhas continuam lá.”
– T01E01: “Sundown”

Referências culturais:

Indo além da literatura, o seriado aos poucos começa a se utilizar de elementos culturais como fonte de referências. Isso já fica claro desde o terceiro episódio, “Holy Ghost”, onde a casa de Letitia Lewis (Jurnee Smollett) é assombrada por fantasmas e em certo momento se convoca uma xamã (aparentemente de religião iorubá) para realizar um ritual que possa resolver o problema. Algo que incorpora outro elemento e expande o que é considerado plausível ao sobrenatural do seriado.

Porém, um exemplo mais claro disso se dá no episódio seis, “Meet Me in Daegu”. Nele, vemos a passagem de Atticus (Johnathan Majors) pela Guerra da Coreia sob o ponto de vista de Ji-Ah (Jamie Chung). Uma enfermeira Coreana que esconde o segredo de ser uma Gumiho (ou Kumiho): uma criatura sentenciada a procurar e extrair a energia vital dos homens com quem ela se deita. É mais um elemento cultural costurado a trama e é exclusivo do seriado, já que a personagem se quer existe no livro.

Referências à história negra nos Estados Unidos:

Outra característica importada do livro e de suma importância é a referência que ambas as obras fazem a eventos históricos. A grande sacada da obra de Matt Ruff é pegar personagens negros e mostrar os desafios e situações do segregacionismo e racismo da época do Jim Crow, junto ao ocultismo do universo de Lovecraft.

“Quando olhei pela janela de manhã, vi uma multidão de umas quatrocentas, quinhentas pessoas descendo a colina, e aí elas atiraram em um negro… Eram umas oito horas quando elas chegaram ao distrito residencial e começaram a saquear as casas dos negros. Fui para o sótão quando vi que elas estavam se aproximando. Depois de botar fogo em vários lares elas entraram na nossa casa, abriram o gás, botaram uns móveis em cima e acenderam um fósforo. Assim que saíram eu desci, desliguei o gás e consegui apagar o fogo, e aí voltei para o sótão. Coisa de uma hora depois veio outro grupo. Quando viram que a casa não estava em chamas, eles entraram e tentaram botar fogo. Desci de novo e consegui apagar o fogo e voltar para o sótão uma segunda vez. A essa altura tinha tanta fumaça que decidi sair, e estava atravessando a rua na direção da fundição quando quatro camaradas me pegaram. Eles disseram ‘Ei, crioulo, onde você estava?’, e respondi que estava voltando do trabalho. E então eles falaram: ‘Bem, a gente vai matar você.’ – G.D. Butler, sobrevivente dos incêndios de Tulsa de 1921, em entrevista ao jornal The Chicago Defender, 11 de Junho de 1921”
– Citação presente no começo do capítulo seis do livro: “Casa Narrow”, página 258.

Nesse sentido seria quase um demérito se o próprio livro não se aprofundasse em acontecimentos que demarquem essas injustiças presentes na vida dos protagonistas. Porém o que faz o seriado se destacar não é só o reforço dessas questões, mas também uma participação maior de personagens e figuras da cultura afro-americana de diferentes épocas.

Hyppolita: “Eu quero dançar em Paris com Josephine Baker!” – T01E07: “I Am”

Esse é o tipo de intertextualidade que mais ocupa espaço na série. Elas vão de: referências fotográficas, em que cenas imitam fotos famosas; literárias, com escritores sendo citados e referidos de diferentes formas; e musicais com musicas anacrônicas servindo de trilha sonora em diferentes casos. Na parte da trilha, vale destacar também o papel de que alguns áudios têm em cenas chave da série. Como na cena clímax do episódio 9, “Rewind 1921”, onde os personagens acompanham os acontecimentos do Massacre de Tulsa (1921), em meio ao poema “Catch your fire” de Sonia Sanchez:

Aviso para cenas fortes

Assim, personagens importantes da história negra nos Estados Unidos como W.E.B du Bois (1868-1963) e Denmark Vesey (1767-1822), e fatos importantes como o Massacre de Tulsa (1921) e o caso de Emmet Till (1941-1955), se tornam presentes e são aprofundados no seriado. Sendo apresentados para aqueles que nunca os conheceram, homenageados e relembrados para aqueles que já sabiam de sua história e, junto das obras literárias e dos outros símbolos, são difundidos como uma parte importante da cultura.

Dessa maneira, Lovecraft Country (2020) é um ótimo exemplo de uma adaptação em que a intertextualidade é um elemento crucial. Dando um propósito a ela, e utilizando suas referências de forma certeira e objetiva.

Como dito no próprio texto, existem muitas referências a serem buscadas, assim para saber mais sobre elas, vale a pena dar uma olhada nos links:

  • Série de vídeos da Mikannn sobre o seriado com convidados especiais.
  • O próprio podcast da série em português e inglês, com debates analises e comentários sobre a série.
  • Série de vídeos do canal Heavy Spoilers sobre algumas outras referências (inglês).
  • Série de artigos do site Nerdist série de artigos com outras referencias, analises e debates sobre outros elementos da série (inglês).
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Yuri Cardoso
Yuri Cardoso
Roteirista, escritor e fotógrafo, todos ainda em prática. Sempre ouvindo podcasts e filosofando o porquê das coisas comigo mesmo. Amo cinema, relações Internacionais e história. Meio prolixo, só me concentro no trabalho ouvindo trilhas sonoras e bebendo um copo de mate.

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