Em dois mil e catarse, afora todos os levantes, insatisfações, grandes eventos, crises e revoluções que nos acometem, tenho a sensação, certa percepção mesmo, de que há um clima nostálgico no ar. Começou devagar, como efeito contrário a específicos movimentos aqui e ali na cultura, na educação e, claro, na política. Sorrateiramente, o coro de vozes minguadas foi se avolumando e hoje ruge furiosamente onde encontra espaço. Muito me assusta o crescimento de determinadas opiniões nos meios de comunicação, em especial, nos mais utilizados por nós atualmente, as redes sociais. Bem, já gastei caracteres demais em outros posts movido pelas minhas próprias inquietações frente a esse mundo que convulsiona e, entre engasgos e engulhos, busca se livrar dessa infecção generalizada contraída por nosso imaginário, nossas instituições e nossa moral. Sem muita envergadura para tratar desses assuntos, tomado pelas emoções da mudança, segui o curso geral e descarreguei grande parte da tensão em desabafos e indignações que, se não me levaram à ação, encaminharam determinados questionamentos e tornaram outras reflexões mais complexas. É aquilo: nada se perde, tudo se recria. Hoje, diferentemente, decidi fazer uma escolha mais próxima, mais movida pelo afeto. Por isto, e porque, na real, só se é o que se é agora; e, agora, o que me toca é a memória. Curioso, não?
Tratar do presente a partir do passado é um recurso amplamente utilizado por nossas mentes; a idealização de um passado melhor, retrato mítico de quando a vida era mais leve, é um de nossos principais métodos de compensação frente às adversidades da vida. Quando as coisas não saem como desejamos, é comum que recorramos a esse artifício. Nossa memória é seletiva, escolhe o que ressaltar em meio aos variados tons do passado. Escolhe, elege, potencializa, interpreta. Nessa historicização de nossas biografias, costumeiramente, engrandecemos o já acontecido, negamos o presente e idealizamos o futuro. Em um movimento tipicamente humano, lembramos com saudade, sonhamos com dias melhores e lamentamos nossos dias atuais. Parece loucura e de fato é.
Há inúmeras teorias sobre os motivos de nossas mentes funcionarem desta maneira. As explicações perpassam desde o advento da sociedade industrial e a criação do “tempo do capital”, a indefinição e velocidade de nosso século que embaralharam a noção espaço-tempo, até perspectivas religiosas aliviadoras desta condição. Uma das que mais me agrada, supõe que esse estado disruptivo do tempo-presente teria sua raiz na descoberta da agricultura, pois em sua transição de caçador/coletor para agricultor, o Homem teria passado por sua primeira “alienação” e, talvez, esta tenha sido a sua queda do paraíso. Uma vez que nos demos conta dos ciclos da natureza e os dominamos, criaram-se novos processos cognitivos que nos possibilitaram a prospecção e, consequentemente, a retrospecção. Começou aí o problema.
No momento em que pudemos nos lembrar, também pudemos projetar. Não mais vulneráveis aos caprichos do planeta, iniciamos nossa campanha de des-envolvimento. Se por um lado criamos técnicas e tecnologias, por outro perdemos a qualidade essencial que nos mantinha integrados ao todo, perdemos o envolvimento com a unidade. Passamos a planejar, a ter a ilusão do controle. Correlata à nossa capacidade de planejamento, colhemos como fruto a imaginação, razão de grandes feitos humanos; entretanto, aprendemos também, através de duras lições ao longo do tempo, o peso da frustração. A não consecução de nossos desejos, quando levada ao limite, tanto na dimensão individual quanto na social, gera efeitos devastadores. Ansiedade, depressão, neuroses de todos os tipos nos atormentam. Na esfera do social, certos traumas são combatidos pela reinvenção da memória; eventos tidos como vexatórios, ou contrastantes demais com as identidades nacionais, por exemplo, não raro são ocultados, manipulados ou simplesmente negados. A autoidentificação sob ameaça é justificativa suficiente para manipulações de todo o tipo. A potência existente em reescrever o passado transforma o terreno das lembranças coletivas em solo movediço, constantemente revolvido, arado e semeado de acordo com as inclinações do momento. A memória, vejam só, é um espaço de disputas. Está imbricada aos processos políticos, aos interesses, ao desejo do mais “certo” a ser lembrado e do legado a ser deixado.
