Há certa dificuldade em se escrever sobre animes derivados de mangás e vice-versa, uma vez que, apesar de serem adaptações, as particularidades do sistema de produção dos estúdios de animação japoneses e de editoras de mangá podem resultar em diversos graus de distanciamento ou aproximação entre a adaptação e original. Os motivos são muitos: questões mercadológicas, escolhas artísticas, fatores externos etc.
Assim, existem casos, como os dos filmes de Ghost in the Shell, em que há tantas distinções estéticas e de tom entre obra original e animação que facilmente se pode abordar um sem se referir a outra. Porém há também casos como o de “One Piece”, que apesar de conter modificações em relação a história original, se mantém muito próximos aos mangás no que diz respeito a narrativa, temas e, em certa medida, estética. Dessa forma, a dificuldade que se coloca é que é muito complicado falar de um sem estar de alguma forma se referindo ao outro. Por isso, eu mencionarei o criador da obra original muito mais do que o recomendado. Pois o universo de “One Piece” parece “pertencer” mais ao seu mangaká do que os diferentes diretores que assumiram o controle da série ao longo dos anos.
Ao vermos um bando tão imperfeito, disfuncional e cômico derrotando tantos tiranos, corsários e autoridades, e outros inimigos ameaçadores, somos obrigados a ver o quão tolo é desejo destes pelo poder e pela riqueza, uma vez que são conquistas tão frágeis. Ou quando nos damos conta que os bufões podem ser mais justos, sábios e trágicos que reis, somos obrigados colocar em dúvidas certas certezas e verdades imutáveis.
Originalmente criado por Eiichiro Oda, “One Piece” começou a ser publicado em 1997, na Weekly Shonen Jump. A obra foi adaptada para animação pela Toei Animation e teve sua estreia em 1999. Como se pode deduzir pelo nome da revista na qual foi originalmente publicado, tanto o anime quanto o mangá se tratam de um shounen — uma categorização demográfica que tem implicações mercadológicas, estilísticas e narrativas. Porém, mesmo estando sujeito a certos lugares comum deste “gênero”, a história do “pirata que estica” é dotada de uma riqueza muito própria. É justamente sobres algumas destas particularidades que eu gostaria de me ater.
Em busca de One Piece
Antes de mais nada, do que se trata a história do mangá/anime. No princípio, tudo se apresenta de forma muito simples, Luffy quer ser o rei dos piratas e, para isso, ele deve encontrar o One Piece, o lendário tesouro, que foi escondido pelo antigo detentor do título, Gol D. Roger. Sem dúvida há certa megalomania neste objetivo, mas nada que se afaste das convenções dos shounen, onde frequentemente há uma busca por ser o “maior alguma coisa”. Outra característica compartilhada com outros exemplares do “gênero” é o apelo a valores, conceitos e sentimentos universais como a perseverança, a amizade e a justiça. É justamente sobre esta última que pretendo discutir.
Aqui está um ponto que torna a obra de Eiichiro Oda tão fascinante. Ao tomar como protagonistas um pirata e seu bando, o mangaká já nos coloca algumas questões. O fato dos heróis de Oda serem fora-da-lei é um dado digno de nota. Esta escolha não só coloca em cheque um ideal de uma justiça absoluta, como serve como ponto de partida para entender o quão complexos podem ser alguns aspectos do anime. Para entender melhor este ponto, tomemos como exemplos as sagas de Alabasta e Water 7.
Alabasta
Logo no começo de Alabasta, somos apresentados ao Baroque Works uma organização secreta formada por caçadores de recompensa, todos especializados em capturar (vivos ou mortos) criminosos procurados pela marinha. Porém no decorrer dos episódios, descobrimos que, na verdade, tudo não passa de uma fachada para atividades ilegais de seu misterioso líder, Mister 0. Mas este na verdade é Crocodile, um shichibukai (algo bem próximo dos corsários históricos) e herói para a população de Alabasta. Esta vida dupla, este jogo de máscaras não é uma exclusividade deste personagem, mas uma constante na obra e está ligada a uma outra ideia central de “One Piece”: a farsa.
