É caixão atrás de caixão. Um massacre importado. A morte não começou ali, mas se alastrou. Os moradores tentaram fechar a cidade, mas as pessoas continuaram vindo. Não tem governo pra impedir, os turistas vêm aos montes. Melhor seria se viessem logo com a pá pra cavar um mar de covas e nomear o genocídio de uma vez só. Os carros chegavam cedo, abarrotados de mulheres brancas, com unhas postiças, ou homens brancos de camisas polo, óculos rayban, sujando português com inglês, querendo pagar tudo em dólar. É assim que começa hoje em dia. Não é preciso artilharia. É um comboio de conversíveis ou carros blindados 4×4 ou motos silenciosas e fluorescentes. Eles param na entrada do boteco, tocam todas as coisas, babam em cima das pessoas, sem máscara, sem nenhum pudor. Comendo da sua comida, bebendo da sua bebida, mas não quer seu hospital não. Sua casa, não. É um resort abrindo atrás do outro, há uns não sei quantos poucos quilômetros da gente. Pra depois dizer que a periferia é a cidade, não o resort. Tem água no resort, tem piscina olímpica, tem cachoeira artificial, a vida mesmo é lá. Abrindo vaga para morte. Ela trabalha no hospital público da cidade. Viu tanta dor que desde o ano passado quando ela sonha vê os seus olhos pingando sangue. Ela não parece aguentar mais ser tão portadora de maus presságios. Cansou de pedir pra parar com o jogo no campinho, com a festa no boteco, com a entrada dos turistas. Às vezes, quando cruza com um deles e pede gentilmente (com sua gentileza exausta) para que usem a máscara, eles riem e falam dela como se fosse parte de um passado extinto, uma espécie morta. Então balançam as carteiras de trabalho em sua cara, como quem enxota um cachorro. O ódio vai crescendo. Ela só sabe ter pesadelos. “Eles tão se alojando em mim”, ela pensa, “feito vermes”. Querendo estragar por dentro sua capacidade de ter alguma alegria, pra que ela – toda existência dela – se reduza em ser essa mensageira do inferno. Como se o sangue não estivesse nas mãos deles, como se a culpa dessa merda toda estar nessa proporção não fosse justamente deles. Mas a raiva vai dominando, querendo competir com a pandemia. Contaminando tudo. Não há paz possível, não tem tesão possível. Até o dia em que reencontrou os dois.
Foram dias e dias no hospital, sem ver mais ninguém além do pequeno corpo médico e seus inacabáveis pacientes. Já estava com as faces quase rasgadas pelos EPIs, quando mandaram ela pra casa. À força. As mãos dela já tremiam de cansaço, as palavras já ficando duras, não tinha como continuar. Chegaram uma pá de outros médicos, de alguma ONG, e ela saiu pro segundo pior pesadelo: a espera impotente na sua casa cercada de fantasmas. Como se viver, agora, fosse esperar o momento em que a cidade inteira iria ser só povoada por fantasmas, feito sua cabeça. Amigues, parentes, tudo virando nome na nota de rodapé da imprensa. O pavor de perguntar por alguém e ouvir a resposta com os olhos marejados e a voz embargada: “cê não soube?”. Ela então fechava tudo, se fechava inteira, rezava e pedia pra tudo fechar, pras pessoas acordarem todas, pro verme morrer.
Era noite, ela tava trancada em casa, no silêncio, deitada no sofá, quando ouviu o barulho dos carros, rangendo, megafone empunhado. “Vamo botar pra fora essa gente! Não vão fazer de nós cemitério não! Se alguém tem que morrer, que seja pra melhorar.” Ela corre pra janela, as pessoas cavando o chão, desenterrando arma. O carro descendo caixas e caixas de álcool, máscara, luva, face shield. As indicações pra evitar o confronto a menos de um metro de distância. “Já era guerra. Só que agora a gente vai revidar”. Ela reconhece os dois homens no carro, da adolescência. É estranho como podia reconhecer por trás da máscara, na distância, pela voz, pelo fogo na voz deles. Era como uma bandeira de esperança balançando. Ela sente – depois de quase um ano – o retorno da esperança, feito um calor gostoso no estômago. A raiva encontrando o meio de parar de sufocá-la. Eles acenam. Cúmplices. Pra sua surpresa, no entanto, finalizado os informes, os dois descem do carro e caminham em direção a janela dela. As armas empunhadas na cintura dos jeans sujos de terra, suados. “Lindos”, ela se pega pensando, com certa vergonha. No primeiro impulso, ajeita os cabelos, coloca a máscara e abre a porta.
