Notas e comparações sobre The Office

Quando se trata de comédia, é interessante pensar como o desconforto (muitas vezes referenciado pelo anglicismo cringe) pode ser uma ferramenta para provocar risos. O melhor experimento sobre isso na televisão, é a série The Office. Seja sua versão britânica (2001-2003) ou americana (2005-2013), ambas seguiram um formato ficcional mascarado de documentário (mockumentary) e foram abre-alas de um subgênero da comédia que perpetua até hoje (vale dar uma olhada no texto sobre documentários falsos feito pela Magdalena).

Vinda de uma ideia entre dois escritores amadores da BBC, a série inglesa tinha como tom uma comédia mais ácida, na qual o roteiro dava deixas bem claras para reação do público. Sempre havia um momento de silêncio depois de uma frase constrangedora ou situação embaraçosa, e a leitura que era feita da comunicação corporal dos personagens era um gatilho para o desconforto do público.

Já na versão estadunidense do programa, o tom foi preservado ao máximo, mas com algumas adaptações. O desconforto era a principal ferramenta, porém as deixas dos roteiros eram mais precisas, o que abria mais possibilidade para os atores e faziam as piadas mais impactantes. A linguagem corporal era mais aparente e o constrangimento mais repentino.

Porém o que é interessante de notar sobre ambas as séries, é de que mesmo se utilizando do desconforto como campo aberto, cada uma delas seguiu um caminho completamente diferente para conquistar certa empatia de seu publico e provocar questionamentos. Tudo isso sendo um reflexo de duas diferentes abordagens de comédia, vinda de três roteiristas diferentes, de um lado Ricky Gervais e Stephen Merchant e do outro Greg Daniels.

The Office (RU):

The Office original é um grande laboratório sobre o desconforto e como conseguimos lidar com ele. Suas situações são mais secas e mais angustiantes, levando o publico a ficar com mais pena do que necessariamente desgosto por aqueles personagens com uma teoria de mente fraca. Garreth (Mackenzie Crook) e Finchy (Ralph Ineson) por exemplo, são personagens que claramente criam desconforto no escritório pelo tom de suas piadas (Finchy) e seriedade em certos assuntos (Garreth).

Garreth apontando para a cintura de Paula enquanto Jamie observa

Garreth: “Uma adição. Se você for até o fim com o Tim e você espera que eu vá ai dentro depois, certifique-se que ele use uma camisinha. Meio que é a regra.”
– T02E02: Apprassials

O melhor exemplo de um personagem que passa do desgosto para a pena é o chefe do escritório David Brent (Ricky Gervais). Pelo seu tom egoísta David sempre querer chamar a atenção da câmera, sempre levar as adversidades como um resultado positivo e sempre tentar fazer graça com seus empregados para parecer um cara legal. Como resultado ele acaba manifestando seu lado mais irritante e preconceituoso, o que faz com que aos poucos seu personagem se torne um pária no escritório e nos faça ter pena dele.

Esse comportamento tem dois motivos, o primeiro é que parte da experiência e assistir The Office é ver os personagens sendo postos em situações errôneas e vê-los, do seu jeito, admitir o erro. David, por ser um personagem de mente fraca, só passa por isso no final da série, quando recebe uma proposta para sair da empresa pela sua incompetência e como resultado implora para ficar no cargo. Já Tim (Martin Freeman), um dos únicos com uma teoria de mente forte, passa por isso inúmeras vezes ao longo da série graças ao seu desejo de ficar com Dawn (Lucy Davis), que já está comprometida.

Lee empurrando separando a dança entre Tim e Dawn
Tim passando por um situação embaraçosa…

O outro motivo é mais pela visão de comédia que Gervais tem. Enquanto para muitos o riso é uma descontração, para Gervais pode ser interpretado como um ato de concordância. Por isso, muitas vezes ele é referenciado por trazer uma comédia mais ácida e muitas vezes encarada como grosseira, pois fala de um tabu que nem sempre a audiência está pronta para se manifestar sobre o assunto (vale ver seu discurso de abertura no Globo de Ouro 2020 e também ver o texto do José sobre diferentes abordagens de stand-up).

