Pelo Bem Geral da Nação, Diga ao Povo que Não Poste

Ilustrador convidado: Junno Sena

Conforme entramos no 4º mês de quarentena, fica impossível não perceber que o tempo está cada vez mais vagaroso. Os subterfúgios para lidar com o tédio já são escassos. A oficina do diabo se instalou e deu lugar às modas como Tik Tok e o filtro no Instagram chamado “Gincana do Gugu”, onde você tem 15 segundos para achar algum objeto sorteado (numa homenagem às brincadeiras do saudoso intérprete de Meu Pintinho Amarelinho).

Vale tudo para evitar que esse confinamento prolongado leve as pessoas a se jogarem no abismo do vazio existencial, visto que não é todo mundo que tem piscina em casa. Pelo menos, com o caos dessa prisão domiciliar em que vivemos, a solidariedade também virou tendência. Pessoas estão se ajudando a sobreviver, pensando cada vez mais no próximo. Porém, infelizmente, não são todos que vão nessa direção do bem.

Tem gente que é tão egoísta e tão sem coração que se recusa a entrar no jogo da improdutividade coletiva por puro narcisismo. Esses perversos desalmados estão o tempo todo tentando nos deixar mal por passarmos horas vendo memes sobre a separação do Padrasto do Neymar e assistindo o Chão É Lava do Netflix. Estou falando dos monstros que postam fotos com seus livros gigantes, cheios de mensagens filosóficas e marcadores de página que indicam que a leitura já está quase no fim (e assim mostrando que o Ser Postante é tão melhor que você que leu tudo aquilo e só agora resolveu expor nas redes a sua superioridade literária).

Eles nem ao menos param para pensar que aquele story inútil de livro vai atrapalhar toda a programação de rolagem de feed dos outros. O Hugo Gloss posta foto às 11 da manhã e o Chapolin Sincero posta às 18h. Aí a pessoa vem do nada e me põe uma foto lendo Dom Casmurro em plena quarta-feira, como se o mundo estivesse normalíssimo e todos aguentassem viver o isolamento lendo algo maior que um post sobre a Gretchen.

A conta não fecha. Não há mais serotonina no mundo para alguém “botar a leitura em dia” —como falávamos nos velhos tempos. Não existe mais “dia”. Agora tudo é um emaranhado de horas onde escolhemos entre Ifood, feeds alheios e plataformas de streaming. E o que mais me choca é que eles querem tanto escancarar a nossa inutilidade, que esses vis leitores nunca postam um livro normal.

É sempre algo entre O Apanhador No Campo de Centeio e os Irmãos Karamazov. Quanto mais do Leste Europeu melhor. Eles querem que todos saibam que não estão perdendo tempo com qualquer jogo derivado do Programa do Gugu, desmerecendo suas décadas de contribuição com a cultura nacional ao colocar gente malhada e seminua para pegar sabonetes em uma banheira.

Tem uns desse bando que até botam na foto só a ponta do livro para a gente não entender qual é e assim eles parecerem ainda mais intelectuais. Ou então que postam o livro no colo com um pouco da perna malhada aparecendo, para nos humilhar sugerindo que eles além de tudo ainda têm disposição para malhar enquanto o resto da humanidade se parece a cada dia mais com um saco de batatas.

O tédio desperta o pior na gente. Tem gente que grava Tik Tok. Tem gente que lê. E tem gente que escreve. Eu sou do tipo que escreve. E, se você chegou até aqui, é porque é do tipo que lê. E, como já leu isso tudo, talvez esteja pensando: hum, será que eu faço um story mostrando que li essa crônica? Mas, pelo bem geral da nação, peço que não postem essa crônica nas redes! Clemência aos pobres internautas! Fora Bukowski! E um viva aos memes da Vice Miss Bumbum!

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Ilustrador convidado:

Junno Sena

Negro e LGBT+, sou ilustrador, escritor, procurando contar histórias que ecoem com corpos como eu. Com 24 anos, formado em jornalismo e mestrando em antropologia, estou sempre em busca de perguntas, porque todos já estão procurando respostas. Moro em Petrópolis, RJ.

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Gustavo Palmeira
Gustavo Palmeira
Estudou em colégio de padres, era 90% sexy no Orkut, mas hoje infelizmente, alem de roteirista, se apega fácil a qualquer um que der moral no Tinder.

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