Tomar alguém por outra pessoa, falhas de comunicação, erros de interpretação e mentiras têm consequências tanto cômicas quanto trágicas nesta saga e na obra como um todo. É um engano que causou a guerra civil que ameaça a unidade do reino de Alabasta. É como Miss Wednesday que a princesa Vivi consegue se infiltrar na Baroque Works. Até mesmo o poder de Mister 2 de se transformar em qualquer pessoa obedece a esta lógica de parecer algo que não é. Graças a essas confusões o “mau” pode ser passar por “bom”, e o “bom” ser confundido com o “mau”. Mas se em “One Piece” o erro e o engano são a causa de todo o mal, a verdade e o esclarecer se tornam poderosas armas. Isso fica claro em Water 7.
Water 7
Em Water 7, descobrimos mais do passado de Nico Robin — que entrou no bando dos Chapéu de Palha justamente na saga de Alabasta. Conhecida pela alcunha de “Demônio de Ohara”, ela é perseguida desde os oito anos pelo governo, não por algum crime que tenha cometido, mas por saber demais. No universo do anime, parte da História daquele mundo é desconhecido, e qualquer tentativa de decifrá-lo é considerada um crime pelo Governo Mundial. Como arqueóloga, Robin é uma ameaça em potencial.
Assim, em Water 7, o conhecimento é mostrado como uma arma de uma forma quase que literal — não tem como assistir a esta parte do anime sem fazer algumas conexões com as bombas atômicas. De qualquer forma, aqui também há procedimentos narrativos relacionados a troca de indenidade, enganos etc. Mas é a verdade que resolve (provisoriamente) os conflitos. Novamente há a atuação de um grupo secreto, mas agora relacionados ao governo. O CP9 é formado por agentes do governo que têm permissão para matar — sim, igual a certo espião britânico. Isto está relacionado a um outro ponto que gostaria de mencionar, a relação de “One Piece” com gêneros e arquétipos de personagens preexistentes.
Alguns procedimentos de One Piece
Como já havia mencionado, Alabasta e Water 7 apresentam algumas semelhanças com filmes, livros e mangás de espionagem. Em ambas as sagas, se pode observar a existência de traidores, agentes duplos, infiltrados, planos mirabolantes e, principalmente, de uma conspiração. No anime como um todo, estas conspirações estão relacionadas a uma tentativa de tomada de poder ou a uma forma manter uma coletividade sob uma autoridade despótica.
Em muitas situações, Luffy e seu bando agem, nem sempre por querer, como libertadores ou rebeldes. Isso é bastante familiar com a figura do pistoleiro errante do faroeste ou a do ronin em alguns filmes de samurai. Estes personagens, mesmo que marginais ou criminosos, acabam libertando uma população de facínoras. Aqui cito exemplos óbvios, como “O Estranho sem Nome” (1973) de Clint Eastwood , “Os Sete Samurais” (1974) ou “Yojimbo – O Guarda-Costas” (1961) de Akira Kurosawa — diretor muito influenciado pelos faroestes.
Obviamente, podemos também ver semelhanças entre “One Piece” e obras de aventura, de capa e espada, e até épicos. A cada ilha, os personagens do anime se deparam com criaturas e povos diferentes: homens-peixe, monstros marítimos, gigantes etc. Aqui podemos observar ecos de uma “Odisseia” ou um “As Viagens de Gulliver”. Até mesmo a existência de uma cidade acima das nuvens ou humanos de três metros podem estar relacionados a textos religiosos, as lendas e a eventos históricos.
Muito ainda poderia ser escrito sobre esse tema, mas me contentarei em mencionar que, por ser uma obra também de comédia, “One Piece” se relaciona muito bem com convenções desse gênero, se utilizando de gags físicas, do exagero, da repetição, dos já mencionados enganos etc. Porém estes mecanismos não são os únicos elementos que o anime compartilha com a longa linhagem do humor. Ao vermos um bando tão imperfeito, disfuncional e cômico derrotando tantos tiranos, corsários, autoridades e outros inimigos ameaçadores, somos obrigados a ver o quão tolo é o desejo destes pelo poder e pela riqueza, uma vez que são conquistas tão frágeis. Ou quando nos damos conta que os bufões podem ser mais justos, sábios e trágicos que reis, somos obrigados colocar em dúvidas certas certezas e verdades imutáveis.
A Jornada continua
Como se pode notar, Oda é muito feliz em fazer convergir em um universo consistente tantos elementos de fontes e imaginários díspares. Talvez este seja o segredo da longevidade e popularidade de “One Piece”, esconder sua complexidade sob uma aparente simplicidade. Contando com mais de 900 episódios, o anime está em andamento. No Brasil, o anime pode ser assistido na Netflix e na Crunchyroll.
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