“Eu acho que existe uma grande diferença entre comédia e senso de humor e eu acho que o trabalho de um comediante não é fazer as pessoas rirem, isso é fácil, isso pode ser um reflexo. Quero dizer, você vê alguns comediantes… É o ritmo, eles podem lançar uma frase falsa e ainda sim conseguir uma risada. Eu acho que é sobre fazer as pessoas pensarem naquilo e porque aquilo é engraçado e eu acho que comédia é sobre empatia. Eu não rio de quem eu não gosto. Eu não acho que você deva estar acima do público. Não tem nada de engraçado em ver pessoas invencivelmente bonitas, inteligentes surgindo e te dizendo porque elas são bonitas. Eu quero ver elas perdendo suas partes, caindo se levantando e se limpando.” – Ricky Gervais

Fonte: BigThink

Pois então quando David Brent (Ricky Gervais) se manifesta de forma racista, por exemplo, ele põe em questionamento os valores e convicções de quem assiste e nos faz refletir sobre a suposta graça da situação.

David Brent apontando o polegar para Oliver ao seu lado

Phillip: “Eu não sou novo e eu achei bem ofensivo.”
David Brent: “Okay, mas ele não achou.”
Brenda: “E o que ele tem a ver com isso?”
David Brent: “Bem, se ele não se incomoda de rirmos dele, que mal tem?”
Trudy: “E por que só pessoas negras têm que se ofender com racismo?”
David Brent: “Bom ponto. Primeira coisa sensível que você disse o dia inteiro…”
– T02E01: Merger

Além disso, quando algum personagem encara que cometeu um erro, sentimos empatia por ele e refletimos sobre a própria vergonha e desconforto que passamos em situações similares nas nossas vidas.

Tim se acalmando e se sentando em sua mesa após o empurrão
…Tim reagindo a situação.

The Office (EUA):

Quanto a versão norte-americana, o humor mais ácido fora mantida desde o começo da série com o intuito de preservar o objetivo de incomodar o público. Para tanto, seu episódio piloto é uma direta adaptação do piloto britânico.

Porém, no final do episódio, já era possível notar uma mudança de direcionamento que a série faria:

David Brent tenta desviar da culpa depois de fazer uma peça com Dawn que tenta se recuperar.
Jim põe a gelatina com a caneca de Michael em sua mesa.

Em vez de se focar apenas no erro dos personagens como uma ferramenta de empatia e questionamento, o The Office americano decidiu adotar uma filosofia diferente: Se a vida é o caos que é trabalhar naquele escritório, vamos também mostrar que existe um lado bom na vida.

“Houve muitas metáforas para The Office e a metáfora visual que Greg [Daniels] nos deu sobre o programa em geral foi: um pavimento de concreto, de aparência tediosa, como um estacionamento de escritório, com uma pequena flor crescendo em uma rachadura. E o ponto dele era, isso é uma sátira sobre o mundo moderno de estacionamentos de escritórios, luzes fluorescentes e tetos falsos, mas a alma do programa é aquela pequena flor que de alguma forma achou seu caminho. Aquele pequeno pedaço de luz que achou seu caminho pela rachadura desse universo pavimentado, entende? E essa era uma metáfora muito forte, eu penso nela toda hora.” – Michael Schur, roteirista da sérieFonte: Vox

Assim aos poucos, as situações de desconforto foram se balanceando com os momentos de alegria, esperança, motivação e humor. Cada vez mais vemos diferentes dimensões dos personagens, que nos fazem tanto encará-los como loucos como também criar empatia por eles independente do nível de teoria da mente deles: Jim (John Krasinski) se mostra mais confiante do que acovardado quanto a Pam (Jenna Fisher), Pam (Jenna Fisher) se mostra mais confiante quanto a sua habilidade de desenho e Dwight (Rainn Wilson) se mostra mais empático e preocupado do que individualista, mas a principal mudança vem com Michael (Steve Carell).

