Observações sobre o stand-up

Como a comédia stand-up pode ser mais interessante do que você pensa

O stand-up é uma forma de arte bem particular. Juntando algo do teatro e atuação (embora não existam personagens ou elenco) e algo da escrita e da dramaturgia (embora não exista uma narrativa convencional). Esse fazer artístico sempre foi visto como uma forma de expressão menor; por um tempo compartilhei desse pensamento, mas ao começar a assistir alguns especiais e ler um pouco sobre o tema, fui forçado a mudar de opinião.

Caso não houvesse nada a testemunhar a seu favor, a comédia stand-up pelo menos teria iniciado a carreira de atores como Eddie Murphy, Richard Pryor, Robin Williams, Jim Carrey… A lista é longa de mais para ser escrita. De fato, lugares como os clubes de comédia Comedy Store, The Improv ou Comedy Cellar, foram verdadeiros celeiros para comediantes que marcaram época. Mas esse tipo de apresentação tem muitas qualidades.

Sem muitos recursos além de alguns efeitos de luz e alguns poucos objetos “cênicos”, tudo com que o comediante conta são sua voz, seu corpo e sua vivência, assim seu domínio da linguagem é crucial. No stand-up, o texto e o encadeamento de ideias são fundamentais.  

Mas o stand-up, assim como a comédia em geral, sempre teve uma uma dupla natureza de tanto refletir quanto confrontar uma época. Muitas vezes, gostamos de acreditar em uma noção à la iluminista de que sempre seguimos uma linha reta rumo ao progresso material e “espiritual”, mas as coisas não são assim, nem na comédia nem no mundo. Por isso, essa relação do comediante com a sociedade pode ser comparada àquela de um equilibrista na corda bamba e o chão. Aliás, aí está uma boa comparação, tanto o primeiro quanto o segundo correm algum risco: um a morte, o outro desagradar a plateia.

Lenny Bruce sendo revistado por um policial durante uma de suas prisão
Lenny Bruce sendo revistado por um policial durante uma de suas prisão

Tomemos como exemplo o comediante Lenny Bruce — que atuou entre os anos 50 e 60 — e sua recusa constante em fazer shows “limpos”, algo que lhe rendeu diversas prisões. Sempre fazendo piadas com palavras “obscenas” e temas polêmicos como religião, política e questões sociais de sua época. Em determinado momento de sua trajetória, Bruce se tornou um defensor feroz da liberdade de expressão. Sua vida até rendeu um filme chamado “Lenny” (1974), dirigido por Bob Fosse e estrelado por Dustin Hoffman. Não se pode deixar de mencionar que comediantes como Bill Hicks e George Carlin, que também atacaram a hipocrisia e costumes da sociedade americana, deveram muito a ele.  

Dustin como Lenny no filme de Bob
Dustin como Lenny no filme de Bob

Dick Gregory é outro comediante que usa do humor como uma arma no campo politico, assim como Lenny, Dick foi preso algumas vezes, principalmente por seu ativismo político em favor dos Direitos Civis. Foi justamente para se dedicar mais as suas causas, que ele abandonou a comédia em 1970 (com um breve retorno nos anos 90). Inclusive, o comediante Havoc Miranda fez um breve vídeo falando mais sobre sua trajetória.  

Dick Gregory em uma de suas apresentações
Dick Gregory em uma de suas apresentações

A comédia, devido ao seu grande apelo popular e ao eterno status de “arte menor”, desfruta de bastante liberdade, podendo muitas vezes adotar uma atitude mais transgressora e iconoclasta, já que não está tão presa à ideia de “boa arte” ou “boa forma”. Algumas vezes, alguns artistas podem adotar um tom agressivo, altamente sarcástico ou irônico. Atualmente, nessa linha mais corrosiva temos nomes como Ricky Gervais (um dos criadores do “The Office” original), Sarah  Silverman, Bill Burr, Dave Chappelle, entre outros. Muitas vezes, esses comediantes podem levantar em suas piadas verdadeiras questões morais/éticas, que ao fim do show, ecoam na mente do público.  

Rick Gervais e Penelope Wilton em “After Life”, série criada e estreada pelo comediante
Rick Gervais e Penelope Wilton em “After Life”, série criada e estreada pelo comediante

No entanto, não é só pelo seu potencial crítico que essa modalidade de comédia deve ser reconhecida e valorizada. Sem muitos recursos além de alguns efeitos de luz e alguns poucos objetos “cênicos”, tudo com que o comediante conta são sua voz, seu corpo e sua vivência, assim seu domínio da linguagem é crucial. No stand-up, o texto e o encadeamento de ideias são fundamentais, não é por menos que muitos comediantes, também trabalharam como roteiristas no cinema ou na televisão.

