Em 2019, a diretora Sophie Deraspe lançou o filme “Antigone”, uma releitura da clássica tragédia grega nos tempos de hoje. A protagonista, Antígona, é uma adolescente que está finalizando o ensino médio e, de repente, se vê tendo que enfrentar a difícil escolha de proteger seu irmão da polícia ou priorizar a sua própria liberdade e nunca mais vê-lo.
O filme se passa no Canadá e é falado em francês, mas conta a história de uma família de imigrantes gregos, trazendo diversas referências culturais e religiosas da Grécia que no texto original, são parte fundamental da trama. No caso do longa, não é a antiguidade grega e seus costumes que estão em cheque, mas sim a contemporaneidade globalizada em um país de primeiro mundo. No entanto, existe um trabalho especial em retratar a cultura grega como parte do contexto familiar das personagens, promovendo uma intertextualidade interessante entre as duas obras, visto que para cada uma delas a sociedade grega tem pesos completamente diferentes dentro da narrativa.
Em uma sacada muito perspicaz, o roteiro traz o famoso texto grego como uma alegoria para retratar a brutalidade policial e, também, a questão da imigração em países de primeiro mundo. Se utilizando de um clássico, o longa-metragem mostra como as relações de poder vigentes na nossa sociedade podem ser bem mais antigas e imutáveis do que gostaríamos de acreditar. Na trama original, Antígona desafia o poder do Estado ao realizar o enterro de seu irmão Polynice, ainda que o príncipe Creontes tenha o decretado proibido. No filme, depois de ter o irmão mais velho (Eteócle) assassinado pelas mãos do Estado, a heroína promove a fuga de Polynice de dentro da prisão, para que ele não seja deportado de volta para seu vilarejo de origem.
Os símbolos utilizados para ressignificar o antigo texto de Sófocles também são bastante inteligentes. O coro/corifeu do filme é a própria internet. Em montagens dinâmicas com fotos e comentários aparecendo na tela, temos a sensação de entender a opinião pública da cidade sobre os conflitos. Dessa forma, questões exclusivas à nossa sociedade de hoje acabam surgindo. Quando Eteócle é assassinado pela polícia, é possível observar tanto comentários em apoio quanto avalanches de ódio, trazendo uma narrativa própria para o ocorrido. Desde a associação de Eteócle à criminalidade até os comentários xenofóbicos, a presença de uma “milícia online” para alimentar as redes sobre a situação e distorcer os fatos é recorrente no longa.
Além disso, quando Antígona é presa após a polícia identificar a fuga de seu irmão, inicia-se um movimento na internet em defesa da protagonista. Mais uma vez trazendo para uma trama clássica, escrita em 400 a.C, um elemento narrativo que só é possível nos tempos de hoje. O movimento “Free Antigone” surge através de conhecidos da protagonista e é amplificado por meio das redes, viralizando o caso pelo país e pelo mundo —possivelmente em uma analogia ao #BlackLivesMatter, que ganhou extrema força nas ruas no ano passado, mas já fazia barulho na internet desde 2013.
Ainda sobre os símbolos, é interessante pensar nas escolhas de adaptação que foram feitas na história para o roteiro do filme. Os gregos atribuíam as tragédias aos deuses, no sentido de que todo final trágico advinha de uma ideia de punição divina. Na história de Édipo e Antígona, todos os conflitos familiares são parte de um castigo dos deuses, de uma maldição. No texto, o conflito principal está no desencontro entre as leis divinas e as leis do homem. Isso se dá da mesma forma na adaptação. Porém, quando o roteirista decide botar a morte de Eteócle nas mãos do Estado e não do irmão (como se dá originalmente), ele faz uma escolha política, promovendo uma crítica dentro de um contexto social específico atual, desassociando-se de uma justificativa divina.
É claro que a tragédia original também tem forte teor político, a partir do momento que traz uma personagem tão resistente como Antígona desafiando as leis do Estado devido a sua fé. Toda a sua história de vida se dá por uma maldição, mas que também muito tem a ver com conflitos de poder. Seu pai casou-se com a própria mãe e tornou-se rei. Seu tio, Creontes, assume o poder de forma tirânica depois que a maldição vem à tona. Todos esses são conflitos políticos, a diferença é que o filme não traz o viés do sagrado. Em “Antigone”, são as estruturas de poder as únicas responsáveis pela desgraça da família de Antígona, desde irmãos envolvidos com crime devido a sua condição social (imigrantes sem cidadania) à brutalidade policial, passando por um sistema judiciário absolutamente ultrapassado.
A própria simbologia por trás da substituição da morte e proibição do enterro de Polynice, pela sua deportação é bastante política. Ainda que ambos digam respeito a um “não-lugar”, ou seja, a proibição do pertencimento, o segundo é um direito civil enquanto o primeiro está relacionado a um “direito” kármico, espiritual. E as motivações se encontram também na afetividade que Antígona tem por sua família.
Tratando-se de escolhas narrativas, também é muito interessante a maneira como a personagem é abordada. Na tragédia de Sófocles, Antígona leva o nome da peça, mas quem tem uma evolução de arco dramático é o príncipe Creontes. É ela quem causa o incidente incitante mas é ele quem sofre a consequência das próprias escolhas. É ele o protagonista da história. No filme, dirigido por uma mulher, isso é completamente invertido, tornando Creontes apenas mais uma peça narrativa na trama de Antígona.
No filme, Antígona se disfarça de homem para tomar o lugar de Polynice na prisão e facilitar sua fuga. Corta seus cabelos, copia as tatuagens do irmão, troca a cor dos olhos com uma lente como numa preparação de um soldado para sua guerra. A personagem é um grande símbolo de força e resistência. A heroína não dá o braço a torcer e se mantém fiel ao que acredita até o fim, em todos os momentos. Seja no texto original ou no longa. Porém, no segundo, pelo caráter mais racional e menos místico de seu entendimento de justiça, essa imponência se dá de maneira ainda mais legítima — pelo menos para nós, do século XXI.
Embora se trate de uma história muito antiga, Antígona traz signos em sua narrativa que se aplicam até hoje aos conflitos político-sociais. A adaptação de Sophie Deraspe traz à tona todas essas questões, trazendo uma proposta contemporânea para o texto clássico. E, é importante frisar, a atriz, Nahéma Ricci, faz um trabalho impecável ao interpretar uma personagem tão importante para a história da literatura.
CREONTE
Não é justo dar ao homem de bem, tratamento igual ao do criminoso.
ANTÍGONA
Quem nos garante que esse preceito seja consagrado na mansão dos mortos?
CREONTE
Ah! Nunca! Nunca um inimigo me será querido, mesmo após a morte.
ANTÍGONA
Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!
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