Michael Scott tinha sido planejado para ser idêntico a sua versão britânica, porém a adição de Steve Carrell para interpretar o protagonista provocou uma mudança na forma como os roteiristas estavam trabalhando o personagem. No fim da primeira temporada, o filme estrelado por Steve, O Virgem de Quarenta Anos (2005), estreou, revelando um arquétipo bem diferente do que o comediante interpretou na série. O protagonista, Andy era muito mais puro e brincalhão do que Michael e, com o sucesso do filme, os executivos da NBC decidiram sugerir aos roteiristas mudanças para o personagem.

Michael Scott falando com Jim no deck do barco no episódio Booze Cruise

Michael: “É, é. A Pam é legal”
Jim: “Ela é divertida, é calorosa e ainda por cima… eu sei lá.”
Michael: “Se você gosta tanto dela, não desiste.”
Jim: “Ela tá noiva.”
Michael: “E dai? Noiva não é casada. Nunca, nunca, nunca desista.”
– T02E11: Booze Cruise

Assim, a partir da segunda temporada, Michael mostraria suas outras facetas, deixando de ser um chefe cruel e meramente preconceituoso para alguém que age sem ter a intenção de ser errado. Aos poucos ele se mostra um bom vendedor, um homem mais bem-humorado, em sintonia com outros personagens (Erin e Holly) e principalmente um líder que em parte é admirado pelo seu escritório.

“… uma das partes de ‘americanizar’ era que para alcançar o status de um programa americano, você precisava gostar dos personagens principais e a versão britânica tinha um pouco de… Você se importava com a história de amor mas […] o personagem de David Brent era um estudo de personagem do cara que constantemente faz escolhas ruins e, sabe, parte do que mudou para a temporada dois era como manter as partes cômicas do personagem, mas também torna-lo alguém que você se importa e você torce. E quando eu entendi que o desafio era esse, eu fiz uma lista de coisas, de momentos que eu queria que Michael Scott tivesse na série […] Eu queria que ele desse bons conselhos a alguém, e isso virou o final do episódio ‘Booze Cruise’, quando ele fala para o Jim nunca desistir e, eu queria que as pessoas o apoiassem ele como a ideia de ‘nós podemos perturbar o nosso irmão, mas se qualquer outra pessoa tentar nós vamos [nos juntar contra ela]’, e essa foi a essência do final do episódio ‘The Dundies’, o primeiro episódio da segunda temporada […] Ah, e tem um episódio chamado ‘The Client’, quando Jan acha que ele não sabe o que está fazendo quanto a uma grande venda e ai ele fecha a grande venda e se mostra como bom vendedor…” – Greg Daniels

Fonte: Televison Acadamy

Tendo tudo isso em vista, ficam os questionamentos: Qual das séries é a melhor afinal? Qual delas é a mais desconfortável? Qual delas é a mais engraçada? E a única resposta possível é: depende. Assistindo ambas as séries é interessante notar que tanto o humor, o desconforto quanto a empatia são fatores diretamente ligados ao ponto de vista das pessoas que assistem. Existem situações em The Office (Reino Unido) que tem o mesmo nível de desconforto do que episódios inteiros da versão americana. Enquanto episódios marcantes da versão ianque são muito mais icônicos e engraçados do que qualquer um da versão britânica. Além disso, é importante ressaltar que independente do gosto, existem várias maneiras de você conquistar a empatia do publico, mesmo que isso custe um pouco (ou muito) do nosso conforto.

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Yuri Cardoso
Yuri Cardoso
Roteirista, escritor e fotógrafo, todos ainda em prática. Sempre ouvindo podcasts e filosofando o porquê das coisas comigo mesmo. Amo cinema, relações Internacionais e história. Meio prolixo, só me concentro no trabalho ouvindo trilhas sonoras e bebendo um copo de mate.

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