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Antes que me falhe a memória

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Vou me permitir recontar um fato histórico por meio da minha memória pessoal, e sei que por vezes falha. Afinal, quem não lembra, esquece mesmo. Novembro faz 10 anos do rompimento da barragem de Fundão, que ocorreu na cidade de Mariana, Minas Gerais. Tal crime foi considerado como o maior desastre ambiental com barragens do mundo nos últimos 100 anos. Você leu certo: maior do mundo nos últimos 100 anos. Esse dado chocante mobilizou a mim e três amigos universitários a organizar uma expedição de baixo orçamento para documentar essa tragédia anunciada há décadas, que resultou no curta-metragem Lambari (2016).

Não vou falar sobre a proporção da tragédia em si, para isso sugiro uma leitura mais especializada para entender todas as nuances. Minha preocupação aqui é deixar registrado esse momento marcante em minha trajetória pessoal e profissional, antes que um dia eu esqueça. E 10 anos já é tempo demais.

Diante da grandeza das cifras da destruição, o objetivo do filme foi ouvir as pessoas afetadas, no íntimo, no singular. Entender suas histórias com o território e suas dores diante da trágica transformação que o desastre estava promovendo. Por quatro dias, eu (câmera), Rodrigo Freitas (direção), Matheus Plastino (câmera) e Lorena Santiago (som) gravamos em Barra Longa, cidade muito afetada pela lama tóxica.

A empreitada só foi possível graças ao apoio da ADUFF (Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense) que patrocinou com R$2.885 após apresentarmos uma proposta à diretoria. Estávamos cursando a graduação na época e sem dinheiro para custear. Alugamos um carro e saímos de Niterói (RJ) rumo à Mariana (MG) sem hospedagem, personagens ou locações definidas. E isso foi intencional. Nossa premissa foi a do inesperado: a proposta de direção de Rodrigo era deixar a história nos encontrar. Confiamos no “risco do real” e apostamos no “cinema verdade” que tanto marcou e marca o documentário até hoje.

Esse processo de realização deu origem a minha monografia “Entre rio e memória: um olhar cinematográfico sobre os impactos afetivos do rompimento da barragem da Samarco em moradores da cidade de Barra Longa, Minas Gerais”. Aí que descobri com a pesquisadora Manuela Penafria que essa linguagem utilizada por Jean Rouch lá atrás e por nós agora, é conhecida como “documentário interativo”: onde há uma “relação próxima entre o autor e o tema do filme. Esta relação passa pela presença física do autor no próprio filme.”

E de fato nosso filme se construiu como uma constante incidência de bons encontros. O primeiro foi com José Ricardo dos Santos, o “Seu Cadinho”, um pedreiro ribeirinho de 63 anos de idade. Explicamos brevemente nossa ideia e, sobretudo, nossa urgência em encontrar um lugar para se hospedar. Não havia espaço que considerássemos seguro para acampar. Só havia um hotel da cidade que parecia estar lotado. A cidade recebeu um acréscimo de mais de 500 trabalhadores da Samarco desde a chegada da lama tóxica.

De algum modo, “Seu Cadinho” se compadeceu com nossa proposta de trabalho. No meio da conversa, ele disse: “Se não encontrarem lugar pra ficar, podem ficar aqui em casa, uai.”  E assim ele abraçou nossa história e em seu lar. Conversamos e gravamos com vários moradores até que tivemos outro importante encontro: o personagem principal do filme. Era Seu João, pescador de 75 anos cuja especialidade era o peixe lambari.

Lambari, esse peixe icônico dos rios brasileiros, vivia tranquilo na cidade, alimentando a fome e a alma de muitos moradores, como a de Seu João. Ao longo das conversas, ele nos contou sobre a chegada da lama e sua relação com o rio. As perdas materiais da família foram reveladas por sua irmã, Eponina Rosa de Freitas, enquanto as perdas afetivas descobrimos por meio de sua filha Cláudia Mol de Freitas. “Ele criou uma barreira, mas por dentro está sofrendo muito”, revelou Cláudia. Desse modo, descobrimos um João oculto por ele, um personagem desnudado por um membro de seu convívio familiar. Talvez esse tenha sido o momento mais intenso dessa experiência fílmica, uma revelação íntima que talvez só tenha sido feita por se tratar de um trabalho audiovisual imersivo. Visitamos a cidade e alguns locais onde Seu João e seus amigos tinham histórias pra contar, como a ponte e o encontro entre os rios Gualaxo e Carmo, locais onde João costumava pescar seus lambaris.

Às vezes o fazer fílmico pede tempo, paciência, pesquisa. Já outras vezes é necessário ser urgente, pois a vida passa. E a memória também.

No dia 05 de novembro de 2025 fez 10 anos do rompimento da barragem de Fundão da Samarco Mineradora S/A, controlada pela Vale S.A e BH Billiton, que ocorreu no distrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana, Minas Gerais.  Estima-se que 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram liberados na região e atingiu uma extensão de 663 quilômetros até a foz do rio Doce na cidade de Regência, no Espírito Santo. O valor conquistado após anos de luta por reparação foi de R$170 bilhões. Apesar de 22 pessoas e 4 empresas terem sido denunciadas pelo Ministério Público Federal, até hoje ninguém foi condenado.

“Lambari” teve diversas seleções em festivais ao redor do mundo:

11º AtlanticDoc – Festival Internacional de Cine Documental de Uruguay
34º Festival de Cinema de Bogotá
24º Festival de Vitória

Recebeu prêmios em importantes festivais ambientais, como:

22º Cine’Eco – Festival Internacional de Cinema Ambiental
23º EcoCine – Festival Internacional de Cinema Ambiental e Direitos Humanos

Rodrigo Freitas teve apoio da Ancine para apresentar o filme no Festival de Bogotá.

A loucura de que todos somos feitos e o legado de Hilda Hilst

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Hilda Hilst sempre foi uma incógnita para a grande maioria dos leitores, dos críticos de literatura e inclusive de muitos escritores. Considerada incompreendida, herege, pervertida, louca, bruxa — como tanto relatou nas entrevistas reunidas no belíssimo volume Fico Besta Quando Me Entendem —, de fato eram poucos aqueles que a compreendiam, ou melhor, que conseguiam entrar em contato, sentir, arrebatar-se pela grandiosidade, pela beleza, pelo mistério e pela divindade da obra de Hilda Hilst, esta grandiosa escritora brasileira.

A paulista Hilda Hilst dominou com maestria todos os grandes gêneros da literatura brasileira. Excelente poeta e ficcionista, contudo, apenas teve algum reconhecimento ao final de sua vida — principalmente após a morte, inclusive — quando passou a ser mais editada e lida. Alguma curiosidade, finalmente, talvez tivesse sido suscitada após o lançamento de sua tão ousada “Trilogia Pornográfica”. Hilda queria ser lida, queria ser levada a sério, mas cedo percebeu que grande parte do público leitor não estava interessado em suas obras mais profundas e complexas. É óbvio, então, que ela queria chamar a atenção do mercado editorial, escrevendo livros que chegaram a causar até mesmo repugnância e asco nas pessoas, como é o caso do “Caderno Rosa de Lory Lamb”, livro de difícil digestão. Não é de se negar, então, que até para causar repugnância Hilda o soube fazer com maestria. Como ninguém. E é possível compreendê-la: quão triste para um escritor sentir que não foi suficientemente lido ou apreciado ainda que tenha dedicado sua vida inteira para isso. Mas Hilda foi coerente com o seu desejo, foi até o final em busca do que queria.

Ela também colecionava histórias de apreciação aos mortos e aos seres extraterrestres. Tratava-se de um ser humano fantástico, com muitas camadas. Escreveu por mais de 30 anos isolada na fantástica Casa do Sol no interior de São Paulo, onde viveu com dezenas de cachorros; renunciou a tudo para escrever. Mais do que isso, cultivava um fascínio incrível pela vida, fascínio este sem o qual eu acredito que não se possa nomear alguém como escritor de fato. Pois algo de loucura deve haver para que possa existir o desejo de transcender a realidade e reconstitui-la, transformá-la, reacende-la e contorná-la pela via das palavras.

O escritor sempre busca ultrapassar alguma barreira pela escrita, e muitas vezes a vida e a morte são vistas como barreiras intransponíveis. Mas sempre há algo além. E é isso que a escritora — ou melhor dizendo, uma escritora transgressora — deseja capturar. Aqui não tem história da carochinha, fábula simples, com início, meio e fim. O fim torna-se o início e o meio está contido no fim e no início. Foi a impressão que tive quando li Hilda pela primeira vez, ainda no calor da minha adolescência. Entendi muito pouco, fiquei quase assombrada pela minha ignorância, mas a voluptuosidade, o tesão que saía daquelas páginas acendeu algo dentro de mim. Uma enorme pulsão de vida aquela leitura me trouxe. De cara, já pude reconhecer toda a grandeza de Hilda, mesmo que eu ainda fosse uma leitora muito imatura. Na realidade, sempre seremos imaturos diante da vida e da morte, e é sobre esses mistérios que Hilda repousa suas mãos nada sutis.

