I May Destroy You: quando nosso sofrimento se torna palco

Encontrei outra série preferida da vida. Fiquei impactada com a construção de I May Destroy You (2020). A forma como a narrativa da original da HBO caminha é brilhante. A criadora e atriz principal Michaela Coel pinta um quadro muito realista dos conflitos contemporâneos, principalmente a forma como os temos debatidos nas redes sociais. Em meio a diversos burburinhos do Big Brother Brasil, temas como: cancelamento, relacionamentos tóxicos e o uso de traumas e dores como forma de palco estão na série. Não só isso, como muito mais.

Como a estreia aconteceu em julho do ano passado e como sei que a maioria das minhas leitoras ainda não assistiu, não haverá spoilers aqui. Trarei apenas algumas reflexões e incômodos. Para quem ainda não conseguiu ver, deixo o convite. Porém, aviso: será impossível você não pensar nas suas próprias feridas. Há uma série de gatilhos. Principalmente se você é mulher ou homem gay. Mesmo assim, vale a pena. Prometo!

I May Destroy You (2020), como Fleabeg (2016-2019), é uma série londrina, produzida, roteirizada, encenada por sua criadora. No caso de Michaela, ela também assina a direção junto com Sam Miller. Sou super fã desse formato centralizado no autor. Meu sonho é chegar lá (me contrata, HBO!). As séries construídas assim costumam ter muita personalidade. Não tem como a expressão do criador não se sobressair. Outra que tem a mesma fórmula é a estadunidense Girls (2012-2017) da HBO. Apesar de algumas controvérsias, também a acho fantástica.

Mas vamos a trama! I May Destroy You (2020) gira em torno da personagem Arabella (Michaela Coel), uma escritora de carreira promissora que surgiu no twitter e seu grupo de amigos, em especial a best friend forever Terry (Weruche Opia) e o doce Kwame (Paapa Essiedu). Para quem entende de astrologia, eu diria que Arabella é nitidamente uma pisciana. Terry com certeza leonina. E Kwane, muito provavelmente, um canceriano. Como boa pisciana, Arabella é criativa, sensível, amorosa e precisa urgentemente ficar longe das drogas. O que não acontece. Logo no primeiro episódio, numa noite pesada – conto porque está no trailer – acontece uma das piores violências que uma mulher pode sofrer: um estupro.

É esse abuso que conduz a narrativa do início ao fim. Nesse processo, Arabella precisa se reinventar enquanto mulher, enquanto escritora e em seus relacionamentos. E o principal: precisa aprender a lidar com esse e outros traumas que se apresentam no caminho. O machismo é o conflito central da obra. Porém, também é tratado a própria lógica capitalista onde a colonização, incluindo a da mente, é um caminho.

Dentro dessas lógicas, usar nossas dores para engajar tem sido a estratégia adotada por muitos influenciadores. As redes sociais têm favorecido a prática. Enquanto isso pode ajudar na cura coletiva e no debate de questões que antes não estavam na mesa, acaba transformando nossa vida num grande muro de lamentações. Dentro de uma perspectiva, acredito que precisamos questionar até onde ficar no lugar de vítima pode nos dar alguma sensação de poder. Ou até nos mover a um certo revanchismo onde acabamos, sem perceber, ocupando o lugar de quem nos feriu (reproduzindo o lugar do opressor).

São questões sutis, não há respostas. O segredo é apenas pensar a respeito. Levanto esses pontos justamente porque a série joga no nosso colo esses confrontos. Nos últimos anos, com o uso mais frequente das redes sociais, sinto que utilizar nossas dores como forma de palco tem se intensificado. Os “algozesritmos” (gosto de chamar algoritmos assim) tem engajado basicamente tretas e ódios. Não por acaso, nos tornamos combativos, reativos. E, principalmente, iludidos. Achando que sozinhos temos a capacidade de mudar de mudar o mundo. Não temos reconhecido nossa impotência e fragilidade. No fim, somos humanos. Frágeis humanos.

Nesse processo, temos afundado e nos tronado patologicamente ansiosos, vulneráveis e carentes. Extremamente carentes. E a moeda de troca para aliviar nossas dores egóicas tem sido os likes, as menções, os compartilhamentos. Os engenheiros das redes sociais não são burros, eles sabem como nos escravizar. Como nos manter ultra conectados para lucrar.

Por isso mesmo, I May Destroy You (2020) é um tapa muito bem dado no meio da nossa fuça. Eu mesma já fui uma grande iludida. Com as primaveras organizadas pelas redes sociais no início da década passada – as jornadas de julho de 2013 no Brasil, por exemplo – jurava que o mundo iria se transformar. Que a sociedade unida conseguiria derrotar o descaso, o poder. Ao contrário disso, temos experimentado grandes movimentos de retrocesso em diversas partes do globo. Hoje tenho consciência que o poder segue controlando as narrativas. Afinal, quem cria os algozesritmos? Calar discursos divergentes, talvez, nunca tenha sido tão fácil.

Pensando na perspectiva da opressão, I May Destroy You (2020) trabalha de forma magnífica a interseccionalidade. Explico o que isso significa caso você ainda não saiba. A interseccionalidade diz o seguinte: as formas de opressão não atuam de maneira isolada, elas trabalham em conjunto. Por exemplo, uma mulher negra sofre opressão por ser negra e por ser mulher. E pode ainda viver a opressão por sua condição financeira, por sua orientação sexual, entre outros modos.

