Dois Orson Welles

Notas sobre o estilo de Orson Welles em Cidadão Kane e Othello

A história de Orson Welles em Hollywood é bem conhecida, de jovem promessa à pária em um piscar de olhos. Depois de toda a complicação envolvendo o lançamento de “Cidadão Kane” (1941) e sua baixa bilheteria, o diretor perde seu prestígio com os estúdios e também o controle criativo de seus filmes. As interferências de produtores, a dificuldade em conseguir trabalho e a paranoia anticomunista que crescia nos EUA fazem com que Welles busque melhores oportunidades na Europa.

Fora de seu país de origem, Orson Welles decide adaptar Otelo para o cinema. As filmagens são complicadas, duram cerca de três anos e ocorrem parte na Itália, parte no Marrocos. As muitas dificuldades financeiras, os constantes hiatos na produção, a troca de atrizes e a dificuldade de reunir o elenco em um mesmo lugar forçaram Welles a adaptar o seu “estilo” as novas condições de trabalho. André Bazin, em seu livro sobre o diretor, nota como os planos longos e a profundidade de campo, tão presentes nos seus filmes anteriores, em “Othello” (1952), foram subsistidos por planos breves e a maior utilização do plano e contra-plano.

Poster de “Cidadão Kane” ilustrado por William Rose.
Poster de Othello de 1955, ano de lançamento do filme nos EUA.

Obviamente as condições financeiras e técnicas afetam o resultado final de um filme: influenciam a sua estética, limitam ou ampliam as escolhas do diretor, permitem a equipe trabalhar desse ou daquele jeito etc. Tudo isso é evidente, mas nunca havia pensado em como isso se dá na obra de um mesmo diretor, como condições mais ou menos favoráveis influenciam o seu trabalho e seu “estilo”

De algum modo, tanto “Cidadão Kane” quanto “Othello” foram afetados pelos seus processos de produção. Entre eles há diferenças formais bem evidentes, mas, evidentemente, tais particularidades não impedem que Orson Welles possua uma “assinatura” própria, nem impossibilitam a existência de uma unidade em sua obra.

Tendo essa questão em mente, sigo a trilha deixada por Bazin e escrevo algumas palavras sobre o trabalho de Orson Welles; mais especificamente sobre dois de seus filmes, cada um realizado em momentos muito distintos de sua carreira. “Cidadão Kane”, o primeiro longa-metragem do diretor, foi filmado quando ele era uma grande aposta da RKO (um importante estúdio na época) e contava com muita liberdade criativa e um alto orçamento; já “Othello”, foi realizado em sua estádia na Europa, onde Welles encontrou grande dificuldades técnicas e financeiras.

 Orson Welles fotografado por Cecil Beaton.
Orson Welles fotografado por Cecil Beaton.

Tratando-se do cinema de Orson Welles, a montagem é uma boa forma de se aproximar do tema. Em “Cidadão Kane”, o montador Robert Wise tende a seguir a lógica do cinema clássica. Assim sendo, a montagem deve ser “invisível” e não deve chamar a atenção para si; sua única função é facilitar a narrativa e a imersão do público. Neste primeiro filme de Welles, todas as transições entre os planos seguem esse princípio. O uso constante da fusão, as elipses e raccords cuidadosamente planejados tornam a narrativa fluida e os cortes quase imperceptíveis.

Por outro lado, em Othello – montado por Jenö Csepreghy (creditado como John Shepridge), Jean Sacha, Renzo Lucidi e William Morton – essa lógica é constantemente desafiada. Embora ainda tenha uma função narrativa, a montagem desse filme é mais caótica e imprecisa. Em muitos momentos, não há fluidez entre os planos; já em outros, há raccords, mas esses são tão abruptos que apenas evidenciam a montagem, criando uma desarmonia entre os planos e na própria noção de espaço. Isso também se dá com o som, muitos diálogos parecem estar dissociados das imagens: há momentos em que falta sincronização; em outros, a voz de um personagem parece completamente livre de seu corpo e de sua presença. Muitas dessas peculiaridades, que no cinema clássico seriam considerados erros, foram resultantes das complicações enfrentadas durante as filmagens. Porém, Welles foi capaz de se utilizar desses imperfeições para um fim expressivo.

Mas antes do processo de montagem (e, de certa forma, dele indissociável) vem o ato de pensar a encenação. Em “Cidadão Kane”, Welles adota planos mais longos e uma mise-en-scène elaborada. Há sempre tempo para a interação entre os atores/personagem, para a gradação de suas emoções e para a locomoção de seus corpos no espaço. Em “Othello”, as coisas se dão de forma um pouco diferente, é a montagem que possibilita Welles transformar duas locações distantes em um mesmo lugar, ou permite atores, que nunca conseguiam conciliar agendas, contracenassem juntos. Para tanto, adotou-se uma visão pragmática: não há tempo (nem dinheiro) para elaboração, assim tudo é concisão e cada plano se torna essencial. Tal visão parece se manifestar nos cortes, na velocidade dos diálogos, nos movimentos bruscos dos atores e da câmera, no uso do plano e contra-plano. Durante todo filme, há uma sensação de urgência e desorientação, que não só reflete a psique do protagonista; como a do próprio Welles, que tenta criar sentindo a partir de um amontoado confuso e caótico de imagens e sons.

Othello (Orson Welles) observa Desdemona (Suzanne Cloutier).

De algum modo, tanto “Cidadão Kane” quanto “Othello” foram afetados pelos seus processos de produção. Entre eles há diferenças formais bem evidentes, mas, evidentemente, tais particularidades não impedem que Orson Welles possua uma “assinatura” própria, nem impossibilitam a existência de uma unidade em sua obra. Em todos os filmes do diretor é possível observar traços estilísticos e temáticos comuns, mas essa não é uma questão para se tratar agora.

Nota: Apesar de em 1951, o filme “Otello”  já circular por algumas salas italianas, seu lançado oficial se deu apenas no Festival de Cannes de 1952. 

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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