O primeiro amor que dela veio para mim, como uma mensagem entrecortada, foi “Tu não te moves de ti”. O livro me capturou pelo título. Eu, que tantas vezes me senti presa em meu próprio corpo, consegui fazer, naquela leitura, com que minha alma viajasse para outro lugar. Depois desse, li muitos outros livros dela. Hilda conseguiu. E ainda consegue com tantos de nós. Muitos. Mesmo que ainda sejamos poucos diante da vastidão de leitores que gostam de ler apenas histórias com início, meio e fim, romances chatérrimos, com linguagem bem mastigadinha, chiclete que já entra dentro da boca mastigado mesmo.

Nada contra, de vez em quando é bom. Mas a literatura que sempre me interessou foi outra. É aquela com uma linguagem cheia de camadas, aquela que revela, confunde, mistura e traz à tona nossas minúsculas peças interiores.

Em “A obscena senhora D” — o livro que recomendo para quem deseja iniciar esta viagem ao desconhecido de Hilda —, “D” de derrelição, de abandono, Hillé é uma senhora que está sozinha numa busca incansável pelo sentido das coisas, pelo sentido da vida e do mundo, pelas coisas mais banais e mais complexas. Ela é um ser cheio de questionamentos e de dúvidas, como é comum a todos nós, seres humanos. Após sessenta anos de vida, Hillé decide morar no vão da escada de seu apartamento, para desagrado do seu ex-marido e de toda a vizinhança, sendo taxada como louca por recortar peixes de papel para colocar em um aquário, conversar sozinha, proferir frases “desconexas”, usar máscaras e fazer caretas para assustar os vizinhos.

A personagem principal se encontra em um processo de vertigem ao se questionar sobre os objetos, os sentimentos e as pessoas, questionamentos que levam, sucessivamente, a outros questionamentos, criando, assim, uma torrente de pensamentos que não pode ser contida:

“Hillé, andam estranhando teu jeito de olhar
que jeito?
você sabe?
é que não compreendo
não compreende o quê?
não compreendo o olho, e tento chegar perto.
Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nessa vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir, para onde Ehud, o que são essas senhoras velhas, os ganidos da infância, os homens curvos, o que pensam de si mesmos os tolos, as crianças, o que é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som, trinado, urro, grito, o que é asa hein? Lixo as unhas no escuro, escuto, estou encostada à parede no vão da escada, escuto-me a mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram, há um código no centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo, espio-me curvada, winds flowers astonished birds, my name is Hillé, mein name madame D, Ehud is my husband, mio marito, mi hombre, o que é um homem?”

Hillé questiona-se acerca de aparentes simplicidades: o que é casa, o que é olho, o que é o som. Uma vez que o ser humano nem sempre está acostumado a refletir sobre tais questões — que já vêm “prontas” de significado aos olhos e aos sentidos — passa a ser desconcertante para o indivíduo a ruptura com os saberes já preestabelecidos. Isso seria loucura ou lucidez?

Hillé é bastante parecida com a própria Hilda, como se percebe em uma das entrevistas de “Fico besta quando me entendem”:

Em “A obscena senhora D”, Ehud, marido de Hillé, a todo tempo tenta “arrastá-la de volta a uma vida medíocre, pacífica, que não exige tanto em termos de busca e reflexão e que não convida o espírito a sair de sua zona de conforto. Uma vida mais “terrena”, mais “pé no chão”. De acordo com ele:

“Não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro lá fora (…) Senhora D, a viva compreensão da vida é segurar o coração, me faz um café (…) um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam, senhora D, vamos falar do homem aqui agora”

O “me faz um café”, presente em inúmeras passagens ao longo do livro, seria um convite a retornar para uma vida mais tranquila, menos sábia e com menos preocupações, isto é, o mundo terreno. Entretanto, uma vez o Homem saído da caverna, não é possível mais que retorne ao mesmo estilo de vida, pois, ao vislumbrar o outro lado, já sabe e conhece coisas que antes não sabia e nem conhecia. Não há retorno para o conhecimento, trata-se de um caminho sem volta, e Hillé não possui escolha, pois não vê as coisas mais da mesma maneira:

“Não venha, Ehud, posso fazer o café, o roupão branco ainda está aqui, os peitos não caíram, é assustador até, mas não venha Ehud, não posso dispor do que não conheço, não sei o que é corpo mãos boca sexo, não sei nada de você Ehud a não ser isso de estar sentado agora no degrau da escada, isso de me dizer palavras, nunca soube nada, é isso nunca soube”

Na verdade, Hillé é lúcida, muito lúcida em sua insensatez, em seu inconformismo, em cada uma de suas dificuldades. Até mesmo porque a loucura é um conceito totalmente moldável, que sempre está sujeito a prejulgamentos e nunca está acabado. Será que loucos não seríamos nós, que acordamos sempre no mesmo horário, tomamos café, pegamos um ônibus lotado, vamos trabalhar todos os dias e fazemos sempre as mesmas coisas sem nenhum tipo de questionamento?
Ao final da narrativa, o menino-porco, com quem tanto Hillé conversa durante a obra, ao final, profere a uma vizinha, ao ser questionado sobre a sanidade da obscena senhora:

“Hillé era turva, não?
um susto que adquiriu compreensão.
que cê disse, menino?
o que você ouviu: um susto que adquiriu compreensão. isso era Hillé.”

Hillé foi isso: um susto que adquiriu compreensão. O susto de conhecer e deixar-se perturbar pelo novo, pelo desconhecido. Assim também foi Hilda. Assim também desejo a você, caro leitor, a disponibilidade para permitir perturbar-se pelo que ainda não sabe e ter suas certezas abaladas como eu também as tive e tenho. Afinal:

In: “Presságios”

Quem paga a conta do trauma da guerra? Sob a luz de “As últimas testemunhas”

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Há uma ferida, inúmeras feridas, ainda abertas, na pele dos sobreviventes de guerras ao redor do mundo. São narrativas autobiográficas escritas a partir de testemunhos pujantes de dor e indignação. Não são fáceis de analisar e o risco de serem teorizadas é perderem o viés humanitário. Não me cumprirei, então, aqui, a analisar a estética do sofrimento, mas o sofrimento sempre me interessou. As dores humanas são e sempre foram um mistério, mas há sempre uma história que pode ser contada sobre elas. E é sobre isso que eu quero falar hoje.

Há uma filósofa que discorreu acerca das origens do totalitarismo e que buscou se aprofundar nas origens sociais e políticas da violência, mais especificamente no que se refere ao nazismo e ao holocausto: Hannah Arendt, nascida em 1906, na Alemanha. De família judia, é uma das mais influentes pensadoras do século XX. Escreveu obras muito importantes sobre seu tempo, como “A condição humana”, “Homens em tempos sombrios”, “Origens do totalitarismo” e “Eichmann em Jerusalém”.

Neste último, “Eichmann em Jerusalém”, a autora aprofunda seu pensamento crítico ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, um homem que não terminou a escola secundária e, não tendo êxito na vida profissional, foi convidado a participar do Partido Nacional Socialista e se filiar à SS. Posteriormente, na posição de tenente-coronel, foi responsável por deportar os judeus em massa para os guetos e campos de extermínio no Leste europeu. Teria-se, a princípio, a imagem dele como um humano cruel e sanguinolento, entretanto, durante o processo, ele se mostrava alheio às atrocidades que havia cometido.

Tratava-ve, antes de tudo, de um servidor público sem muita pompa, que tinha por objetivo primordial “vencer na vida” a todo custo. Era um homem cheio de esperanças, que desejava ser promovido e não apresentava qualidade ética no sentido de dimensionar as consequências de suas ações, como demonstra em seu depoimento:

“Em primeiro lugar, a acusação de assassinato estava errada. ‘Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não-judeu – nunca matei nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu ou um não-judeu; simplesmente não fiz isso. (…) só podia ser acusado de ‘ajudar e assistir’ à aniquilação dos judeus, a qual, declarara ele em Jerusalém, ‘fora um dos maiores crimes da história da Humanidade” (p.33)

É neste contexto que Arendt traz às claras a Teoria da Banalidade do Mal, tida como um desafio ameaçador a toda e qualquer sociedade ou cultura, na medida em que essa banalidade é construída a partir da perda dos referenciais de uma sociedade democrática de direito e à medida que o Estado totalitário avança em poder, em propaganda e em técnicas de captação cada vez mais sofistificadas. Para a autora:

“A acusação tinha por base a premissa de que o acusado, como toda ‘pessoa normal’, devia ter consciência da natureza de seus atos, e Eichmann era efetivamente normal na medida em que ‘não era uma exceção dentro do regime nazista’. No entanto, nas condições do Terceiro Reich, só se podia esperar que apenas as ‘exceções’ agissem ‘normalmente’”. (p.38)

Isto é, na perspectiva de Hannah Arendt, em um Estado totalitário, o mal praticado torna-se facilmente banalizado, ganha caráter de lei, e quem a ele foge descumpre as normas vigentes. Rompem-se as delimitações da ética, ou seja, o dever ético é secundarizado porque a ética é transfigurada e ganha nova roupagem.

Contudo, apesar de a prática do mal ser banalizada, para quem dele padece o mal nunca é realmente banal. Os testemunhos nos mostram como a dor é viva e sempre retorna nos pesadelos dos sobreviventes de guerras. Nesse viés, quero apresentar outra escritora de que gosto muito, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015: a bielorussa Svetlana Alexijevich, autora de “A guerra não tem rosto de mulher”, “O fim do homem soviético” e “As últimas testemunhas”. Me deterei neste último.

