CRÔNICAS DA QUARENTENA

Uma reunião de relatos sobre o isolamento de um processo intrinsecamente coletivo.

JEAN MARCEL GATTI, RAFAEL DEL GADO e THAYLA LUZ

O momento é de total reclusão por conta da quarentena ocasionada pela pandemia do coronavírus (COVID-19). Como uma forma de manterem-se distraídos e, ao mesmo tempo, produtivos, três artistas, inquietos e mal acostumados com o confinamento compulsório, unem forças para elaborar projetos autorais.

Durante um processo de criação inteiramente independente e remoto, surgem três curtas-metragens, todos gravados no mesmo apartamento. Abaixo, os atores Jean Marcel Gatti, Rafael Delgado e Thayla Luz (nessa ordem) nos dão um breve relato desmistificando seus respectivos processos:

EL BAÑO

“Qual o lugar de maior intimidade do ser humano? O curta-metragem EL BAÑO, dirigido por mim, coloca o banheiro nesse lugar de intimidade.

O curta se passa dentro de um banheiro, onde o personagem se encontra preso. Uma mistura de angústia, desespero e solidão, podendo ser descrito como uma obra Kafkaniana. Dentro desse banheiro, o personagem vive sua intimidade à flor da pele, onde seus sentimentos e pensamentos se misturam. Levando o espectador ao questionamento: será que ele está preso dentro de um banheiro mesmo?

O processo de criação começou a partir de uma das cenas do curta, que gravei inicialmente para enviar a uma amiga mexicana. A partir daí, veio a inspiração de gravar tudo dentro do banheiro! Uma das cenas mais interessantes é a do momento em que me levanto para lavar o rosto: tive que prender a câmera na maçaneta da porta e empurrá-la com meu pé esquerdo pra fazer a movimentação que eu queria. Além disso, criei a trilha sonora durante a edição do filme. Editava as cenas e via o filme inteiro para só então entender qual era o melhor momento de entrar a música, que foi gravada apenas com meu violão.

Filmado somente com um celular, eu roteirizo, filmo, edito e também crio a trilha sonora do próprio filme, que foi selecionado para participar do festival ‘El Grito De Los Sin Voz’ na Espanha. O festival é impulsionado pelo ator e diretor espanhol Carlos Bardem, no qual os dez curtas com maior número de visualizações se transformarão em um longa-metragem com estreia prevista para março de 2021 no ‘Acto Central de Madrid’.

EL BAÑO teve sua estreia em Setembro e está disponível no canal ‘Hope-First Festival’, no Youtube.”

ALGORITMO

“Depois de alguns meses com a profissão artística parada e o mercado restrito à pouquíssimas produções, coloquei a mão na massa e decidi escrever um curta que pudesse ser produzido em casa, durante o isolamento social.

Algoritmo nasceu em um período complicado. Mas, querendo ou não, o assunto que o roteiro trata também é preocupante. Com o crescimento das fake news num âmbito político e ideológico, optei usar o tema da deepfake como o plano de fundo do roteiro.

O avanço da tecnologia e uso maçante da internet pela população vêm criando um mundo cibernético cada vez mais ‘conectado’. Isso significa que o poder de transmissão de uma mensagem e/ou mídia tem o fator multiplicador e, em uma sociedade onde julgamos as pessoas mais do que escutamos suas opiniões, o assunto se torna de extrema importância.

O curta-metragem foi totalmente feito dentro de um apartamento com auxílio de amigos que dividiam o lugar comigo. O ator Jean Marcel Gatti (EL BAÑO) e a atriz Thayla Luz (INT.) fizeram a parte de direção de fotografia e de arte. O processo de todo o curta foi rápido e efetivo. Tínhamos uma ideia, decupamos rapidamente as cenas que seriam gravadas, distribuímos pelos números certos de dias e colocamos a mão na massa. Além disso, a direção foi completamente remota. O diretor Luís Carlos Lobo, diretor convidado, dirigiu o curta dentro de sua casa. Os planos foram acertados antes da gravação, mas nada disso fez com que a gente não se sentisse livre para improvisar na direção de algumas cenas, por exemplo, a cena da cozinha, onde o Jean subiu em cima da máquina de lavar enquanto a Thayla apoiava os pés do tripé em uma de suas mãos que estavam suspensa no ar. Já a parte da edição, novamente se deu por parte do Luís. Tanto eu quanto ele conversamos durante dias para escolher a melhor montagem do curta, a melhor trilha sonora e os melhores cortes. O resultado está no curta finalizado! Isso nos leva a constatação de que cada vez mais as produções independentes se mostram como alternativa para se reinventar e, ao mesmo tempo, entrar no mercado de trabalho dominado pelos grandes veículos comerciais.

Algoritmo teve sua estreia em Setembro e se encontra disponível no canal ‘Agência LMA Produções’, no YouTube.”

INT.

“O terceiro e último projeto, idealizado e escrito logo no início da quarentena, veio a se concretizar alguns meses depois, em apenas 48 hrs de gravação (sem contar a pré e pós produção).

Pensamos em uma proposta, distribuímos funções, recolhemos referências, reunimos os materiais necessários e, enquanto vivia aquele mundo paralelo não tão distante, era filmada e dirigida via FaceTime (a sensação era como se vozes da minha cabeça me dissessem o que eu deveria ou não fazer). Com o material bruto pronto, pudemos construir a trilha sonora e só então partir para o processo de montagem das cenas, de modo que houvesse uma sinergia e conversa entre elas.

Ficou assim: eu na frente das câmeras, Rafael atrás, Kaio Caiazzo (um grande amigo meu, por quem tenho profunda admiração) numa tela de celular apoiada pelos quatro cantos, guiando todos os movimentos, e Jean encarregado da trilha que seria feita com as inúmeras funções do nosso teclado compartilhado. As referências iam de Phoenix à Carne Doce; Sofia Coppola à Cassavetes. O tempo recorde foi por conta de uma mudança que faríamos na semana seguinte!

O curta retrata a triste realidade da juventude atual em que o tato e o convívio estão cada vez mais extintos, o que abre espaço para diversas outras possibilidades de contatos e relações sociais não convencionais (até então). Fica evidente, dessa forma, a consequente solidão que toma conta da vida da maioria da população hoje em dia (opondo os princípios e ideais do ‘viver em sociedade’) e a necessidade de transformá-la em solitude.

Paradoxalmente, nosso intuito era externar toda essa melancolia de forma leve e nostálgica, convocando os espectadores à acompanharem todo um processo de preparação para uma festa ou evento, algo que era tão rotineiro e prazeroso e, durante a pandemia, acabou se tornando ato raro, que deixou saudades.

INT. é um convite ao interior. Literal e metaforicamente falando. É real. É atual, e pode ser o único futuro possível também.

Teve sua estreia em novembro, no dia 14, pela plataforma do YouTube da produtora Alta Voltagem Filmes.”