O horror sobrenatural ou ficcional, dependendo da sua credulidade, é sem dúvidas um elemento presente em nosso mundo. Se você não percebe o sombrio ao seu redor, sugiro espremer os olhos e dilatar as narinas. Repare no sorriso bizarro da criança que se lambuza com o sorvete na saída do colégio, a veia verde que tremula no pescoço longo da senhora bem vestida que aguarda seu pão na fila da padaria, o pé descalço que se entorta no sujeito sentado ao seu lado no trem, ou até mesmo essa mulher de branco pingando óleo no chão, que está atrás da sua cadeira exatamente agora! Veja bem, como o perdão da confusão, o fato de não conseguir ver não significa que algo não existe. Quanto antes você perceber a mão ossuda do além em seus ombros, maior a probabilidade de sobrevivência nesse mundo caótico e perverso.
Devidamente advertidos, trago hoje um punhado de observações sobre o perigosíssimo “O arco-íris monocromático e outros fragmentos” do Gabriel C. Correia. Um livro criado para incomodar, ou alertar, vá saber, desde sua concepção ao seu conteúdo. Por óbvio, tudo se inicia na capa minimalista, cifrada, em um vermelho profundo e hipnotizante, com desafiadoras e provocativas letras minúsculas no título e na autoria, vilipendiando os ossos e as entranhas dos manuais de edição.
O tortuoso e bizarro caminho é composto por uma série de histórias que se conectam, ora de forma tênue, ora de forma agressiva, pelo oculto e estranho. São estilhaços de um mundo suspenso ligados, e religados, pela maldade intrínseca, original e inescapável.
Não há maniqueísmo porque aqui não existe a presença do “bem”. Nesse universo que o autor construiu, só sentimos a presença do maligno, ganhando força ao virar das páginas.
Alguns símbolos conectam esses fragmentos, deixando perceptível uma engrenagem bem maior, embora não fique claro uma hierarquia diante dessas figuras. Portanto temos a presença constante do “rubro”, “desnascido”, “invertido”. Algo como o Randall Flagg do King, ou a serpente axial. Mas Gabriel cria uma mitologia novíssima do além, flertando com o famigerado horror cósmico, que me remeteu ao genial “A história de lo oculto”, longa argentino de vanguarda. Na parte técnica, há de se destacar o desconforto proposital em invocar um paralelismo verbal, em especial nos primeiros “contos”. O jeito do contar traz confusão e espanto ao leitor, e justamente por isso ele é bom.
Nesse mosaico de cacos afiados, somos apresentados ao mal em suas mais diversas formas. O horror escondido nos recônditos da sociedade. Destaque extraordinário para o perturbador “os sonhos da bruxa na casa”. O visivelmente impactante “canção do braço de pernas”, que me fez lembrar do “Beau tem medo” do Ari Aster. Cabe mencionar também os divertidos e sagazes “O bem elaborado (porém pouco convincente) mundo imaginário da Sra Santos” que tem algo de “A Casa dos Budas Ditosos” do João Ubaldo e uma pitada de um Kafka pervertido, e “o Vampiro de Perus” que mistura traços de Dalton Trevisan com o corre do Ferréz.
Por fim, fico particularmente feliz em ler uma nova abordagem de contar num género como o terror, principalmente no Brasil. Se já me demonstrava empolgado com o vigor narrativo de Mariana Enriquez, o magnetismo do colombiano Mário Mendoza e a originalidade do cinema argentino, está ai o “Quando o Mal Espreita” que não me deixa mentir, sinto confiança para apontar o terror latino-americano como o melhor da atualidade.
Para acompanhar essa leitura, ao lado, juntinho, para criar aquela imersão, recomendo ouvir: “the man comes around” J. Cash
E “red right hand” do Nick Cave and The Bad Seeds
Avaliação:⚡️⚡️⚡️⚡️⚡️
Tente correr para as colinas, talvez fique por último. Mas ao fim, a bruxa também estará dormindo ao seu lado.