As últimas testemunhas” é um livro de difícil digestão, que narra as histórias infantis de adultos que foram crianças na Segunda Guerra Mundial e que padeceram todo tipo de desastre e trauma: passaram fome, comeram restos, viram os familiares serem executados, tornaram-se órfãos, e nunca chegaram a entender. Quase mais triste do que perder a vida talvez seja mesmo perder a infância. Não poder brincar. Perder a melhor fase da vida, aquela em que o mundo se mostra sempre novo, único, mágico e encantador. O mundo todo morre um pouco quando morre a infância de alguém. Esse livro não é um mero livro de relatos, não é à toa que Svetlana ganhou o prêmio Nobel: seu trabalho é muito sensível e sobretudo marcante em entrevistar, organizar e selecionar não somente relatos, mas antes testemunhos poderosos, vozes que não devem ser esquecidas — as quais sobretudo devem continuar ecoando — de adultos sobreviventes que narram suas histórias a partir da lembrança do trauma, da perspectiva de quando eram apenas crianças inocentes e tiveram sua ingenuidade roubada. Esse livro é um soco no estômago necessário e muito poderoso, para ser lido aos poucos para não engasgar.

No prefácio do livro, a autora escreve:

No passado, Dostoiévski fez a seguinte pergunta: e será que encontraremos absolvição para o mundo, para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna se, em nome disso, para solidificar essa base, for derramada uma lagrimazinha de uma criança inocente? E ele mesmo respondeu: essa lagrimazinha não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução. Nenhuma guerra. Ela sempre pesa mais. Uma só lagrimazinha…

Uma das histórias, dentre as inúmeras que me marcaram — todas elas marcam de alguma forma — está a de Zina Kosiak, que tinha oito anos durante a guerra:

“A guerra acabou… Esperei um dia, dois, ninguém veio me procurar. Minha mãe não veio me buscar, e papai estava no Exército, eu sabia. Esperei assim por duas semanas, já não tinha mais forças para esperar. Me enfiei em algum trem, debaixo de um banco, e fui… Para onde? Não sabia. Eu achava (ainda era uma consciência de criança) que todos os trens iam para Minsk. E que em Minsk a mamãe me esperava! Depois viria papai… Um herói! Com condecorações, com medalhas. Eles tinham sumido num bombardeio. Depois os vizinhos me contaram que eles tinham saído juntos para me procurar. Correram para a estação de trem. Eu já tenho 51 anos, tenho meus filhos. Mesmo assim, eu quero a mamãe…

A criança nunca deixa de existir dentro do adulto. O trauma, especialmente o infantil, deixa marcas para o resto da vida. Assim também é para aqueles que foram pais, sobretudo mães, como escreve Wislawa Szymborska, autora polonesa, também ganhadora do Nobel em 1996, que possui poemas belíssimos:

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Na contramão disso, e paradoxalmente, os livros relatos também me fazem lembrar um filme assistido por mim na adolescência, um dos preferidos também de minha mãe, chamado “A vida é bela” (La vita è bella), de 1997, ano do meu nascimento. Nesse filme, o pai de uma criança, Guido Orefice, dono de uma livraria judaica na Itália Fascista, é capturado e mandado para um campo de concentração na Alemanha Nazista, juntamente de seu filho, o pequeno Giosué. Apesar da imposição, o pai deseja ainda preservar a criança de tamanho horror, e utiliza da criatividade como prova maior de seu amor paterno: inventa uma brincadeira e finge que o campo de concentração é, na verdade, um jogo, em que os presos competem para marcar pontos a partir de seu “trabalho” para que alguém saia como “vencedor”. O filme termina com um final relativamente feliz— e, afinal, bem que a vida poderia ser assim —, pois a guerra acaba e eles saem vivos.

Giosué: Nós vencemos!
Dora: Sim, nós vencemos! É verdade.
Giosué: Fizemos mil pontos e ganhamos o jogo! Fomos os primeiros e vamos voltar para casa de tanque. Nós ganhamos! Nós ganhamos!
– “A Vida é Bela” (1997) – Roberto Benigni

Mas e para os adultos que foram crianças na guerra? Questiono se de fato a guerra acabou para eles. Com a leitura de “As últimas testemunhas”, fica a impressão de que a guerra ainda repercute dentro de cada um. Pensando em todas essas violências, escrevi:

Raízes do trauma 

A violência não nasce
da faca
A violência não brota
do solo

A violência não surgiu
com a arma
A violência não se serve
com as mãos

A violência não é
de hoje
A violência não acaba
amanhã

Não se remedia a violência
do ontem
Não se esquece a violência
dormindo
Não se aplaca a violência
rezando

A violência não se criou
no big bang
A violência não se limpa
no banho

A violência pode estar
num olhar
A violência pode ser
um instante

A violência permanece
nos nossos corpos
violentados
quando sonhamos

A violência persiste
no trauma
A violência não se enterra
no caixão

A violência
nos acompanha
até depois da morte.

Carolina Schittini

Inovação vs Tradição – Quando as Mudanças atingem as Bases da Festa

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Está chegando ao fim a nossa série sobre o carnaval. O que não significa que este espaço vá deixar de lado o valor e a grandiosidade dessa festa magnífica. Apenas vamos desligar temporariamente as máquinas, vestir uma fantasia e partir para o furdunço, que já se encaminha para a sua reta final. Carregando certo cansaço no corpo e uma dose de ressaca, o tema do dia são as transformações adotadas neste ano de 2025.

Na Marquês de Sapucaí vimos a mudança mais relevante para as Escolas de Samba desde a inauguração do Sambódromo, em 1984: a abertura de uma terceira noite de desfiles. O processo foi iniciado no primeiro semestre do ano passado, com a eleição de Gabriel David – filho do presidente de honra e patrono da Beija-Flor de Nilópolis, Anísio Abraão David –, para a presidência da Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA). Sua ascensão ao cargo mais alto dentro da entidade que representa as agremiações do Grupo Especial veio acompanhada de medidas que tentam modernizar a festa. A mais controversa até aqui, a reconfiguração dos desfiles em três noites, sem um aumento no número total de escolas. Isto mesmo que você leu: uma ida a mais à Passarela do Samba, algumas escolas a menos por dia de evento.

Desde o anúncio os sambistas se agitaram. Ora, se você é um amante das Escolas de Samba e ganha mais uma noite para se esbaldar, alcançou o paraíso, certo?! Errado! A novidade caiu como uma bomba para a maioria dos frequentadores dos desfiles. Foram levantadas razões de cunho financeiro, vez que uma ida a mais resulta em um custo maior de deslocamento e consumo; tiveram aqueles que pensaram no desgaste físico de encarar uma maratona aumentada; e os que se preocuparam com as atrações, pois ao invés de prestigiar seis escolas, o público precisou lidar com a passagem de apenas quatro.

O discurso oficial defendeu ao longo de quase um ano a importância de reduzir o número de desfiles para que todas as agremiações se apresentassem à noite, sem o sol dar as caras. Uma atenção à, também controversa, iluminação cênica instalada ao longo da Passarela. Também deu conta de defender os interesses da TV por dinamizar o formato de transmissão. Mas como sabemos bem, discursos oficiais ocultam interesses. A nova noite representa uma alteração mercadológica que incrementou a receita da arena. Não é preciso ser um ás na matemática para realizar essa conta: mais uma rodada do evento com a casa cheia de público pagante. É de fazer os olhos brilharem. Para o desenvolvimento da festa, toda renda é bem vinda, não há o que se questionar. O problema começa, porém, quando o protagonismo deixa de estar nas escolas e nos verdadeiros sambistas, que estão ali por elas.

Na nova configuração, quem ficou rindo à toa foram os empresários dos camarotes, responsáveis pela maior receita na fatia de venda de ingressos na Sapucaí. Faturaram alto com as novas diretrizes. Desde os ensaios técnicos, aliás, em que as áreas VIPs, ainda inacabadas, abriram as portas com cobrança de ingressos para ver um evento que é gratuito. Cada vez mais resta o gosto amargo de que a festa agora é só deles. Ano após ano devastam setores inteiros de frisas, que pouco chegam ao grande público, pois os camarotes tem o direito de preferência na aquisição, antes das vendas. Assim constroem seus lounges à beira da pista, onde convidados e pagantes se amontoam para sequer olhar o que as Escolas tem a apresentar. Os shows rolam soltos, com artistas de gêneros variados. Tem batida eletrônica e acordes sertanejos invadindo desfile a noite inteira. A música nas alturas vaza e viola o solo sagrado do samba, o que reduz pouco a pouco o destaque das agremiações.

Diante das recorrentes reclamações, reduzir o tempo de desfiles foi um grande presente para acabar com esse inconveniente. Os camarotes contaram com intervalos menores de interrupção das suas atrações para a passagem das escolas de samba, o que garantiu tempo maior de livre execução das suas festas, que já costumam atravessar a manhã até quase a hora do almoço. Há quem chegue aos camarotes após os desfiles, para o after. Uma demonstração de que para parte do público que os frequentam, as escolas são irrelevantes àquele contexto. E assim, com sabor comercial, o samba vai perdendo a tradição.