É então com ressalvas que observo o sentimento de que “o país era melhor em outros tempos” se fortalecer no mundo virtual, espelho do real. Quando me pego em reflexões como essa, aciono minha própria memória de meus primeiros contatos com a obra de Vivekananda. O vigor que emana de suas palavras hoje, século XXI, é o mesmo que no final do século XIX encantou a plateia do Parlamento das Religiões na Chicago de 1893. O jovem Swami captou a atenção do público com sua introdução ao conhecimento da Vedanta. Não é meu interesse me alongar sobre isto, mas Vivekananda deu àquelas pessoas, e a mim 110 anos mais tarde, um frescor e alento sobre como estar no mundo. Grosso modo, o fundamento de seus ensinamentos, para além de seu pensamento progressista e ecumênico, nos sinalizou a relevância em se deter somente sobre o que de fato importa; não há porque se ocupar previamente do ainda por acontecer, ou lamentar e sentir falta do já acontecido. Sua fala simples, muito mais poderosa que minha inútil tentativa de reprodução, trouxe uma mensagem que se torna cada vez mais atual.
“Às tentativas de restituição do datado, somam-se a confusão dos sonhos interrompidos, dos desejos não realizados e das insatisfações difusas; a falta de direcionamento dessas paixões torna-se perigosa, pois serve como matéria para o renascimento de pensamentos extremamente autoritários.”
Portanto, em meu exercício de lembrança, recorro a ele ao perceber o crescimento da ideia da nostalgia do não vivido, como se fosse possível, num movimento do devaneio, preencher as ranhuras na superfície do atual com o que já não mais é. Nesse sentido, vale sublinhar o fato de que muitos dos que opinam a favor de uma intervenção militar no país sequer eram nascidos à época. Às tentativas de restituição do datado, somam-se a confusão dos sonhos interrompidos, dos desejos não realizados e das insatisfações difusas; a falta de direcionamento dessas paixões torna-se perigosa, pois serve como matéria para o renascimento de pensamentos extremamente autoritários. Então, em meio aos questionamentos sobre nossos modelos que começam a dar sinal de cansaço, adicionamos como bônus um sentimento antiminorias, responsabilizando-os por suas próprias mazelas.
O clima de criminalização da pobreza, de falta de empatia, serve como pano de fundo para que as identidades em xeque se ocultem atrás dos fakes, seres violentos do mundo virtual que marcam presença nos fóruns da grande imprensa, dos blogs e das mídias independentes. Protegidos pelo anonimato, esses indivíduos podem vociferar opiniões duras demais de assumir publicamente. A liberdade de expressão é contorcida para atender as justificativas dos que destilam ódio. São tempos difíceis. Contudo, é justamente durante as crises que podemos reavaliar e ressignificar determinados momentos de nossa trajetória. A memória é essa substância que nos possibilita interrogar o passado em busca de pistas que nos ajudem a elaborar melhor nossas perguntas. Mas esse movimento requer maturidade. Do contrário corre-se o risco da idealização e o equívoco da sedução pelas soluções historicamente ineficientes. Os novos tempos exigem novas soluções. Prescrever o mais “fácil”, embasado em teorias perigosas como os extremismos de todo o tipo, é uma via que leva ao fracasso. Esses discursos passam ao largo da beleza conciliadora de um Vivekananda, mas certamente encontram eco nos que creem na rigidez como sinônimo de estabilidade. Nas entrelinhas, seu texto expressa uma deturpação dos exemplos, uma vontade de apagar a memória. Não permitamos.
É Douglas, vivemos tempos difíceis…de falta de empatia, extremismos,sectarismos de todo tipo.Mas não vamos esmorecer enquanto existir a capacidade de reflexão,a possibilidade de lançar um novo olhar sobre as coisas…Li em algum lugar que as religiões politeístas são mais inclusivas, menos intolerantes,mais flexíveis,ao contrário do nosso velho conhecido monoteísmo tão menos agregador da diferença. Talvez por isso sejam os ensinamentos hindus tão preciosos (creio eu!).
Adorei teu texto ! Como sempre inteligente,de sensibilidade incomum. bjão!!