Na série, dentro do recorte que assistimos, Arabella se ferra muito mais por ser mulher. Experimenta ainda problemas financeiros e profissionais relacionados as lógicas de trabalho contemporâneas e algumas questões se inserem dentro do debate racial. O que achei foda na narrativa, onde a maior parte do elenco é negro, é que o racismo não é o conflito central. Penso que, urgentemente, precisamos sair do lugar onde negros só devem falar das dores de ser negro, transexuais das dores de ser trans e assim sucessivamente. Não é que devamos ignorar esse lugar. Até porque seria impossível. Mas é que tem outras coisas que atrapalham nosso sono. Se somos diversos enquanto humanos, guardamos em nós muitas semelhanças. Mais até do que podemos imaginar.

Todos queremos amar. Queremos ser amados. Na verdade, precisamos amar e ser amados. Somos animais sentimentais como canta Renato Russo. Como escritora e dramaturga o tema dos relacionamentos tem sido central para mim. Para minha vida inclusive. I May Destroy You (2020) aprofunda bem nessa temática. Mostra a nossa superficialidade. O quanto nos tornamos abusivos e tóxicos. Como nós, a chamada geração millennial, tem usado as redes para satisfazer nossos desejos imediatos, usando e objetificando o outro. Se hoje compreendemos a impossibilidade do amor romântico, nosso grande desafio é se encontrar com o amor real, com o amor saudável. Percebo que temos feito isso muito mais através de nossas relações de amizade. Nos relacionamentos afetivos ainda precisamos comer muito arroz com feijão. Todo mundo anda meio bugado.

Arabella e Biagio na praia juntos

Falando sobre questões técnicas, pirei no roteiro. A forma como a série termina é incrível. Bastante realista. Como Arabella é escritora, é um processo de escrita. Outro tabefe na nossa cara que estamos acostumados com pirofagias, dramas shakespearianos onde há uma satisfação do nosso desejo humano de vingança ou finais felizes. Prometi que não haveria spoilers. Espero não ter quebrado a promessa com essa pequenina informação. Acho que não. A vida de Arabella apenas continua, assim como a minha, como a sua.

Como sou bem amante do real, adoro diálogo poderosos, conteúdos narrativos. Então, me satisfiz bastante. Gozei de verdade com a série. Inclusive, com o fato de que não haverá segunda temporada. Ela foi pensada como um livro com começo, meio e fim. Continuar, se esgaçar, seria apenas uma estratégia capitalista para lucrar. A arte não precisa disso. Ao menos, não deveria precisar. Também fiquei apaixonada pela sensibilidade das interpretações. A direção de arte, os figurinos, a fotografia. Sério, para quem ainda viu, assista. Depois me contem. Para quem já mergulhou nela, espero comentários. Tô bem ansiosa para compartilhar impressões.

Arabella, Terry, Kwame e Theodora e um amigo sentados no sofá assinto televisão

O mais marcante em todo o percurso, para mim, foi se deparar com a nossa vulnerabilidade enquanto mulher. Por mais que a sociedade tenha avançado, por mais que hoje tenhamos certa liberdade e independência ainda somos presas fácies. E pior: estamos ainda sendo caçadas. Não temos direito de ficar bêbadas, perder um pouco do controle, da sanidade. Mesmo sem isso, podemos ser dopadas, violentadas. A todo tempo estupradas. Assistir a isso é doloroso.

Pensei em várias situações da minha vida. Identifiquei alguns abusos. Um caso de estupro bem similar ao que ocorre com Arabella num segundo momento. Inclusive, I May Destroy You (2020) foi criada porque Michaela, a criadora, foi realmente estuprada num contexto semelhante ao do primeiro episódio. Isso aconteceu enquanto ela estava gravando sua primeira série Chewing Gum (2015-2017) da Netflix. Assistindo a série lembrei também de um experimento social que foi filmado em Madrid, na Espanha, no ano de 2015. Nele, uma atriz fingia estar bêbada, perdida e sem bateria no celular. Enquanto ela pedia ajuda, o que se desejava era observar a reação dos homens a sua volta. Se haveria algum tipo de solidariedade. O que você imagina que aconteceu? Assista abaixo:

Eu posso te destruir, a tradução do seu título em inglês, é em bem expressiva sobre o conteúdo da obra. O que pode nos destruir? Como nós podemos nos destruir? Como o outro pode nos destruir? Por que homens precisam tanto nos destruir? De que doença social eles padecem? Qual necessidade eles têm de acessar uma forma de poder através de uma violência tão bruta como o estupro? Como Arabella, podemos e devemos a todo tempo nos questionar. Mas não nos resta outra opção a lidar com essa terrível realidade, trabalhar nossos traumas e seguir.

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Daniella Burle
Daniella Burle
Apaixonada por contar histórias, estórias e ler o mundo, se divide entre o campo artístico e o universo acadêmico. Foi ganhadora do prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia em 2019 com o texto da peça Eu sou o Homem. É formada em roteiro pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro (2020). E também graduada em Arquitetura e Urbanismo (2011) pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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