Mas as mudanças não vieram apenas para a Sapucaí. O carnaval de rua também sofreu um grande impacto, com as severas e burocráticas exigências da prefeitura para a realização dos desfiles. Muitos blocos tradicionais, com décadas de existência, anunciaram encerramento das atividades já no pré-carnaval. Esse movimento é o reflexo de um descompromisso dos órgãos municipais competentes com a organização da festa. O carnaval de rua do Rio de Janeiro renasceu das cinzas no início dos anos 2000. O sucesso foi tamanho que reverberou em muitas cidades, que saíram do silêncio absoluto para a disputa de maior carnaval do país, ancoradas no nosso modelo de fazer a festa.

Com o crescimento desenfreado da quantidade de blocos nas ruas do Rio veio o ordenamento. A partir dele, o número de liberações foi limitado e caiu drasticamente. Muitos grupos se mantiveram à margem, longe das mãos pesadas da oficialização. Os que precisaram entrar para o clube dos oficiais, seja pelo tamanho ou por acreditarem na legalização e profissionalização da festa, começaram a enfrentar dificuldades no processo, um gargalo mais apertado a cada ano.

O problema começa na liberação dos desfiles, com o excesso de burocracia. A lista de exigências do Corpo de Bombeiros é imensa e, dentre outras coisas, impõe, por exemplo, projeto assinado por engenheiro ou arquiteto, com definição de projeção de público e rotas de fuga. Aqui é necessário reconhecer a importância das medidas de segurança, mas a quem cabe tal responsabilidade?

A estimativa é que o carnaval de 2025 gere uma renda de 5,5 bilhões para a economia do Rio. Não seria papel de órgãos municipais e estaduais, estruturados para pensar a cidade, prestar o plano de ações para que os festejos aconteçam e movimentem a nossa indústria do entretenimento? Os blocos de carnaval, diferentes de grandes eventos comandados por produtores experientes, surgem da espontaneidade, do desejo se reunir e se divertir. A determinação de uma profissionalização vinda de cima para baixo tem consequências drásticas para os organizadores. Muitos destes, sem perspectiva, decidiram por encerrar o sonho.

O carnaval de rua ainda enfrenta outro ponto sensível: sua comercialização. Uma empresa é escolhida pela prefeitura para construir um valor para a marca carnaval. Há alguns anos a Dream Factory é a responsável pela produção e comercialização do evento. Ao assinar o termo com a gestão municipal, fica responsável pela estruturação das ruas para receber os blocos, o que realiza a partir da busca por patrocínios. Mas o que há de sensível nisso? Primeiro temos um investimento direto da prefeitura para que a folia aconteça com impactos mínimos para a cidade. Em seguida a mesma faz uma concessão ao direito de explorar a marca, o que não é um problema, visto que a organização direta pelo município provocaria um remanejamento da mão de obra que custaria a eficiência de outros órgãos. O problema está na outra ponta dessa corda, que são os blocos.

A Dream Factory recebe o direito de comercializar a cidade, com aval e investimentos públicos, capta e conquista patrocínios fundamentais para estruturar a festa. Mas e os blocos, o que recebem? Um encargo de exigências que deveria estar sob o guarda-chuva desse grande produtor. O que acontece, entretanto, é o contrário. Enfrentam, solitários, o excesso de burocracia citado há pouco e a ausência de apoio à sua gestão. O patrocínio da festa não é direcionado ao financiamento dos grupos carnavalescos. Além de haver um obstáculo para estes na conquista de patrocínios próprios, dado que já existem empresas conflitantes estampando suas marcas pelas ruas.

O resultado dessas relações mal estabelecidas é a precarização. Caso nada seja feito, o carnaval de rua do Rio pode entrar em severo declínio. E isso, visto a quantidade de blocos que se despedem da folia este ano, pode não estar longe de acontecer. Falta diálogo entre a prefeitura, os blocos e os foliões.

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Imagem de capa por:

Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.

  Conheça o trabalho da Mariana no seu instagram.

Meu enredo tem axé

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Faz tempo que perdi a paciência para embates em redes sociais. Aqueles argumentos de que causam ansiedade sempre se comprovavam ao me aprisionar em discussões acaloradas. Certa vez, ao reativar uma conta após sair para respirar, decretei: exerça o direito de ler, jamais faça um comentário. Segui a nova regra por longos anos, mas esse “autoacordo” foi quebrado nos últimos dias.

Era quase madrugada de segunda-feira, você há de entender. Sabe aquele momento do domingo em que desperta certa insatisfação com o início da semana? Pois bem, considere esse intervalo. Tinha acabado de chegar dos ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí e, antes de dormir, aquela olhadinha interminável no feed me colocou cara a cara com uma influenciadora que tem por atividade dar dicas sobre lugares para ir no Rio de Janeiro. Descolada, sempre com tom festivo, revelando os territórios imperdíveis de uma cidade imperdível. Na postagem, falava sobre a alegria de ver as arquibancadas do sambódromo lotadas este ano, uma surpresa. Nas palavras dela, “os ensaios ficavam praticamente vazios”. Aqui é preciso entender um contexto: a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA), que organiza os desfiles, elegeu um novo presidente no último ano, que chegou com um plano de comunicação voltado para fora, visando novos públicos. Neste projeto, a influenciadora alcançou o posto de embaixadora da Rio Carnaval, marca criada para reposicionar a festa no mercado. Sua chegada se alinhou com o discurso da gestão, de ressaltar feitos jamais alcançados pelo mundo do samba. Será?!

Os ensaios técnicos existem há duas décadas no carnaval carioca. Para o sambista, é um dos momentos mais aguardados do ano. Uma parcela considerável do público, por conta dos valores de ingressos e produtos para consumo dentro da Sapucaí, vê no “técnico” a oportunidade única de se aproximar das escolas em uma configuração similar aos desfiles oficiais. O evento é um caso de sucesso há duas décadas. Famílias, amigos, turistas e comunidades inteiras sempre lotaram as arquibancadas. Talvez a nossa amiga nunca tenha ido ver de perto esse acontecimento. Ou pode ter usado da estratégia que circula pelas redes, de “revelar” lugares “secretos”, inexplorados, que seus seguidores precisam conhecer.

Aquilo me tirou do sério. Como adiantei a vocês, quebrei meu contrato e escrevi um comentário sobre o óbvio. Em poucos minutos uma notificação saltou na tela, com uma resposta da responsável pelo perfil, que destacou estar vendo muitos comentários do gênero, com menosprezo ao trabalho de influenciadores. Respirei fundo e repliquei, sem perder a calma. Afinal, não é um menosprezo à existência da figura dos influenciadores, que já são parte da realidade desta geração. É um alerta à responsabilidade do comunicador.

No centro desse discurso de que agora temos visto algo nunca experimentado, existe uma violência contra as comunidades que sempre estiveram ali. Comunidades que fazem a festa acontecer, doando seu tempo, sua paixão e sua arte. O verdadeiro sambista precisa lidar com a figura que vem de fora, entra em sua casa, se apropria do seu bem mais precioso, um patrimônio imaterial, e vai embora espalhando aos quatro ventos que o sucesso só existe porque as redes revelaram o tal segredo. Um manifesto agressivo de que a validação da arte popular só acontece quando um formador de opinião de fora, alheio àquela força, afirma que devemos considerá-la.

É importante dizer, como respondi para a própria, que todos são bem-vindos no democrático mundo do samba. Mas é fundamental respeitar a história e a ancestralidade. É preciso pisar devagar naquele chão sagrado, com reverência e relevância ao passado e aos mais velhos, que são os alicerces das escolas de samba, responsáveis por proteger e difundir os saberes.

Foram três minutos até a interação com a influencer ser deletada. Lembra da responsabilidade do comunicador? O aprendizado é a base. Ninguém é capaz de saber tudo, mas não deve desperdiçar a oportunidade de aprender, em vez de deletar. Afinal, mais importante do que saber o que fazer no Rio, é saber como fazer, pois a nossa cidade é cheia de símbolos e códigos que, decifrados, a tornam ainda mais fascinante.

Eu sei que você está se perguntando o que isso tem a ver com o nosso aquecimento para o carnaval. E eu lhe digo: tudo a ver! O planejado para este terceiro texto era falar sobre a importância das temáticas negras e os enredos que tratam de religiões de matriz africana. Afinal, dentre as doze escolas do Grupo Especial, dez vão desenvolver histórias sobre suas raízes.

É importante destacar a questão, pois existe um grupo grande que reclama de um “mais do mesmo”, de abordagens e estéticas repetitivas, como se as crenças e os mitos de todo o continente africano fossem resumidos a uma única história. Isso é resultado, verdade, de um apagamento histórico da trajetória do negro no Brasil como formador da identidade nacional. Não temos nos livros os registros das origens dos escravizados, da cultura praticada em suas estruturas sociais e de como contribuíram para construir a nossa cultura.

