Homenagem ao malandro

No começo desse ano publiquei aqui no Trevous um artigo falando sobre os nomes da música brasileira que já completaram um século de nascimento. Foi assim que fechei aquele texto:

“Nesse ano de 2013 há pelo menos dois centenários: o de Wilson Batista (1913-1968), grande nome do Samba, contemporâneo de Noel Rosa, e o de Vinícius de Moraes (1913-1980), o “poetinha”, principal letrista da Bossa Nova, parceiro de Tom Jobim em “Chega de saudade”, “Garota de Ipanema” e outras. Será que a mídia e o povo vão explorar (no melhor sentido da palavra) esses nomes com o devido respeito e profundidade? Ou estaremos mais preocupados em saber quais estrelas estrangeiras estarão no Rock in Rio?”

Passados alguns meses, sabemos que a palhinha do passo do “quadradinho” dada por Beyoncé em seu show recebeu muito mais atenção do que qualquer homenagem à memória de nossos grandes artistas (quem quiser levantar a plaquinha “eu já sabia”, eis a deixa!).
Prioridades à parte, e ainda que discretamente, o centenário de Vinícius tem sido celebrado: alguns shows, reportagens e o enredo da União da Ilha no carnaval carioca. Entretanto, sobre o outro centenário de 2013, o de Wilson Batista, nada vi nem ouvi… Então, com o pretensioso (mas sincero) objetivo de celebrar e jogar luz sobre esse importante nome de nossa música, aqui vai este artigo.

Eu fui fazer um samba em homenagem à nata da malandragem que conheço de outros carnavais / Eu fui à Lapa mas perdi a viagem, que aquela tal malandragem não existe mais

Não sei qual foi a inspiração, mas quando penso na “tal malandragem” cantada por Chico Buarque na sua Homenagem ao Malandro (uma crítica bem-humorada aos criminosos de colarinho branco), penso logo num sujeito tipo Wilson Batista. Wilson Batista de Oliveira nasceu em Campos, estado do Rio, em 1913; em 1929, com apenas 16 anos, mudou-se sozinho para a capital fluminense para tentar a vida como compositor. Na cidade do Rio viveu até sua morte em 1968, poucos dias após completar 55 anos.

Wilson viveu intensamente a boemia de seu tempo e os personagens da noite carioca, da Lapa e da praça Tiradentes: as prostitutas, os gigolôs, os malandros que viviam de pequenos golpes e furtos, os policiais que vez por outra jogavam essa galera no xadrez, todos são cantados em sua obra, ainda relativamente desconhecida fora do universo do samba. Na belíssima “Chico Brito” (parceria com Afonso Teixeira) ele chega a citar o delegado Peçanha, famoso na época: Lá vem o Chico Brito / Descendo o morro / Na mão do Peçanha / É mais um processo / É mais uma façanha / O Chico Brito fez do baralho / Seu melhor esporte / É valente no morro / E dizem que fuma uma erva do norte. Vale ressaltar a menção feita à maconha, assunto quase proibido na música brasileira ainda hoje – imagina na época! (E fazendo uma dedução ousada podemos pensar, inclusive, que o eufemismo “erva do norte” foi apenas a solução menos polêmica encontrada pelo sambista, uma vez que a palavra “maconha” também rimaria com os versos anteriores que terminam em “Peçanha” e “façanha”).

Wilson Baptista_SENTADo2

Wilson era um malandro assumido, e era da malandragem barra pesada, andava em “más companhias” e chegou a ser preso várias vezes. Em “Lenço no pescoço” faz uma apologia ao seu estilo de vida: Meu chapéu de lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio. Aliás, foi com essa música que se iniciou um rivalidade muito bem-humorada entre Wilson e seu contemporâneo mais ilustre: Noel Rosa. Noel, que era boêmio da classe média branca carioca (por assim dizer, um malandro mais light) não gostou da imagem de sambista passada na letra de “Lenço no pescoço” e resolveu responder com o samba “Rapaz folgado” (Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha). Wilson, menos famoso que Noel, aproveitou a brecha para se promover como compositor, e deu continuidade à briga compondo “Mocinho da Vila”, revidada por Noel com “Feitiço da Vila”. O último round teve Wilson com “Conversa fiada” e Noel com “Palpite infeliz”. A chamada “polêmica” entre Wilson e Noel foi um episódio que trouxe grandes sambas para nossa música, e acabou criando uma amizade entre os dois compositores.