Eles param distantes. “A gente soube que te mandaram pra casa. Como cê ta?”, disse um deles – o mais parrudo, agora com a cabeça raspada. Os dois namoraram em algum momento do passado cheio de sol, língua, suor. O outro, era um velho amigo, há muito tempo foragido da polícia, tanto tempo que nem sabia exatamente como deveria ser o rosto dele por baixo da máscara. Ela respondeu brevemente sobre a indignação, o afastamento do plantão, a casa vazia. Eles deram algumas voltas em palavras gentis, comentários elogiosos pela luta dela na linha de frente, até finalmente perguntarem, admitindo o real motivo de estarem ali: precisavam de um lugar pra passar a noite, antes da guerra do dia seguinte. Bem, como ela vivia se expondo na linha frente, pensaram de cair por ali. Sabiam que tinha um quarto vazio, prometeram higienizar tudo, sair de manhã cedinho. “Faria bem uma companhia pra você, vai deprimir no meio de tanta morte, metida aqui sozinha.” E ela sabia que concordava. Vê-los era um presente que ela não se permitia há mais de um ano.
Os dois entraram, tiraram os sapatos, as roupas de rua. Ela lhes entregou toalhas limpas, arrumou o quarto com dois colchões e um ventilador novo. Pro seu estranhamento, entraram juntos no banheiro. Ela brincou que o box não aguentava dois homens que nem eles, mas eles riram e entraram junto mesmo assim. Ela ficou do lado de fora. Sem conseguir disfarçar os olhos na porta. Começou a ter a estranha fantasia dos dois debaixo da água, dos rostos sem máscara, dos corpos se esbarrando no banheiro apertado, das unhas pintadas de um passando na cabeça careca do outro. Tudo foi ficando quente, as paredes pareciam querer suar com a fantasia dela. Então ouviu o trinco da porta girar. Num susto, apavorada pela ideia de ser pega assim vidrada nos dois, se meteu correndo na cozinha. Repartiu o resto do jantar em dois pratos de vidro e procurou alguma coisa que pudesse oferecer pra beber. Os dois entraram na sala, agora limpos. Só sabiam agradecer, pegaram os dois pratos e sentaram no sofá. Finalmente, baixaram as máscaras e ela pode ver seus rostos. Aquela invasão na sua solidão toda, a estranha normalidade com que comiam e riam e falavam diante dela, encheu seus olhos de lágrimas. Ela não conseguiu esconder. Escorriam em profusão. Os dois se levantaram assustados. No primeiro impulso, seu ex tomou ela num forte abraço. Ela apoiou o rosto mascarado no peito dele. É tanto tempo sem um abraço, que ela só soube amolecer naqueles braços fortes. Era tão gostoso. “O afeto foi arrancado de mim”, escapou dos lábios moles dela. “Eu sei, mas nisso a gente pode te ajudar” disse o amigo e lhe entregou uma pequena semente. “Toma, você vai se sentir melhor”. Ela sorriu, abriu a boca, ele colocou a sementinha na sua língua. Ela engoliu.
Ela conhece a onda. As coisas iam ficar diferentes. Alguém botou Gal pra tocar no rádio, bem baixinho. “Sendo melhor, a gente fica com distância de você”. Os dois começaram a dançar na frente dela, coladinhos. Ela ficou sentada no sofá olhando. Um sol parecia acender na luz do teto. As paredes voltaram a suar. Os dois dançavam mais, colando boca na orelha um do outro. Ela respirava fundo. Parecia que a máscara não estava mais lá. Via as coxas grossas dos dois encaixadas, a mão do amigo segurando firme na cintura do seu ex. A excitação crescia. Eles suavam. Tiraram as camisas e ela teve a sensação de que a enorme tatuagem de pássaro nas costas do seu ex se mexia. Podia ouvir um piar violento, as asas batendo. Um bicho cuspindo sangue. Começou a gargalhar. O riso preso, escorregava solto agora, soando como um alívio. Ela se espantou com o som do próprio riso. Levantou e começou a dançar sozinha, mas com os olhos neles. Girava, rebolava, se tremia toda. E o calor da sala só aumentava. Tirou a blusa também, ficando de sutiã e short. Rodando pra longe deles, tentando não sucumbir em se misturar naquela roçação. A música foi ficando lenta. Os dois deram um doce e lindo beijo na boca.