O carnaval olha para esse lugar. Visita os terreiros e decifra neles a ancestralidade. Resgata uma mitologia potente, rica e nossa. É claro que isso incomoda uma parcela da população acostumada a um olhar eurocêntrico das coisas, colonizado, em que todo o conhecimento e potencial civilizatório deve ser branco. Remando contra a maré, as escolas de samba vão atravessando o oceano, em um caminho de volta para as origens africanas. Mas as figuras alheias a essa importância continuam a se apropriar da festa e a exigir dela uma branquitude que não tem. Escola de Samba é arte preta. Tem a força do axé.

A origem das agremiações está diretamente ligada aos terreiros. Este era, inclusive, o nome que as quadras carregavam no passado: terreiro. As baterias nascem dos tambores de fé, todas com um toque característico que as comunicam com seu santo de devoção, o protetor da sua bandeira. Quando o tambor toca, leva uma mensagem ao sagrado. Com as bênçãos das mães de santo, ainda representadas pela ala das baianas — quesito obrigatório no julgamento—, os rituais religiosos se desdobraram, sem nunca se dissociar, ao que conhecemos hoje como escolas de samba.

Essa relação é preciosa. O carnaval assume traços africanos em suas manifestações. É a cultura da diáspora. E assim como nos terreiros, precisa lutar diariamente contra o racismo, que muitas vezes vem daqueles que dizem admirar a expressão cultural, desde que fale de um ponto de vista distante de suas origens.

Ao olharmos para o passado entendemos um pouco da expectativa por enredos embranquecidos. Nos anos 1930 a questão racial era ainda mais violenta. O samba era sinônimo de vadiagem, tratado como crime, e a cultura negra, combatida. Para garantir a sobrevivência, as escolas adotaram temáticas brancas e discursos oficiais em seus desfiles. Isso ocorreu por muitos anos. Mas o fundamento sempre se manteve negro. Somente em 1960 o Salgueiro defendeu o enredo, Quilombo dos Palmares, com a história de um espaço de resistência que só tinha registros sob a ótica da marginalização. Foi o samba que nos fez acreditar no quilombo. Isso abriu portas para que outras vivências fossem buscadas e, finalmente, as agremiações pudessem olhar para dentro, para os seus. Foi um processo lento, construído passo a passo e que ganha ainda mais força a partir dos anos 2010. Diante da crescente intolerância religiosa, a resistência vem na arte. E é o samba que, mais uma vez, nos ensina a presença africana entre e dentro de nós.

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Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.

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A Jornada de um Enredo

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Nosso papo hoje é sobre enredo. Sobre como são construídas as histórias para que elas ganhem vida na Avenida. Mas para seguirmos nessa direção, precisamos voltar algumas casas rumo ao passado das Escolas de Samba, até o início da sua existência e a realização dos primeiros desfiles.

Atente que o primeiro desfile oficial ocorreu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1932, por iniciativa do jornalista Mário Filho. E que desde então, a apresentação das agremiações é determinada por um ponto central: a competição. É ela que vai estabelecer as relações e empenho profissional no desenvolvimento do projeto artístico que vai atravessar a pista. Essa competição é viabilizada através de um corpo de jurados, escolhido para avaliar determinados quesitos que precisam ser cumpridos ao longo da exibição.

Para que os jurados possam mensurar a execução dos desfiles, precisam ter em mãos o projeto que a Escola propõe para o seu carnaval. Essa programação chega às suas mãos na forma de um livro: o Livro Abre-Alas. É por meio dele que os carnavalescos e suas equipes de criação vão transcrever e traduzir ideias, de modo a conduzir os leitores para dentro das histórias que pretendem contar.

O Abre-Alas se assemelha muito a trabalhos acadêmicos – teses, monografias –, em sua estrutura. É um profundo documento de pesquisa, redigido a partir de variadas referências bibliográficas, que defenderá a ideia do enredo. Nele, o carnavalesco vai levantar as justificativas que dão relevância ao seu tema, à importância de abordar tais representações naquele momento. Também vai traçar um histórico para a sua elaboração e, adiante, definir ponto a ponto do desfile, para que a construção cronológica da apresentação faça sentido diante dos olhos do público.

Olhar para o Livro Abre-Alas, tão pouco conhecido pelos espectadores dessa grande festa, nos ajuda a entender que o enredo não existe apenas no campo das ideias, ele é um tema devidamente documentado, a partir de um estudo apurado, que vai estabelecer os alicerces de sustentação da história que será contada durante os 80 minutos de desfile. Tudo o que vai passar na Avenida precisa estar no livro. Bem como tudo o que consta no livro precisa ser visualizado pelos jurados ao longo do cortejo.

Debruçados sobre o histórico do enredo, compositores vão trazer o tempero, a bossa para os mais diversos temas, com a elaboração da parte musical do desfile, que vai conectar o campo das ideias com o projeto visual e os corpos extasiados durante a exibição de uma Escola.

No decorrer do processo, outros elementos irão se juntar para fazer com que o desfile aconteça e encante o público e os julgadores. Tudo em prol de um tema, um enredo que irá tomar as comunidades e as arquibancadas.

Dito isto, que tal conhecermos um pouco das histórias que vão ser contadas pelas Escolas de Samba do Grupo Especial carioca no carnaval deste ano? Em três noites de desfile, doze agremiações atravessarão a Marquês de Sapucaí, aguerridas, com o desejo de vencer o carnaval.

No domingo, primeira noite de desfiles do Grupo Especial, o público irá acompanhar a passagem da Unidos de Padre Miguel, da Imperatriz Leopoldinense, Unidos do Viradouro e Estação Primeira de Mangueira.

Com a responsabilidade de abrir os trabalhos, a Unidos de Padre Miguel vai reconstruir a história do candomblé no Brasil, dos 200 anos da Casa Branca do Engenho Velho, precursora dos territórios de axé no país. Uma jornada de fé, que atravessa o Atlântico sob a guarda da princesa Iyá Nassô, que ao lado de outras princesas enraizou em solo brasileiro a força das crenças vindas do continente africano com os povos escravizados. Trata-se de um registro não apenas religioso, mas de luta pela liberdade, dos levantes contra a guarda imperial empreendido na revolta dos Malês. Egbé Iya Nassô é um enredo que enaltece o poder feminino nas religiões de matriz africana, que fez de territórios brasileiros sua pequena África.

Também com um enredo ligado às religiões de matriz africana, a Imperatriz Leopoldinense vai levar para a Avenida a sabedoria dos Itãs, que revela a ida de Oxalá ao reino de Oyó com a intenção de visitar Xangô. Os Itãs são contos sagrados, parábolas de saberes, de erudição. Desenvolvido pelo carnavalesco, Leandro Vieira, o enredo da Imperatriz vai apresentar histórias de reis e rainhas no continente africano. Conhecimentos distantes dos livros, transmitidos e apropriados nos terreiros.

Em seguida, a Unidos do Viradouro vai trazer para a roda a história de Malunguinho, o mensageiro de três mundos. A atual campeã do carnaval viaja até o século 19 para jogar luz sobre João Batista, o Malunguinho, líder do Catucá, maior quilombo de Pernambuco. Um símbolo de resistência e de sincretismo religioso, pois ao morrer o Malunguinho se encanta em três entidades: o caboclo das matas, conhecedor dos caminhos; o mestre Juremeiro, que ensina o poder das ervas e das folhas; e em Exú Trunqueiro, o guardião das encruzilhadas. Poderes que fez com que o culto da Jurema Sagrada creditasse a Malunguinho a ligação entre três mundos. Um enredo afro-indígena que vai traçar uma trajetória de luta e resistência ancoradas na fé.

Para fechar o domingo, a Estação Primeira de Mangueira vem mostrar como os povos bantus reconstroem sua terra em qualquer espaço. A verde e rosa aponta para as heranças dos bantus na cultura contemporânea, resultado da grande maioria de escravizados desse grupo étnico, que desembarcaram no Cais do Valongo, no Centro do Rio de Janeiro. Um enredo que vai se aprofundar na negritude carioca advinda da diáspora africana, que construiu a identidade sociocultural do Rio. Um mergulho nas diversas influências no comportamento e no idioma; somado a um olhar para os quilombos modernos, que continuam a luta por liberdade, respeito e reconhecimento, nas favelas e em outros espaços de exclusão.

Na segunda-feira quem dá o pontapé inicial é a Unidos da Tijuca, com a força de Logun Edé, o santo menino que velho respeita. Filho de Oxum e Oxóssi, Logun Edé é o rei da guerra e da água, que consegue unir com sabedoria a força de seus pais, sendo doce e benevolente, como Oxum, e sério e guerreiro como Oxóssi. A Escola garantiu uma grande atenção no período de pré-carnaval por contar com o nome de peso da cantora Anitta, entre os compositores do samba que vai embalar o seu desfile.

Em seguida é a vez da Beija-Flor de Nilópolis convocar o povo do samba para recontar a sua história ao olhar para a vida de Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, o grande mestre, Laíla. O diretor que levou a Escola da baixada ao topo do pódio tantas vezes ajudou a moldar a grandiosidade e o profissionalismo do carnaval como o conhecemos hoje. Laíla comandou desfiles históricos, com muito talento. Um grande personagem do carnaval, que vai renascer com a força de seus guias para a Marquês de Sapucaí. Um relicário de memórias da Beija-Flor e da própria festa.

