Atenção, cruzamento de sapos!

Os sapos holandeses não precisam olhar pros dois lados da rua ao atravessa-la. Durante dois meses entre fevereiro e abril, a prefeitura de Haia fecha a travessia principal dos saltitantes amfíbios, no bosque de Scheveningen, das 19 às 7 horas, diariamente, para que eles possam chegar até o laguinho tranquilos. É que todo ano na época de acasalamento (final do inverno) os sapos da região saem da hibernação no bosque, realizam os trabalhos no asfalto e depois as fêmeas terminam o processo sozinhas, indo depositar seus ovos na água mais próxima.

Fui lá conferir por duas vezes este ano. No primeiro dia, foi por volta das 21 horas. Os bichinhos não estavam se exibindo, como você e eu imaginávamos. Nada disso. Eu que esperava um festival de anuros pululando pela estrada a noite toda, me decepcionei. Imaginei uma vez também que assistiria a uma fila indiana de sapinhos recém nascidos realizando cuidadosamente o trajeto, para não se perderem de seus irmãos. Fato é que não avistei um para contar história. Talvez a noite estivesse muito fria ainda, para o gosto deles, e para o meu também. Início de março. Esperar-se-ia um pouquinho mais.

Da segunda vez, estávamos eu e meu namorado voltando de uma festa às duas da manhã. A noite estava bem morna para padrões holandeses, por volta dos 15º C. Pedalamos devagarinho pela estrada, observando pequenos detalhes no asfalto. Foi aí que vimos tudo. Não eram muitos, aliás pouquíssimos, que só pude perceber mirando no escuro da sombra do meio fio. Meu namorado custou a enxerga-los. Os pequenos sapinhos (ou seriam pererecas?) tentavam saltar do nível da rua para a calçada. Uma altura de 15 centímetros de meio fio, que parecia intransponível. Um outro estava relax, parado no meio da rua. Por que tão pensativo, neste asfalto frio? – indaguei. Não seríamos nós, dois humanos parados diante dele, uma ameaça a sua travessia? Saquei minha câmera e cheguei pertinho. Daí percebi que não era um, e sim dois sapos acoplados. Ok. Estavam em momento íntimo, não se importavam com mais nada. Pude fazer quantas fotos quisesse, apesar da luz não ser das melhores. Os dois ficariam ali por horas, então saímos em busca de mais ação.

Eu ouvira falar da sua dificuldade em completar o processo de reprodução. Se as fêmeas não chegassem ao laguinho em tempo, sua espécie estaria ameaçada. O holandês, meu companheiro, explicara que não era ajuda suficiente o estado interditar a estrada, sem também ajudá-los a superar o obstáculo do meio fio. Ou seja, na minha imaginação, comecei a desenhar rampas, escadas, elevadores, para que as sapas, pesadinhas depois da cópula, pudessem seguir seu caminho. Foi quando meu namorado habilitou-se a levantar as sapinhas os 15 centímetros necessários. E ainda insistiu para que eu o experimentasse também. De início elas resistiam ao contato humano, por instinto tentando fugir. Mas felizmente o rapaz conseguiu ajudar as cinco sapas que encontramos pelo caminho. Eu mesma não consegui superar o meu obstáculo de pegar num anuro com minhas próprias mãos. No máximo consegui tocar a ponta do dedo indicador, por um segundo, e sentir a sua pele, sua temperatura. Aquilo já foi uma conquista. Desafiar a si mesmo é experiência que levamos para o resto da vida. Posso dizer que o bicho era menos úmido e menos gelado do que eu imaginava. E bem bonitinho mesmo, marrom esverdeado.

Ao chegar na calçada, ao contrário do que esperávamos, elas não seguiam direto a caminho do lago, que estava ainda a uns dez metros de distância. Pelo contrário, ficavam estáticas, como que perdidas, sem entender ao certo onde estavam. Depois de tanto pular em vão, como foi que elas teriam chegado ali? Seria a mão de Deus? Que lugar seria aquele? O que acontecera realmente? As sapinhas pensavam, pensavam, por tanto tempo que nem pudemos esperar mais para ver. Só podemos acreditar agora que elas completaram a missão com sucesso. A população de Scheveningen agradece.

Em tempo: Scheveningen pronuncia-se IS-RRE-VE-NIN-HEN. Acredite.

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Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues é carioca, artista plástica, cenógrafa e professora, radicada em Haia, nos Países Baixos. Seu trabalho une a dança à arquitetura, construindo pontes entre os cinco sentidos e a arte, entre a experiência individual e a coletiva. Ludmila também é apaixonada por kung fu e por cinema.

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