Sarah Silverman em seu especial “A Speck of Dust” (2017)
Sarah Silverman em seu especial “A Speck of Dust” (2017)

Quando se diz que toda piada é composta por um setup e um punch line, tudo parece simples, mas quando notamos todo o malabarismo retórico e timing necessários para se fazer uma plateia rir, vemos o quanto isso é complicado, ainda mais se levarmos em conta certos temas. A linha divisória entre o engraçado e o “mau gosto” é muito tênue, é só tomar como exemplo o especial “Humor Negro” de Daniel Sloss, no momento em que ele conta uma piada sobre a morte da irmã mais nova, cria-se um breve desconforto no ambiente, mas é justamente por ser uma história tão pessoal e marcante em sua vida, que a piada funciona.

Especial de Daniel Sloss para a Netflix
Especial de Daniel Sloss para a Netflix

Este é outro ponto importante sobre Stand-Up, diferente do teatro, no palco não há um personagem, mas uma persona. Basicamente o comediante “atua” como uma versão de si mesmo, maximizando suas características e traços de personalidade marcantes, algumas vezes isso significa revelar o pior de si mesmo. Por esse caráter tão pessoal, os textos costumam girar em torno das experiências, visão de mundo e, em alguns casos, traumas do próprio comediante. Por exemplo, o especial “Nanette” (2018) de Hannah Gadsby  foi uma experiência catártica para a comediante e para a plateia. Por mais que se possa discordar de alguns de seus argumentos ou da própria “forma” que Gadsby deu a suas ideias (para saber mais, ver notas), o espetáculo é impactante. Um outro bom exemplo, do quão fundo  um texto de comédia pode ir nos conflitos e medos de um artista, é o set “Live”  (2012) de Tig Notaro, realizado pouco depois que ela descobriu estar com câncer. Neste espetáculo, Tig faz um texto ao mesmo tempo melancólico e engraçado, infelizmente a apresentação não foi filmado, existindo apenas seu registro em áudio.  

Tig Notaro e Hanna Gadsby
Tig Notaro e Hanna Gadsby

No entanto, não só de traumas e dor vive o humor, alguns comediantes preferem focar em pequenos dramas pessoais ou apenas em situações cotidianas. Nessa linha temos Mike Birbligia (que tem um ótimo especial chamado “My Girlfriend’s Boyfriend”), John Mulaney, ou os já veteranos Jerry Seinfeld e Ray Romano (Sim, o cara de “Everybody Loves Raymond”). Não é por menos, que esses dois últimos, estrelaram suas próprias sitcoms.

Ray Romano, em seu especial “Right Here, Around The Corner”
Ray Romano, em seu especial “Right Here, Around The Corner”

Ainda levando em conta esse ato de se revelar no palco, James Acaster, em seu “Repertoire”, parece subverter completamente essa lógica quando, por exemplo, diz ter trabalhado como policial infiltrado ou que fez parte de um grande esquema fraudulento de venda de mel. Porém, ao mesmo tempo que essas histórias são claramente ficcionais, parecem revelar algo de sua visão de mundo, de sua personalidade. No último “episódio” de seu especial, Acaster conta uma história triste sobre um pato pai de família que é abatido por um caçador, morrendo sem ter a chance de ver seus filhotes crescer. A quem o pato representa (ele mesmo, seu pai, ninguém?) não dá para ter certeza. O final de sua apresentação é um completo ponto de interrogação, nos deixando apenas um punhado de pistas, sem termos certeza quais são falsas ou verdadeiras.

James Acaster em “Repetoire”, disponível no Netflix
James Acaster em “Repetoire”, disponível no Netflix

No Brasil, o stand-up parece passar por um  momento de amadurecimento. Hoje se vê uma multiplicidade de temas, estilos e visões de mundo no cenário nacional, temos desde um Victor Camejo, Nando Viana e Victor Ahmar para quem as palavras, a calma e controle corporal são essenciais para o provocar o efeito cômico, até um Thiago Ventura, Bruna Louise ou Murilo Couto que se utilizam muito bem da expressividade do corpo e um jeito muito particular de falar para ampliar a comicidade de seus textos, que por si só já garantiram risadas.

Stand-up já deveria ser levado mais a sério aqui no Brasil, seja por suas nuances, pelo seu poder contestador ou apenas por nos tirar constantemente de nossa zona de conforto. Mais do que um meio para se fazer rir, essa modalidade de comédia é uma forma de externar ideias, pensamentos e inquietudes muito humanas.

Outros links para quem se interessar:
New York Times: “Nanette’ Is the Most Discussed Comedy Special in Ages. Here’s What to Read About It.”

The Slate: “Stand-up Tragedy: Hannah Gadsby’s Nanette shows how comedy is broken, and leaves us to pick up the pieces.”

The Outline: “The ‘Nanette’ problem: Comedy is at its best when it helps audiences understand their relationship to trauma, not when it makes them feel comfortably woke”

Vice: “Comediantes explicam por que ‘Nanette’ de Hannah Gadsby é tão inovador”

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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