A terceira Escola a se apresentar é o Acadêmicos do Salgueiro, que vem de corpo fechado para a disputa. A vermelho e branco da Tijuca vai falar de encantamento e proteção. Dos amuletos, objetos e rituais dentro da cultura religiosa brasileira que servem para nos blindar de todo o mal. Salgueiro de Corpo Fechado pode, sem dúvida, tratar da própria Escola de Samba, que como todas as outras tem suas bases fincadas na fé, nas superstições e nos cultos de matriz africana.

Encerra a noite de segunda-feira a Unidos de Vila Isabel, caprichada no medo. Com o enredo, Quanto Mais eu Rezo, Mais Assombração me Aparece, a Escola traz um trem fantasma lá das terras de Noel Rosa para levar a plateia por um passeio por lendas, mistérios e assombros. Uma viagem pelos contos do folclore brasileiro e por crenças que nos apavoraram na infância, que ainda rondam o nosso imaginário. Um desfile de arrepiar.

A grande novidade do próximo carnaval é uma terceira noite de desfiles, algo que vem sendo preparado há meses. As agremiações que vão conduzir essa inovação serão a Mocidade Independente de Padre Miguel, o Paraíso do Tuiuti, a Acadêmicos do Grande Rio e a Portela.

A Mocidade volta os olhos para o futuro, sem limites para sonhar. Uma viagem intergaláctica até sua estrela guia para pensar no futuro da humanidade, dependente da revisão do passado e presente. O enredo foi desenvolvido pelo casal de carnavalescos, Renato e Márcia Lage, que retornaram à Escola da Zona Oeste após 22 carnavais. Infelizmente, por força do destino, uma grande estrela se apagou no início do ano, quando anunciada a morte da carnavalesca, Márcia Lage, a quem a comunidade homenageará durante o seu desfile.

Com o Paraíso do Tuiuti o público vai assistir um dos enredos mais corajosos que a Sapucaí já presenciou. A história de Xica Manicongo, a primeira travesti não indígena do Brasil, escravizada e trazida da região do Congo no século XVI. Xica era respeitada pela sociedade africana. Trazida para Salvador, é torturada pela inquisição portuguesa, que promove o apagamento da sua identidade, com a imposição de uso do nome masculino, Francisco. Somente com a luta do movimento de travestis e pessoas trans a historiografia é corrigida, conferindo a Xica seu nome, um verdadeiro título de nobreza. Ao defender esse tema, o Tuiuti ergue uma bandeira importante, sem medo de preconceitos, pois a arte tem uma força política inigualável.

E por falar em força, a Grande Rio vem a seguir com o vigor das Pororocas Parawaras, uma homenagem ao estado do Pará a partir das entidades encantadas que vivem nas pororocas, o encontro das águas. Essa história começa a partir de um naufrágio, em que três princesas turcas, vítimas do acidente, viram encantadas da floresta. É a encantaria do norte do Brasil representada na Passarela do Samba, com o tambor de mina, o carimbó e a cultura popular. Um movimento interessante que aconteceu durante o processo da Grande Rio foi a escolha do samba que irá defender. A Escola abriu uma disputa paralela no Pará. A composição vencedora no estado foi trazida para a disputa final, na quadra da tricolor de Caxias e sagrou-se campeã. A obra de Mestre Damasceno, importante mestre de Carimbó, faz com que o paraense dê voz à sua própria cultura, o que é um grande acerto.

E finalmente, encerraremos o carnaval com uma homenagem inesquecível. Com o enredo, Cantar Será Buscar o Caminho Que Vai Dar no Sol, a Portela dá o devido reconhecimento a um dos maiores artistas brasileiros: Milton Nascimento. Um talento merecedor da maior homenagem que uma pessoa pode receber: ser cantado por uma Escola de Samba, no maior Espetáculo da Terra. É um sentimento que a cerimônia entediante do Grammy nunca vai entender. Aplaudir e reverenciar um artista do tamanho do Milton é uma forma deliciosa de se despedir da folia e de sentir saudade dessa festa maravilhosa, até que se iniciem os trabalhos para 2026.

E aí, ficou com água na boca? O carnaval é logo ali! As escolas de samba já estão há meses realizando ensaios de quadra e de rua. E há algumas semanas, os ensaios técnicos no sambódromo, o campo do jogo. Fica ligado na programação e se joga.

Vale dizer que trouxe aqui apenas um aperitivo do que são todos esses enredos, recheados de detalhes e preciosidades. Caso tenha se interessado, sugiro que dê uma lida nas sinopses de cada Escola. É fácil de encontrar. Aliás, fica uma dica: quando lemos as sinopses dos enredos antes de assistir aos desfiles, as apresentações ficam com um sabor ainda mais especial, pois entendemos cada elemento e conceito apresentado. Experimenta!

Os enredos e livros Abre-Alas também são um grande material de estudo para trabalhar em sala de aula, seja pelo potencial artístico, literário, histórico, geográfico. Mas aí é papo para um outro momento. Depois que a poeira de glitter baixar, prometo que volto para falar disso.

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Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.

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Identidade e Samba no Pé

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Não há nada mais bonito e envolvente do que as escolas de samba. Sim, faço questão entrar com o pé direito neste plano virtual carregando essa frase nos braços, ainda que pareça fora da ordem natural do texto. Ela será a introdução, o desenvolvimento e a conclusão do que há de vir daqui em diante. Simples desse jeito, sem firulas e arrodeios: definitiva!

Entendo que para você, talvez, ela não tenha valor ou sentido. O carnaval, afinal, é apenas uma festa. Será?! Eis que lhe estendo a mão como um convite a observar a imensidão desse universo de cores, de ritmos, de ancestralidade, de brasilidade e de múltiplas artes.

Arte a perder de vista. Quando a sirene toca na Marquês de Sapucaí e os portões se abrem, cada agremiação impõe um levante artístico. Os planos para este movimento se iniciam com meses de antecedência, nos quais um tema foi estudado e trabalhado à exaustão. Este é o enredo, a história a ser contada: dramaturgia pura, com grandes atos e encenações. A partir dela desenrolamse diferentes linguagens e formas para que esse enredo seja não apenas narrado, mas sentido, pois a arte é de fazer sentir. E o desfile é o maior palco, a maior galeria a céu aberto do planeta. Vamos começar, pois, pela música e pela dança, as raízes inaugurais dessas instituições que transformaram terreiros em quadras, ergueram suas bandeiras e tomaram as ruas, provocando a euforia dos corpos, a performance.

O samba é um ritmo ancião, em que o tambor dialoga com o ancestral e conversa diretamente com o corpo, que se manifesta com graça e êxtase. O pulso da bateria é música e fé, faz com que compassos e acordes alcancem o sagrado, com um toque aos seus orixás. Os músicos marcam o andamento do cortejo, enquanto dançarinos rabiscam o chão. Com uma observação levemente atenta qualquer espectador é capaz de identificar ao lado da dança popular, elementos da dança clássica ou contemporânea. Passos e coreografias que buscam referências das mais diversas para fazer com que troncos e membros traduzam som em cinesia.

Aqui, peço licença para uma repetição: não há nada mais bonito e envolvente do que as escolas de samba. Essa estrutura artística é de uma complexidade tamanha, que não cabe em uma galeria ou um museu. Ela acontece pura e unicamente ali, naquele instante. Fica gravada na memória, mas se perde enquanto matéria. Os materiais se ressignificam para que, em um próximo carnaval, voltem com outras formas para contar novas histórias. É arte efêmera como o sentir.

Mas a grandiosidade vai muito além. Na capacidade de transformar os anônimos em artistas genuínos, de fazer dos seus espaços lugares de encontro, de comunhão e de fala. Uma organização social somente decifrada quando vivenciada. Fundamentada na ancestralidade e no respeito aos mais velhos, que pavimentaram o chão sagrado de cada agremiação, algo que faz com que a modernidade seja um complemento, sem extinguir a tradição.

As Escolas de Samba guardam em si parte da história. Uma herança inestimável contada, em sua maioria, na oralidade. Por mais que historiadores tenham se debruçado em registrar os fatos e personagens, o todo é impossível. Jamais saberemos. A cada luto nos despedimos de uma fração de memória.

É preciso entender, ainda, o papel educacional das agremiações, que as colocam como instituições fundamentais na construção da identidade de um povo. Ao longo dos anos enredos e sambas retrataram a história do país. E cada vez mais os carnavalescos com seus pesquisadores tem se dedicado ao aprofundamento nas histórias não contadas. No Brasil que a história oficial escondeu. As narrativas negras apagadas, e aquelas que sequer foram parar nos livros por enfrentarem o eurocentrismo que nos inunda, são escritas e reescritas. A verdadeira história do povo brasileiro, que luta e sonha, e suas raízes ancestrais, emergem em cores e brilho diante dos nossos olhos.

Importante dizer que o desfile é apenas a foz, em que um rio caudaloso deságua suas ações de um ano inteiro. O desfile não é a razão de existência, apenas o ato final de um ciclo, a explosão de energia de um átomo que se agita por meses até o grande impacto. E isso também é uma grande vitória. Nenhum outro evento no mundo, com dimensões aproximadas, se organiza e executa em período tão curto.

