Sobre Infâncias Interrompidas

Um paralelo entre Zaim (Capharnaüm) e Moone (Florida Project)

Em março de 2018, estreava no Brasil o drama estadunidense “Florida Project” (2017), de Sean Baker. O filme mostra a rotina das férias de crianças que moram na periferia de Orlando, Flórida, e que, diferentemente das hordas de famílias de turistas que chegam no verão, não tem acesso aos parques e a todo aquele imagético fabuloso do universo Disney. A protagonista, Moone (Brooklynn Prince), é uma menina de seis anos que vive com Halley (Bria Vinaite), uma jovem mãe solo excessivamente rebelde, em uma espécie de hotel de beira de estrada.

Quase um ano depois, “Capharnaüm” (2018), de Nadine Labaki, tinha sua estreia por aqui. A obra libanesa conta a difícil história de vida de Zaim (Zain Al Rafeea), um menino sírio de aproximadamente 12 anos, que vive com sua família refugiado no Líbano. O garoto faz parte de uma longa linhagem de filhos, que sobrevivem todos dias a condição da miséria. O filme começa em um tribunal, com o menino processando os pais por ter nascido, já estabelecendo um tom narrativo interessante que flerta com o realismo fantástico.

Ambas as obras trazem à tona questões ligadas à infâncias interrompidas e em cada uma delas é possível ser transportado para o universo interno dos protagonistas de maneira muito bem construída. A verdade dos personagens é muito presente, o que torna ambos os filmes excelentes. É, justamente, o contraste entre estas duas realidades tão delicadamente retratadas que permite uma análise política muito vasta a partir das diferenças e semelhanças de Moone e Zaim.

Quando comecei a pensar nesse texto, a ideia era falar sobre “Capharnaüm”, antes mesmo de assistir ao filme. Conhecia um pouco da sinopse e fui, finalmente, conhecer a tão falada obra de arte do cinema contemporâneo. Logo nos primeiros minutos de filme, fui tomada por uma sensação estranha de identificação. Estranha por motivos óbvios: é um filme libanês. Em tese, um lugar com uma cultura muito distante da minha. Mas se eu assistisse a cena do grupo de crianças correndo e brincando pelas vielas da favela sem saber onde foi feita, poderia jurar que se tratava do Brasil. Foi aí que caiu a ficha: a gente se encontra no capitalismo periférico. Talvez por isso minha primeira impressão tenha sido a de estabelecer uma relação do filme com o realismo fantástico, um movimento artístico latino-americano.

Sequência inicial de “Capharnaüm”

Em um primeiro olhar, é possível observar as diferentes escolhas estéticas adotadas em cada filme. Enquanto o longa-metragem estadunidense se utiliza o tempo inteiro de uma paleta de cores extremamente vibrante, criando quadros coloridos e vivos em praticamente todas as cenas, em “Capharnaüm” nos deparamos com uma fotografia cinza, de pouca saturação. Até mesmo o parque de diversões onde Zaim vai parar tem um ar deprimente. O que já indica tons bem diferentes que são adotados em cada obra e ilustra um pouco de como opera o imaginário de cada um dos respectivos protagonistas. Moone é um turbilhão de vida, muito energética e divertida, extraordinariamente destemida — daquelas crianças que ensinam as outras crianças a fazer merda. Zaim é um menino triste, que teve que amadurecer muito antes do seu tempo, extremamente carinhoso, protetor, mas que carrega toda a dor de uma criança que já entende um pouco da realidade do mundo.

Zaim e suas irmãs montando a bancada de sucos que preparam
Moone e Halley revendendo perfumes na rua

Depois de um tempo assistindo “Florida Project”, algo começa a incomodar. O tempo inteiro vemos cenas de Moone comendo todo tipo porcaria: waffles com xarope, panquecas, hambúrgueres, pizzas, batata frita, Coca-Cola, milk shake… A dieta comum do cidadão estadunidense. E aquilo parece me chamar especial atenção por alguma razão. Possivelmente por ter acabado de assistir “Capharnaüm” e acompanhar a dor e a desgraça de um menino de 12 anos que teve que vender um bebê por não ter como se alimentar ou alimentá-lo. Que acompanhou um bebê saudável ir definhando e emagrecendo enquanto chorava pela falta de sua mãe. Que se alimentava de gelo com açúcar para matar a fome. É um contraste gritante. Moone é pobre. Sua mãe é desempregada, e também passa por situações degradantes para sustentar o aluguel, a alimentação e necessidades básicas das duas. Mas é inimaginável uma cidadã norte-americana ter que dar gelo com açúcar para sua filha almoçar enquanto a assiste passar fome. Provavelmente é por isso que Moone é um turbilhão de vida enquanto Zaim, com seus 12 anos, já é uma criança cansada. É a falta de energia, de nutrientes mesmo. E possivelmente de esperança.