Param de dançar. Era quase como se ela também os beijasse. Ela passava os dedos nos próprios lábios, eles se beijavam abrindo bem a boca, deixando ela espiar as línguas, os dentes. Seu amigo passava a mão pelo peito largo do seu ex, ela quase sentia a palma nos seus seios. Os bicos das tetas ficando duros. O ex enfiou a mão na calça do amigo, entrando na sua cueca, pegando firme no seu pau. Ela meteu os dedos na calcinha, encharcada, latejando. O amigo abaixou as calças e seu ex colocou seu pau grande e duro na boca. Ela começou a se tocar enquanto seu ex chupava com gosto o pau. Se fechasse os olhos, lembrava dele lhe chupando na adolescência. Ouvia o barulho da moto deles. Via os dois com arma empunhada, rosto cheio de sangue. Abriu os olhos. Um masturbava o outro, batendo uma punheta bem devagar, com os olhos nela. Ela do outro lado da sala, em pé, deixando o short e a calcinha caídos no meio das pernas, a mão tocando em círculo no clitóris, os pelos da buceta arrepiados. Penetrou nos olhos deles. Na cabeça deles. Podia sentir o fogo que queimava suas ideias. A dor de ter que se entregar assim pra vingança, pra guerra. Os entendia profundamente.
Então, foi como se também pudesse tê-los perto. Como se apesar da distância da sala, os dois caminhassem até ela. Nas suas cabeças, sentiam o roçar da barba mal feita do ex na sua nuca, a pele macia do amigo na sua mão. O ex passando a língua nas suas costas, descendo até sua bunda. O amigo tocando sua buceta, colocando a boca em seu peito. Chupando seu peito. Mordiscando seu mamilo. Sua boca quente. A boca quente do ex beijando sua bunda, passando a língua no seu cu. – Ela escuta os dois batendo a punheta. Vê os dois paus duros, pulsantes na distância. – Beija o pescoço do amigo, a saudade é uma coisa que consome a gente. Beija quase que pra arrancar pedaço. Ter algo que possa guardar dele. O suor tem gosto de fruta e cachaça. É mágico. Ela se ajoelha e passa os dedos na sua barriga. A pele agora está cheia de cicatrizes, furos, arranhões. Enquanto isso seu ex passa a mão no seu clitóris, começa a meter nela de quatro, devagar. Ela começa a chupar o amigo. Ele segura seu cabelo, para conseguir ver o rosto dela entre os cachos. Ela aperta a bunda dura dele. Sente o outro pau entrando e saindo da sua xota, molhado, massageando tudo dentro. O quadril do ex contra sua bunda enquanto ele aperta forte sua cintura. Ela rebola pra ele. O pau vai fundo, na boca, na buceta. Eles gemem. O barulho do pássaro retorna. Ela imagina os três no sofá, como que de fora. Se vê sentando no colo do seu amigo, devagarinho rebolando no seu pau babado, enquanto o ex beija sua boca e toca uma pra ela, bem na sua frente. Ela quase acredita que está ali mesmo no sofá. Começa a quicar no pau dele. Os três gemem cada vez mais alto. Sente os dedos grossos do seu ex tocarem seu clitóris novamente, enquanto ela quica no colo do seu amigo. Os dedos grossos tremem, farfalham. Ele sorri. Penas parecem sair das suas costas. O amigo então passa os dedos pelo cu dela e começa a meter no seu cu, bem devagar, bem cuidadoso. O ex, pela frente, beija lentamente sua boca, sua orelha, e passa a cabeça do seu pau pela sua buceta. Nos grandes e pequenos lábios, pela cabecinha do clitóris. Os dois, um atrás e outro na frente, parecem abraçá-la por dentro e por fora. Parecem se fundir nela. Sente as quatro mãos fazendo carícias por toda sua pele, seus cabelos. Um afago abundante. O calor vai se aliviando. Parece estar debaixo de uma cachoeira. As lágrimas voltam pros seus olhos. Uma alegria violenta parece chover sobre eles, como se fossem encher a sala de água. Ela gargalha enquanto tem um orgasmo.
Por fim, se percebe grudada na parede da sala. As pernas abertas. Os dois no outro extremo da sala, gozados. A porra melando seus dedos, suas barrigas. As máscaras cobrindo as tão desejadas bocas. “Obrigada”, ela diz, entre risos e os últimos espasmos. Ela vê o pássaro na janela. É bom presságio. O início do bom presságio. “Amanhã a gente vai tirar esses filha da puta daqui”. Eles concordam. A nossa onda tá só começando. A revolta é a cura.
* * *
Ilustradora:
Camila Albuquerque é artista, mulher, LGBT e nordestina. Ela trabalha com diferentes linguagens, especialmente com a Pintura a Óleo e o Grafite, onde aborda temáticas do sagrado feminino, Erotismo e do Folclore. seu trabalho dá um enfoque cada vez maior na Brasilidade, na experiência pessoal que se liga ao universal, através de suas pinturas sob um novo olhar do prazer.
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