Dito isso, apontamos apenas uma parcela da riqueza cultural que as Escolas abrigam. Trabalho de um ano inteiro, de vidas inteiras. Sustento de famílias e de uma cidade que aprendeu a ser turística com o samba no pé. Um acontecimento colossal que não pode ser entendido apenas como uma festa. É muito, muito maior do que isto. Não é sobre corpos desnudos, sobre profanação ou outras frases pejorativas que dizem por aí. Carnaval é potência cultural, uma força viva.

Carnaval tem valor e faz parar o tempo. Confesso a você que por um momento, no primeiro recuo da bateria, o tempo para e o silêncio ao nosso redor é interrompido pela voz do Gil sussurrando baixinho no ouvido: o melhor lugar do mundo é aqui e agora.

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Mariana Rosa

Acredita que a vida sem a arte seria um erro. Dito isso, tem a necessidade de consumir e de produzir arte de todo o tipo. É do audiovisual, das artes visuais e da escrita, mas o teatro pulsa também. Faz Comunicação Social na UFRJ e fica igual pinto no lixo na natureza.

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A Transcendência

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Acho complicado escrever sobre o Carnaval, uma vez que só consigo categoriza-lo dentro do grupo de experiencias inefáveis, da ordem do sagrado. Poderíamos abordar dele os trabalhadores que estão lá para levantar as vezes a grana de meses, ou tentar traçar o perfil daqueles que o ignoram em estados imanentes de rotina sobre forma de descanso, viagens para sítios de paz onírica ou retiros espirituais. Mas hoje nosso olhar se estenderá sobre os atores do Carnaval de rua e é desse que o não dizível se deve dizer.

Como uma força telúrica que se canaliza sobre pés que beijam o chão, a energia do Carnaval se ergue em mãos que se alçam como quem busca raízes fincadas no vento. Sendo possivelmente o mais emblemático cerimonial da atual civilização brasileira. Um estado de afrouxamento da razão, um estágio de transcendência do ego, que se desloca dos modos propostos pela estrutura apolínea para qualquer outro lugar que só pode ser descrito (ou não) por alguém que já se perdeu sem documento ou celular no meio de um bloco.

Essa epifania selvática será vivenciada tradicionalmente nos grandes polos Carnavalescos do país como Olinda, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Ouro Preto, na crescente cena de Belo Horizonte e São Paulo. E sobreviverão de seu sacrifício seres festejantes que terão muita das vezes efêmeras recordações de sua comunhão com o Reino do amor-em-si. E talvez poderão contar a partir da quarta feira de cinzas seus testemunhos etílicos in loco: de corações desconhecidos se beijando as vezes em conjunções triplas. De estandartes de pequenas folias com nomes repletos de deboche. De pessoas dançando sozinhas em ruas venais, de crianças vendedoras de bala abdicando da tarefa para desfilar com pequenas fanfarras sob o sol escaldante. De caos, chuva, violência, dor e suor. De um musica infinita que atinge diretamente seus inconscientes primitivos e os faz cantar e pular e delirar despidos de senso de vergonha, não havendo policiamento moral sobre a própria felicidade porque os mecanismos de autocontrole estarão redefinidos, para o bem ou para o mal, aquém da transcendência.

Que se faça saber, alguém em algum momento, talvez na terça a noite no Cacique de Ramos no centro do Rio, talvez em Santa Tereza sendo mais um na multidão do Céu na Terra. Ou no Galo da Madrugada, ou no por do sol da Barra. Ou em São Luiz do Paraitinga, ficará intervalado, por um segundo, em captação sensorial e entenderá uma verdade, respondendo com um sorriso, que o Carnaval é para nós, os seres festejantes, o nosso retorno ao útero.

E que esse depoentes terão a certeza que terminado o trabalho no selo dos encerramentos, o ritual do carnaval retornará no próximo ano para todos aqueles que dele nunca se apartam, amalgamado com o verão, resplandecendo insanamente sobre os velhos estandartes.

A fórmula do Dr. Pilsenstein

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4 horas da manhã. O silêncio da madrugada é quebrado pelo som das borbulhas nos tubos de ensaio e balões volumétricos no laboratório do Dr. Victor Pilsenstein. O brilhante químico estava empolgadíssimo porque, depois de vários anos de pesquisas, tinha finalmente descoberto a fórmula. O Dr. Pilsenstein estava com o mesmo entusiasmo que sentiu no século passado, quando conseguiu trazer de novo à vida o carnaval de rua, morto e enterrado desde os tempos do Bafo da Onça. Ele se lembrava agora, com nostalgia, da noite em que invadiu o cemitério para exumar o cadáver, com o auxílio de seu fiel assistente, o corcunda Waldemar. A fantástica ressureição do carnaval de rua tinha sido, até agora, o seu grande triunfo. Mas a descoberta dessa nova fórmula poderia levar seu nome ao panteão do Prêmio Nobel de Química.

Nos últimos anos, o Dr. Pilsenstein vinha se dedicando também a um serviço de consultoria técnica a vários produtores de cerveja artesanal. E foi a partir daí que ele concebeu esse novo e ambicioso projeto, que envolvia banheiros químicos e cerveja, dois elementos fundamentais no carnaval de rua.

Naquela madrugada, o Dr. Pilsenstein tinha conseguido descobrir uma fórmula economicamente viável de desxixização da urina depositada nos banheiros químicos e sua posterior cervejização. Graças a esta descoberta, o material seria instantaneamente transformado em cerveja, e poderia ser reutilizado ali mesmo. Depois da passar por um aparelho de filtragem e purificação, o líquido se transformaria num saboroso chope dourado, passaria por uma serpentina e seria servido, no capricho e estupidamente gelado, aos foliões e mijões sedentos.

Com essa combinação de banheiro químico e choperia autossustentável, o Dr. Pilsenstein tinha encontrado a solução para um grave problema do carnaval de rua. Os foliões não mais mijariam nas ruas, fazendo questão de utilizar esses inovadores banheiros químicos, para poder aproveitar o carnaval até a última gota. Agora, era só esperar pelo Nobel.

O carnaval subversivo na terra ancestral pau-brasil

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Não é de hoje que são quase sinônimos o Carnaval e o Brasil. Antes, ressaltemos suas origens africanas: África, berço do mundo. No Brasil, o samba, herança do povo negro, popularizou-se na década de 1930. Em 1941, foi instaurada a “lei da vadiagem”, que perseguia os sambistas de rua, de maioria negra. Percebe-se que a alegria do povo sempre incomodou: não era bem-vinda a felicidade, o samba no pé, os sambas-enredo. Mesmo assim, o carnaval vingou; o povo brasileiro vingou, a despeito de toda a repressão. Antes de ser considerado apenas uma desculpa para a liberação de nossos instintos, o carnaval tem origem subversiva, ligada às religiões de matriz africana.

O samba enredo da Unidos de Padre Miguel deste ano, por exemplo, homenageia os 200 anos do mais antigo terreiro de candomblé do brasil, a Casa Branca do Engenho Velho (ilê axé iyá nassô oká), que leva o nome de Iyá Nassô, uma princesa africana trazida para o Brasil escravizada e grande responsável por semear o culto aos orixás em nosso país. Não podemos esquecer que o Brasil é terra de resistência de muitas realezas que plantaram a semente da libertação.

Awurê obá kaô, awurê obá kaô
Vila Vintém é terra de macumbeiro
No meu egbé, governado por mulher
Iyá Nassô é rainha do candomblé

Vovó dizia
Sangue de preto é mais forte que a travessia

Saudade que invade
Foi maré em tempestade
Sopra a ancestralidade no mar, ê Rainha
Preceito é herança sem martírio
Airá guarda Seus filhos no Ylê da Barroquinha

Quando falamos de carnaval, então, falamos de resistência, de samba, alegria, bravura, pulsão de vida, êxtase, coração vibrando e corpo arrepiado. É impossível deixar de participar — a cidade adquire outro ritmo, uma atmosfera diferente paira no ar. São os dias mais vívidos e bem-vividos do ano. Não há limites para o fervor do povo brasileiro, que labuta o ano inteiro e precisa extravasar de alguma forma tudo que acumula dentro de seu peito.

O Carnaval nunca foi festa dos ricos, muito pelo contrário, sempre foi festa do povo, construído e celebrado pelo povo. O mesmo povo que dita a cultura é aquele que fala a língua popular, o falar de todo dia. Não os cabeçudos presos em grandes edifícios que falam a língua erudita e se acham mais especiais que o restante da população. Estes não pulam carnaval; achando-se superiores, perdem todas as bençãos da festança.

Disso já sabiam os modernistas, os disruptivos, chamados futuristas: os ousados que buscaram os elementos mais puramente nacionais, dentre os quais está o Carnaval. Em carta a Manuel Bandeira, o escritor Mário de Andrade, grande articulador cultural, escreve sua surpresa e alvoroço interno diante da beleza do carnaval do Rio de Janeiro:

“Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! […] Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. […] Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora se gastou. Manuel, sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo se serpentina, diverti-me 4 noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitar-te. Estou perdoado.”  – Manuel Bandeira

Fonte: (MORAES, M. A.(org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2002, pp.84-85).

Manuel Bandeira, confidente sincero de Mário, por sua vez, publicou, em 1919 — durante a efervescência das ideias modernista — o livro de poesias “Carnaval”. O poema “Bacanal” nos prova que até mesmo o mais melancólico dos poetas modernistas queria curtir o carnaval:

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em douro assomo…
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos…
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
além de versos e mulheres?
– Vinhos!… o vinho que é o meu fraco!…
Evoé Baco!

