Cruella Devil é uma das mais famosas vilãs do universo de animações da Disney e, também uma das mais antigas. Em sua primeira aparição, em 1961 na animação 101 Dálmatas, Cruella é uma madame riquíssima fascinada por roupas de pele que arma, com seus capangas, um esquema para sequestrar os filhotes de dálmata de Anita, sua amiga de infância. Cruella pretende transformar os filhotes em um casaco de pele, devido a padronização única dos pelos de dálmatas. A partir dessa premissa, cria-se então uma das mais sádicas vilãs da Disney, que não busca fama, poder ou riqueza, mas apenas saciar seus absurdos desejos materiais.
Na animação, Cruella já é marcada por um figurino com silhueta única e detalhes fortíssimos. Ela anda com um gigantesco casaco de pele, que inclusive carrega as patas do animal do qual a roupa foi feita. Além disso, a paleta de cores preta, branca e vermelha é característica que fica eternamente atribuída à personagem. Essa paleta de cores é, talvez, a principal característica na construção da identidade visual de Cruella (destacada principalmente por seu cabelo inconfundível), e é respeitada em todos os seus filmes.
Em 1996 e 2000, com as versões em live-action (“101 Dálmatas”, de Stephen Herek e “102 Dálmatas”, de Kevin Lima), Cruella ganha vida através da brilhante atuação de Glenn Close. Dessa vez, aprofundando sua obsessão por roupas de pele, a personagem que, antes era apenas uma madame rica e amargurada, é retratada como uma grande estilista, referência absoluta no mundo da moda e, é claro, um ser humano absolutamente detestável.
Dado que o filme não se trata mais de uma animação, a Cruella de Glenn Close possui uma extensa galeria de figurinos deslumbrantes que conversam muito mais com a caracterização da personagem do que necessariamente com o mundo da moda da alta costura, onde Cruella trabalha. O que acaba permitindo que os figurinistas, Anthony Powell e Rosemary Burrows, tenham tido muito mais liberdade para criar propostas a partir de uma ideia, e não de um momento histórico específico na moda.
Os figurinos da Cruella de Glenn Close demonstram uma enorme exuberância em formas, sobreposição de tecidos e peles e utilização de cores e estampas. Criando um guarda roupa um tanto único para uma vilã singular. Seu estilo conversa com o que a moda gosta de chamar de “avant-garde”.
É possível ver um pouco da Cruella original (da animação de 61) tanto na paleta de cores, quanto na utilização de algumas peças em específico: ela está quase sempre de casaco, luvas e salto alto. Além, é claro, do cabelo preto e branco que é a marca registrada da personagem.
As estampas padronizadas de pele são característica importantíssima na criação desse figurino, que se utiliza não apenas de pele mas de diferentes texturas animais para os extravagantes figurinos de Cruella, o que novamente trás bastante da personagem original, que é obcecada por esses materiais.
Vale lembrar que o figurino de “102 Dálmatas” teve uma indicação ao Oscar de melhor figurino.
Quanto à narrativa, diferentemente da animação, a relação entre Cruella e Anita é de trabalho. Anita trabalha para Cruella, e é ela mesmo quem desenha o primeiro croqui de casaco inspirado na pele de dálmata, a partir de sua cadela. Cruella fica deslumbrada pela ideia do casaco e decide tê-lo a qualquer custo.
É a partir da personagem de Glenn Close que se estabelece um novo arquétipo de “business woman” para a personagem com um profundo senso crítico — a ponto de se tornar amedrontadora — e extremamente exigente quanto ao seu trabalho e de seus funcionários. É exatamente em cima desse arquétipo que foi elaborada Miranda Prisley de Meryl Streep. É claro que a personagem vem do próprio livro no qual se baseia o filme, “O Diabo Veste Prada” (2006). Um livro de ficção que conta a história de uma menina que passa a trabalhar com Anna Wintour, editora chefe da Vogue. Porém, é possível observar paralelos entre a Miranda de Meryl e a Cruella de Glenn.
No entanto, as referências a Cruella não param apenas em alguns paralelos fotográficos, mas no próprio figurino de Miranda. É claro que, a personagem de Meryl possui um tom muito mais realista do que o universo Disney, e portanto, a direção de arte é menos caracterizada e muito mais referente à moda dos anos 2000. Ainda assim, logo no início se mostra, por exemplo, uma frequente utilização de casacos de pele por Miranda, demonstrada em uma montagem dinâmica em que ela dá seus pertences para a assistente (Anne Hathaway) guardar.
O próprio nome original do filme, que é o mesmo do livro, faz alusão ao nome de Cruella: Cruella Devil / The Devil Wears Prada. Assim como a personagem de Glenn, Miranda se utiliza muito de casacos com estamparias padronizadas e silhuetas extravagantes para chamar atenção.
Até mesmo o corte e cabelo de Miranda, se utilizando do tom branco de uma maneira extremamente elegante tem uma certa relação com o cabelo de Cruella.
Seguindo esse mesmo arquétipo feminino de vilã “business woman”, está a antagonista do mais novo filme de Cruella, a Baronesa, interpretada por Emma Thompson. Cruella, ao ganhar seu próprio filme, torna-se a heroína. A Baronesa, segue a mesma linha narrativa que a Cruella de Glenn ou a Miranda de Meryl. O que diz muito sobre a nova Cruella, de Emma Stone, que é “oprimida” pela Baronesa — a escolha da palavra oprimida se deu pelo tom punk e revolucionário que foi implicado a essa versão da personagem; a escolha do uso de aspas foi para questionar justamente essa implicação.