Zaim (Zaim Al Rafeea)

Essa é a diferença entre a pobreza de um país de terceiro mundo e um país “desenvolvido” — que só recebe esse título justamente por se permitir explorar desde matéria-prima até mão de obra de todos os países “subdesenvolvidos”. É assim que se dá o capitalismo periférico. Todo tipo de violência a humanidade fica escancarado pois quem está à margem simplesmente não importa. Não importa para os órgãos mundiais ou mesmo para os nossos próprios Estados. As crianças perdem seu direito à infância. No caso de Zaim, ele sequer existe para seu Estado. Pouco importa se ele trabalha, estuda ou morre de fome.

Em outros momentos também é possível perceber a relação da miséria com a retirada do direito à infância. Zaim e todas as suas irmãs trabalham desde muito novos. Moone pode até tirar um trocado ou outro fazendo pequenos serviços para os adultos, mas é tudo para ela, e nada de caráter obrigatório. Quem entra com o dinheiro é Halley, sempre. Logo no início do filme, Zaim pede para frequentar a escola e seu pai não deixa. Diz para o menino que ele tem que trabalhar. As garotas, irmãs de Zaim, são vendidas para casar. Ele perde sua “irmã preferida” depois de um estupro conjugal em uma menina de pouco mais de 10 anos. Moone e seus amigos frequentam a escola — ou pelo menos tudo indica que sim, pois o filme se passa no período de férias —, não precisam trabalhar, não passam fome, tem um lugar para morar mesmo que pequeno, então tem sua “pureza” intacta. Nenhum deles tem preocupações de adulto. Tanto é que toda a esperteza de Moone não é suficiente para ela ser dar conta — pelo menos logo de cara — do que uma visita de concelho tutelar representa. Em contrapartida, logo no início de “Capharnaüm”, Zaim identifica sozinho que sua irmã teve sua primeira menstruação e em questão de minutos bola uma estratégia para que seus pais não percebam. Antes mesmo da própria irmã se dar conta do que aquilo significava.

Moone (Brooklynn Prince)
Zaim (Zaim Al Rafeea)

A partir do segundo ato de “Capharnaüm”, o Zaim passa a viver com uma moça, Rahil (Yordanos Shiferaw), também muito pobre, que o encontra no parque de diversões e o bota dentro de sua casa, para cuidar de seu neném, Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), enquanto ela trabalha. Pela primeira vez na vida, ele é tratado como um garoto. A moça dá banho nele como dá em seu bebê. Leva bolo para ele. Arruma novas roupas. E, além de tudo, deposita uma enorme confiança nele, cuidando de seu filho. O problema é que Rahil é presa, e acaba desaparecendo sem que Zaim saiba o que aconteceu. Mais uma vez ele se vê colocado numa posição de responsabilidade por um adulto. Torna-se então sua missão cuidar do bebê.

Zaim (Zaim Al Rafeea) e Yonas (Boluwatife Treasure Bankole)

Rahil acaba sendo um contraponto interessante para uma mensagem questionável que pode ser lida nas entrelinhas do discurso do filme. A relação profundamente abusiva entre os pais de Zaim e seus filhos, a condição da fome e as consequências disso podem flertar perigosamente com uma ideia higienista e violenta de que pessoas em situação de pobreza não devem ter filhos. Atribuindo a responsabilidade da condição de vida miserável à quem já nasceu dentro dessa realidade. Porém, quando Rahil, uma moça também muito pobre e que já tinha uma criança sua para se preocupar, leva Zaim pra casa e começa a cuidar dele mesmo sem condições para isso, a mensagem passa a se modificar.

Em paralelo, em “Florida Project”, o personagem de William Dafoe — que inclusive foi indicado para um Oscar de melhor ator coadjuvante —, dono do hotel onde vivem Moone, sua mãe e seus amigos, acaba se tornando quase um pai para Halley, e por extensão, para Moone também. Ele abre exceções para elas. Permite que Moone e os amigos aprontem todo o tipo de problema, sem cercear a liberdade das crianças de simplesmente serem crianças. O que chama muito atenção é justamente perceber a discrepância entre: Zaim, um menino de 12 anos, que tem responsabilidades de adulto, enquanto do outro lado do mundo, Halley, uma mulher adulta e mãe ainda é tratada como uma garota. A miséria leva a adultização das crianças, mas não é como se a cultura dos países ditos “desenvolvidos” esteja criando pessoas preparadas para o mundo. Ou com qualquer tipo de vigor para questioná-lo e transformá-lo.

Bobby (William Dafoe) e Moone (Brooklynn Prince)

Ambas as obras trazem à tona questões ligadas à infâncias interrompidas e em cada uma delas é possível ser transportado para o universo interno dos protagonistas de maneira muito bem construída. A verdade dos personagens é muito presente, o que torna ambos os filmes excelentes. É, justamente, o contraste entre estas duas realidades tão delicadamente retratadas que permite uma análise política muito vasta a partir das diferenças e semelhanças de Moone e Zaim. Duas crianças extremamente criativas e inteligentes, mas com olhares muito diferentes sobre a vida.

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Magdalena Vianna
Magdalena Vianna
Magdalena é roteirista, diretora de arte e produtora cultural. Criada nos palcos dos teatros cariocas, é filha de atores e sempre viveu e respirou a cultura do Rio de Janeiro. Apaixonada por todas as formas de arte, hoje aspira criar no meio audiovisual.

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