Ou seja, até mesmo o poeta mais erudito dá um descanso na labuta e na intelectualidade para viver as “serpentinas dos amores”, “cantar asneiras” e beber vinho. Todos nós somos vulneráveis ao carnaval. Apesar de cultos, esses escritores também se permitiram viver intensamente o carnaval brasileiro. De menos Drummond, o mais tímido deles (mineiro incurável), que certamente ficaria na sombra, sem graça, rindo bobo e refletindo sobre tudo. Mas estaria lá.

Não se enganem: não é porque Drummond era tímido que era puro. Pelo contrário: possuía certamente os seus “podres”, como Bruna Kalil Othero — escritora e pesquisadora de literatura brasileira de quem sou fã — bem discorre em um dos poemas de seu livro lançado em 2019: “Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas”, premiado pelo Ministério da Cultura. O livro é uma paródia bem-humorada do projeto modernista da nação e rediscute conceitos cristalizados como o que é “clássico” e o que é “cânone”. São poemas subversivos sobre a cultura nacional e que trazem à tona aspectos ridículos, antes impensados, sobre esses mesmos poetas modernistas em torno dos quais se coloca uma grande aura. Os intocáveis.

O tempo é como uma lente que muda a perspectiva, e Bruna Kalil Othero favorece e acompanha o tempo na medida em que abaixa as calças dos modernistas diante da plateia e revela o ridículo que ninguém quer ver. Abaixando essa calça, ela retira o véu do misticismo da poesia e mostra: olha lá, a bunda deles, como é peluda! Todo mundo pelado é parecido! Não há letras bonitas escritas na cueca de nenhum deles.

Muitos homens de seu tempo possuem seus defeitos. Homens de todos os tempos, defeitos de todos os tempos. Poetas ou não, cheios de equívocos, de “ismos” de todas as espécies.

A alegria do carnaval não existinguiu a tristeza da escravidão. Não existingue a tristeza dos trabalhadores humilhados. No carnaval, o assédio às mulheres ainda impera. Depois do evento mais esperado do ano, a vida volta a ser o que era antes, como bem coloca Bruna Kalil:

Mas, pelo menos, a alma está mais aliviada, os instintos foram exorcizados e o corpo já sambou bastante.

É bem verdade que no meio da multidão suada do Carnaval somos todos ainda mais humanos, bem humanos, suados, dançando, curtindo, sambando, exalando álcool, mil odores diferentes. E, no meio do som do tambor, da cuíca, do pandeiro, do agogô, do maracá, debaixo do sol de 40 graus, ninguém está nem aí se você é poeta ou não, modernista ou não.

E viva o Carnaval!

A Esperança

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Assim falou João Antônio: “Nós não estamos nem aí e não queremos nem saber, quem envernizou a asa da barata!”. A barata é há muito o avatar do Mal no inconsciente urbano pós moderno e dela trataremos em outro capítulo a fim de estudarmos sua ojeriza. O fato é que todos se felicitam quando outra espécie de inseto pousa descompromissado na fronteira do cotovelo da criança. Olhando de perto se parecem: seis patas, asas e antenas, mas a cor verde vívida as diferencia, e além do cromatismo a mais importante ruptura esta nos nomes populares: enquanto uma é sinônimo de pouco valor a outra não toma chinelada porque é simplesmente a esperança.

O falangista Pedro Laín Entralgo escreveu que “A futurição da existência animal tem sua forma mais própria na espera, viver animalmente é, em sua mais profunda e específica raíz, exercitar uma espera predatória ou defensiva”. Com essa inusual citação, abrimos os questionamentos implícitos desde que lemos o texto desta coluna. Afinal, o que é que estamos esperando? O que esperar do quê esperam de nós? Seria a esperança uma virtude teológica? Ou talvez uma mera transcendência abstrata e paralisante que possui a fragrância da ingenuidade pueril para aqueles que a renegam, os desesperados?

Coloca aí de fundo Esperanza Spalding cantando Ponta de Areia do Milton e vamos elucubrar. Já foi dito que sendo otimista ou pessimista você estará certo de ambas as formas. Os esperançosos estão no seu continuo vir-a-ser aguardando o amor, a reconciliação, a promoção, a boa notícia, a cura, o gol aos quarenta e cinco, a providência, o orgasmo, o convite, o paraíso, o dia de sol. Os desesperançosos também esperam por tudo isso, mas em polo invertido. Já intuindo de antemão o fracasso de alimentar a flor da expectativa e por isso mesmo corroborando sua irrigação.

Somos criaturas para o amanhã. Vivemos de sonhos. Acreditamos em milagres. Nossos projetos subjetivos ou concretos são um reflexo do nosso diálogo com o Absoluto. Com a fé na vida e no que virá. Nossos olhos buscam o além dos horizontes. E mesmo que o Divino não passe de mitos e DMT, todo sorriso de criança carrega consigo um milagre e a esperança de um mundo novo. No sorriso do bebê, o Satori se manifesta.

A coluna do Mr. Hyde deseja nesse início de ano que seu coração, cara leitora, caro leitor, seja limpo de todo desespero, e que você consiga guardar consigo a força do otimismo e da vontade de realização.

Não sabemos se reverteremos a crise climática, não sabemos se extinguiremos as guerras ou se teremos salário para o próximo boleto. Não sabemos se lembrarão do nosso aniversário e se seremos perdoados, não sabemos se reconstruirão os trilhos ou deixarão as casas vazias com viúvas nos portais. Faça apenas o que há de ser feito, com coragem e energia. E que certa manhã uma esperança entre voando pela janela e se assente no teu cotovelo distraído.

Joe Pease e a vida em diferentes camadas

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Sabe quando você deita pra dormir depois de um dia cheio e ainda tem coisas rodando pela sua cabeça? Coisas pra se lembrar, decisões pra tomar, tudo e todos que você viu naquele dia. Vivemos na era da sobrecarga de informação e, apesar de falarmos constantemente sobre isso, são poucos os artistas que realmente nos fazem enxergar e questionar essa rotina. Joe Pease, foi um dos únicos até agora que me mostrou um jeito criativo de abordar essa questão contemporânea.

Pouco tem a se falar sobre a biografia de Joe, visto que poucas vezes expôs seu rosto e poucas vezes deu entrevista (2 vezes até agora). Australiano que atualmente vive nos Estados Unidos, teve alguns trabalhos audiovisuais antes de começar suas obras de vídeo arte. Tendo sido um dos diretores da agência de publicidade Saatchi and Saatchi e diretor de “DAEWON” (2019), um documentário sobre o skatista Daewon Song.

A cultura do skate inclusive está intrinsicamente ligada ao seu trabalho. Como comentou em entrevista, o filme de Spike Jonze, “Mouse” (1996) foi uma porta de entrada de Joe para gravação e edição de vídeo. Além disso, foi o que lhe apresentou aos clipes de Spike, à Michel Goldry entre outras referências que impactaram seu estilo.

Sobre seu estilo, inclusive, é notável como é bem definido no seu trabalho. É uma espécie de colagem visual de vídeos que misturam gravações externas, gravações em fundo verde, imagens e vídeos de estoque, entre outras várias coisas. Postas em um formato que brinca com camadas, repetições e perspectivas. Tudo isso claro, gravado, editado e pós produzido pelo próprio, o que explica muito bem o porquê da baixa frequência de suas postagens nas redes.

Se pararmos para pensar, todo material bruto usado para suas obras é bem pouco. Mas é interessante ver a forma como Joe consegue brincar com ele ao se utilizar de efeitos visuais (muito provavelmente feitos no After Effects). Como espectador, eles me fazem refletir sobre todos os “mini instantes” que temos em um dia. Quando vemos uma pessoa conhecida ou não na rua. Quando passamos de ônibus e nosso ponto de vista sobre um lugar muda. Quanto tempo se passa nessas pequenas interações e quanto tempo sentimos que passou.

Vídeo para a Glitchmarfa sobre a obra “| | | | ||||| | | | |”

Como editor de vídeo fico realmente admirado com a simplicidade de ideias e a complexidade da montagem das suas obras, que com certeza, custaram uma boa memória RAM. Só de pensar nas camadas repetidas, nos efeitos de luz, câmera, janela de ajustes, dentre outros recursos, fica difícil tentar imaginar um ponto de partida pra a criação de um clipe. Como desenhar e planejar tamanha sequência de efeitos simultâneos? Por onde começar?

“eu me esforço para explorar constantemente estilos diferentes. Eu gosto de todos os aspectos da produção cinematográfica e adoro experimentar em todas essas partes diferentes.” – Joe Pease

Fonte: visual fodder

É um somatório de coisas que faz ver uma obra sua postada em algo singular na minha rotina. E apesar da baixa presença nas redes. Se lembrarmos de todo trabalho, de pessoa e máquina, que demanda para realizar uma obra dessas, dá pra entender a demora na publicação de sua próxima colagem. Por hora, vou tentar filtrar um pouco desse acumulo de informações antes de dormir.

Para conhecer o trabalho de Joe Pease siga-o no Instagram e no Twitter