Acontece que além de banalizar um pouco a relevância e motivação do movimento — dado que toda a batalha travada por essa nova Cruella é ligada diretamente a uma vingança pessoal e sua suposta “revolução” não questiona em nada o sistema vigente e o status quo —, a escolha de levar o figurino da personagem para a alta costura, com influências de estilistas punks como Vivianne Westwood e Alexander McQueen, acaba trazendo muito mais um universo da moda do que a arte da caracterização. Dessa forma, esvazia-se o sentido do punk e também, o da personagem.
Nesse vídeo, Luke Maher destrincha bastante as influências históricas do mundo da moda no figurino da nova Cruella, idealizado por Jenny Beavan.
Os figurinos da Cruella de Emma Stone, são lindos, mas não trazem em nada a essência da personagem original. O mais gritante de tudo: ela praticamente não usa pele. É claro que a Disney não quis se comprometer em uma polêmica com o movimento vegano e simplesmente optou por não falar no assunto. Um dos principais elementos narrativos e estéticos da personagem é praticamente deixado de lado na nova obra. Ainda levando-se em conta que o filme se passa em uma época onde isso nem sequer começava a entrar em debate.
Toda a direção de arte do filme é inquestionavelmente bem pensada, executada e apresentada. A questão é que os figurinos de fato se assemelham muito mais a um desfile de moda do que propriamente a de construção de identidade de uma vilã poderosa.
No final do filme, a nova Cruella chega a dar a entender que teria feito um casaco com pele de dálmatas. Mas logo depois, vemos os cachorros vivos. Esta é praticamente a única cena em que ela aparece trazendo esse símbolo da personagem, em um casaco que imita a padronização do dálmata.
De uma maneira geral, vemos uma Cruella ousada para o mundo da moda porém, comportada para o mundo da arte.
A paleta de cores, é claro, não só foi respeitada como foi o principal recurso utilizado para estabelecer a identidade visual da personagem no novo filme. Desde padronizações com manchas pretas no branco dos chãos, até as combinações mais simples de figurino, tudo é feito em preto e branco com pitadas de vermelho.
A escolha da influência punk para a indumentária se dá desde o início do filme, com Cruella criança se rebelando com o uniforme, criando novas versões da mesma roupa com diversos elementos associados à moda punk. As ombreiras marcadas da época podem ser um traço remoto a profunda exploração de silhuetas trabalhada nas outras versões da personagem.
Em contraponto, a Baronesa de Emma Thompson tem seus momentos em alguns vestidos de gala extravagantes, que conversam mais com a Cruella original do que a própria Cruella do filme.
É difícil dizer de fato se o que realmente incomoda na personagem é essa atribuição “revolucionária” a uma personagem que é unicamente motivada por uma vingança pessoal, para combater uma pessoa específica que está em posição de poder na sociedade. Ou se é o fato de simplesmente termos uma Cruella heroína, no lugar da vilã tão inescrupulosa que crescemos assistindo. A Cruella é Emma Stone é uma personagem com um coração bom, extremamente ligada a memória da mãe e com uma forte relação afetiva com seus capangas.
Fato é que, de um jeito ou de outro, eles conseguiram inserir a ideia da crueldade como antagonista. Só deram para outra personagem. E, com isso, abandonaram completamente detalhes da essência da história e da vilã original. É difícil se habituar com uma Cruella que não é cruel.
As diferentes concepções de Cruella retratam não só a evolução das propostas narrativas, mas também refletem, cada uma, um pouco do seu tempo. A Cruella original, da animação de 1961, é uma personagem muito marcante mesmo tendo muito pouco tempo de tela, e uma história própria também pouco desenvolvida. No live-action de 1996, a personagem é inserida num contexto que é bastante coerente com a vilã original, mas que também diz muito sobre a época em que o filme foi produzido. A ideia de criar uma mulher poderosa, dona do próprio negócio e completamente obcecada com suas paixões dentro da moda — e não apenas uma dondoca com dinheiro herdado e muitos caprichos —, é reflexo de novos debates dentro da sociedade. A maneira como é caracterizada evidencia a singularidade e devoção que definem Cruella. Da mesma forma que definem Miranda.
Já nossa nova Cruella tem sua própria Miranda, ou sua própria Cruella. Gostando ou não da adoção de um visual punk para a personagem, é inegável que a caracterização condiz exatamente com a narrativa proposta. Também se trata de uma escolha que reflete os tempos atuais, seja sob um olhar um pouco cínico, justamente de marcar um tempo de constante esvaziamento de símbolos, seja sob um olhar otimista, entendendo o debate revolucionário como parte do nosso momento atual. Independente da visão que se tenha, a importância de Cruella em todas as suas versões é incontestável para os universos da indumentária, da caracterização e da moda.
Leia também:
- Às Vezes, Nem Mesmo a Humilhação Mundial Resolve
- Amarelo Manga
- Dois perdidos em uma Noite no Paraíso
- Todo Pai Tem um Filho Favorito
- Tatuagem
- Minha Mãe é uma Peça: a revolução da comunicação não violenta
- Um Tirano Muito Trapalhão
- Mr. Robot: no enquadramento das relações humanas
- Classe Média, Uni-Vos