CRÔNICAS DA QUARENTENA

Uma reunião de relatos sobre o isolamento de um processo intrinsecamente coletivo.

Maitê Coropos

Meu nome é Maitê Coropos. Eu sou uma atriz com medo de câmera – e mais um monte de outros paradoxos, diga-se de passagem. É um alívio escrever sobre isso. A quarentena me colocou de frente para o espelho, encarando os meus desejos secretos de flertar com o cinema.

Nos primeiros dias de isolamento, em março, eu lembro de sentir uma agonia profunda, um desespero quase silencioso que me rondava por todos os lados. Acho que além do medo generalizado que a pandemia espirrou em todo o mundo, tinha uma culpa muito grande em não poder fazer nada. Nem teatro. Muito menos teatro. Nessa época, eu fiz umas fotos no meu quarto totalmente escuro, com o flash do meu celular. Foi a primeira vez que eu fui pelo caminho da câmera para me expressar artisticamente. Eu gostei do resultado, mas não mostrei pra ninguém. As fotos tinham cheiro de grito, e elas faziam muito sentido pra mim, mas eu não sabia explicá-las. Acho que é assim mesmo…

Honestamente, fazer estes dois curtas foi um reencontro com uma versão minha que fazia teatro antes de ser atriz; uma Maitê que tinha medo da exposição do palco, mas que se arriscava a brincar em cima dele; uma Maitê amadora, no melhor sentido possível! Na quarentena eu me permiti brincar de estar na frente da câmera… sem me criticar além do necessário, sem provocar uma inércia criativa em mim mesma.

Um dos muitos autorretratos de Francesa Woodman

Para fazer as fotos eu pensei muito no trabalho da Francesca Woodman, uma fotógrafa americana que fazia fotos dela mesma e que se tornou uma grande referência para mim há anos. Algumas semanas depois dessa sessão de fotos espontânea, eu me deparei com uma pintura linda da Frida Kahlo.

A Frida também é uma referência que eu carrego há anos, e também é conhecida pelos autorretratos que ela pintou em um momento de isolamento, em seu quarto, de frente para o espelho. O quadro se chama “As duas Fridas”: e, sim, são duas imagens da Frida, como duas versões totalmente diferentes dela mesma. Conflito, dualidade, paradoxos explícitos… Mas no centro do quadro, as duas Fridas estão dando as mãos, suavemente – como quem se perdoa e aprende a se suportar.

Frida Kahlo pelas lentes de seu pai, Guillermo Kahlo
Fotografia House#3 de Francesca Woodman
As Duas Fridas de Frida Kahlo

Já entrando em julho, eu estava em um “per-curso” online com minha professora Marcela Andrade. Em um dos encontros, ela mencionou que a abelha é o inseto do perdão – quando a gente recebe a visita de uma abelha, é porque precisa liberar perdão. Eu não sei exatamente qual é a procedência desta informação, e não me considero uma pessoa supersticiosa, mas eu juro que recebi a visita de umas 5 abelhas naquela semana de julho. A não ser que você crie abelhas, acho que é um número impressionante. Alguma coisa elas queriam me dizer.

Alguns frames de “Perdão”

Então eu voltei nas fotos de março, que já estavam quase no fundo da galeria do celular, empoeiradas, e fui arrastando o dedo na tela, passeando pelas cenas de terror que eu registrei no início da pandemia. E foi como se eu visse um filme sobre uma pessoa que está sendo rondada por uma abelha chata. A abelha não vai embora, e repete “você precisa se perdoar” como um zumbido infinito, um mantra que a pessoa não quer ouvir. A agonia aumenta, o zumbido se aproxima, um coração, a pessoa encara a própria imagem duplicada, dois corações, tão iguais e tão diferentes, mil corações… e o clímax é um grito em silêncio, um grito de perdão para si.

Umas das fotos tiradas por Maitê que compõe o “Perdão”

Com toda esta inspiração, eu corri para pôr as fotos em sequência e fazer um vídeo. E foi assim que nasceu o primeiro curta: “Perdão”. São 27 segundos, uma trajetória cheia de ângulos pontudos, e movimentos rápidos, sinestesia, batidas, e outras batidas… Perdão, enfim.

“Perdão” foi a faísca para o segundo curta, “Veias”. Ele também surgiu de uma provocação da Marcela, a mesma professora que me apresentou a poesia da abelha. Em um dos encontros via Zoom com ela, nós desenhamos por cima das veias do nosso corpo com canetinha. Pelo menos as veias que conseguimos ver através da pele. Foi uma experiência maluca e muito interessante: o desenho de canetinha na minha pele me lembrou que existe todo um sistema circulatório acontecendo dentro de mim que eu nem vejo, e me deu um senso de conexão com a circulação da natureza toda. Lembrei da minha infância, quando eu era mais atenta aos detalhes, mais curiosa pelos porquês, quando tudo era novidade e eu reparava nas veias das plantas e entendia a oxigenação da vida sem termos científicos.

Quando eu acessei este estado de curiosidade, eu voltei à pintura da Frida, porque tem o detalhe das veias e artérias que eu talvez tenha despercebido na primeira vez, ou talvez não tenha dado a atenção necessária. E, inspirada pelo contraste evidente entre as duas Fridas do quadro, encarei o desafio de experimentar o outro lado da abelha. Não a abelha que está voando enlouquecida implorando por perdão, mas a abelha que produz o mel. O mel. Como pude me esquecer do mel?

Pensei, então, na qualidade de movimento do mel, em contraste com a qualidade de movimento que eu havia explorado no primeiro curta. A doçura, a cor, a elasticidade, a calma do mel. Então eu decidi criar um segundo curta, uma resposta ao primeiro. Desta vez, eu tinha uma ideia melhor do que eu estava fazendo. Pensei cuidadosamente nas imagens, nas cores, no tempo e nos sons do meu desejo. Eu queria falar sobre os ciclos da natureza, sobre as folhas que caem, e que crescem de novo depois; sobre as veias das plantas, as veias das Fridas, e as minhas veias; e sobre a necessidade de sempre apurar o olhar para os detalhes da natureza: tanto para a abelha que faz mel, quanto para a luz do sol que faz vida. Foi aí que entrou a música do Caetano, “Luz do Sol”.

“Veias” também foi feito no meu quarto escuro, apenas com o meu celular, uma lanterna e um pedaço de papel celofane verde. Tem uma boa pitada de verde, 1 minuto e 58 segundos, e uma gota de mel para adoçar.

Uma das coisas que eu aprendi na minha trajetória como artista é a decidir a dose de intimidade que eu quero compartilhar através da minha criação. Quanto de mim eu preciso dividir para que a arte comunique o que ela precisa comunicar? Acho que o medo da câmera vem daí, porque é muito difícil dominar o quanto a câmera vai expor.

Maitê e a câmera

Honestamente, fazer estes dois curtas foi um reencontro com uma versão minha que fazia teatro antes de ser atriz; uma Maitê que tinha medo da exposição do palco, mas que se arriscava a brincar em cima dele; uma Maitê amadora, no melhor sentido possível! Na quarentena eu me permiti brincar de estar na frente da câmera… sem me criticar além do necessário, sem provocar uma inércia criativa em mim mesma. Acho que, neste sentido, o amadorismo é uma bênção. Quando a gente é amadora, a gente faz mais, porque a gente faz sem julgamento. Eu descobri que o amadorismo pode ser uma generosidade da profissão. Pode ser um começo, ou um recomeço. E como uma atriz de palco com um pouco menos de medo de câmera agora, eu digo: que alívio!

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