No entanto, a exaltação à malandragem na música popular não era bem recebida pelo departamento de imprensa e propaganda da ditadura Vargas, chegando a ser proibida por uma portaria do governo em 1940. A partir daí, para conseguir ser aprovado pela censura, há uma grande mudança na temática das letras de Wilson; se antes ele tinha “orgulho em ser tão vadio”, em “O bonde São Januário” (pareceria com Ataulfo Alves) ele faz uma exaltação ao trabalhador, ao homem “de bem”: Quem trabalha é que tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O bonde São Januário leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar. Também na sua obra encontram-se crônicas do dia-a-dia da favela e da população das periferias, algumas bem dramáticas como “Mãe solteira” (parceria com Jorge de Castro, onde narra o suicídio de uma porta-bandeira que sentia vergonha de ser mãe solteira), e outras carregadas de crítica social como a marchinha “Pedreiro Waldemar” (parceria com Roberto Martins): Você conhece o pedreiro Waldemar? / Não conhece mas eu vou lhe apresentar / De madrugada toma o trem da Circular / Faz tanta casa e não tem casa pra morar.

Wilson batista CAPAA despeito de ter criado versos de grande inteligência e refinamento, Wilson Batista era semi-analfabeto e tinha dificuldade para escrever. Não tocava nenhum instrumento musical, só batucava numa caixa de fósforos para marcar o ritmo enquanto compunha. Chegou a fazer uma curta carreira como cantor na década de 30, formando com Erasmo Silva a dupla chamada “Verde e amarelo”, que gravou discos e fez turnês; mas a dupla se desfez pois seu objetivo era firmar-se como compositor. Apesar da fama e de ter sido gravado por grandes cantores e cantoras de sua época os apertos financeiros eram constantes, e para sair do vermelho Wilson muitas vezes vendia suas músicas para serem registrados como de outros autores (prática muito comum na época e, dizem as más línguas, ainda existente nos dias de hoje entre grandes sambistas). Morreu pobre, doente do coração em idade relativamente jovem. Deixou para nossa música sambas de alto teor social, crônicas, deboches,  críticas aos contrastes do Rio de Janeiro e do Brasil.

Fecho esta homenagem com a interpretação de João Gilberto para “Louco”, composição de Wilson com parceria de Henrique de Almeida. E para os curiosos que desejam conhecer mais a obra deste ilustre sambista, eis uma lista com suas principais músicas (todas as citadas neste artigo e outras): acertei no milhar (Wilson Batista e Geraldo Pereira), Chico Brito (Wilson Batista e Affonso Teixeira), lenço no pescoço (Wilson Batista), louco (Wilson Batista e Henrique de Almeida), mãe solteira (Wilson Batista e Jorge de Castro), meu mundo é hoje (Wilson Batista e José Batista), mundo de zinco (Wilson Batista e Antônio Nássara), o bonde de São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves), oh! seu Oscar (Wilson Batista e Ataulfo Alves), pedreiro Waldemar (Wilson Batista e Roberto Martins) e preconceito (Wilson Batista e Marino Pinto).

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Diego Cavalcanti
Diego Cavalcanti
Músico, violonista, guitarrista, compositor, arranjador e professor. Gosta de música brasileira, especialmente Choro e Samba. Acredita que escrever na internet vai levar ao mundo a genialidade de sua obra, ainda restrita ao seu quarto, meia-dúzia de amigos compassivos e dois ou três alunos bajuladores.

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