“Enxurrente” de Leda Spenassato

“E eu que não creio, Peço a Deus por minha gente, É gente humilde, Que vontade de chorar” – Gente Humilde, Chico Buarque.

Num mundo onde os fascistas crescem em progressão Malthusiana e psicopatas são eleitos sem muitas dificuldades, é difícil falar sério sem precisar recorrer ao dicionário de palavrões e evitar rastros de bile nas pontuações equivocadas. No entanto, por força maior, tentarei manter o prumo e o pouco de sanidade que ainda me sobra.

O livro de hoje é um exemplar perfeito da literatura denúncia. Ele passeia pisando firme na via pavimentada por clássicos como “O Cortiço” de Aluísio Azevedo e Quarto do despejo da Carolina Maria de Jesus. Ou seja, é uma obra urgente, a céu aberto. Embora ficção, retrata um problema real e coletivo, que deveria deprimir e indignar até o mais anestesiado dos leitores. Coberto por lama e raiva, apresento “Enxurrente”, romance de Leda Spenassato, que assim como o Itamar Vieira Júnior, também é Geógrafa, o que em um silogismo sem qualquer comprometimento, indica que mais geógrafos deveriam estar escrevendo no país de Milton Santos.

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“Antônio desde que nasceu carregou consigo o pecado. Não de adão e eva, mas o pecado que cometem os homens que exploram homens como ele.” (Trecho do Livro)

Na obra, somos apresentados à dura realidade de uma miserável – e cada vez mais comum – família brasileira. Rosa é uma dona de casa por obrigação, fruto do determinismo social; Antônio, seu companheiro, é um pedreiro explorado pelo patrão; Jackson, filho mais velho, come terra para tapear a fome; Getúlio, filho do meio, sofre com episódios de epilepsia e necessita de cuidados constantes; Neném, a caçula, é uma menina que nem nome tem. Eles moram no morro da ladeira, num barraco precário construído em um lugar perigoso, última e única opção.

“Marido e mulher, um tentando proteger o outro, sem querer seguem fazendo mal aos dois”. (Trecho do Livro)

O enredo choca, mas não traz grandes novidades para quem tem empatia e ainda guarda contato com diferentes realidades. Entretanto, ainda assim, impacta pelo poder da narrativa e pela habilidade da autora. A agonia é uma grande constante, da primeira até a última página. Leda transporta o leitor para esse núcleo familiar, onde é possível vivenciar essa catástrofe diária, em que a “enxurrente” é só mais um capítulo da tragédia anunciada. No mais, o desespero de perceber ser impossível uma saída deixa até o mais insensível dos selvagens acuado.

O desconforto aumenta quando se percebe que o livro se ampara em temas que deveriam estar enterrados no passado, mas que estão hoje mais vivos do que jamais estiveram. Fome, miséria, trabalho escravo moderno. E nesse ponto, destaco o documentário da HBO “Escravidão do Século XXI” que ilustra um pouco esse aspecto. Ah, por favor, não me venha falar em meritocracia que mando-lhe logo um tapão nessa sua cara laranja. Aliás, falar em meritocracia em um país de extremos que voltou para o mapa da fome, devia ser crime inafiançável. Afinal, todo mundo sabe, ou deveria saber, que a única meritocracia que existe no Brasil é a hereditária.

Herbert de Souza - Betinho
Herbert de Souza - Betinho

Num mundo onde os fascistas crescem em progressão Malthusiana e psicopatas são eleitos sem muitas dificuldades, é difícil falar sério sem precisar recorrer ao dicionário de palavrões e evitar rastros de bile nas pontuações equivocadas. No entanto, por força maior, tentarei manter o prumo e o pouco de sanidade que ainda me sobra.

O livro de hoje é um exemplar perfeito da literatura denúncia. Ele passeia pisando firme na via pavimentada por clássicos como “O Cortiço” de Aluísio Azevedo e Quarto do despejo da Carolina Maria de Jesus. Ou seja, é uma obra urgente, a céu aberto. Embora ficção, retrata um problema real e coletivo, que deveria deprimir e indignar até o mais anestesiado dos leitores. Coberto por lama e raiva, apresento “Enxurrente”, romance de Leda Spenassato, que assim como o Itamar Vieira Júnior, também é Geógrafa, o que em um silogismo sem qualquer comprometimento, indica que mais geógrafos deveriam estar escrevendo no país de Milton Santos.

A fome esvazia qualquer debate. Não dá para falar de honra, ética, moral, virtude, consciência, espiritualização, gratidão e coisa e tal, onde há fome. Tudo se torna secundário. Qualquer discurso, debate ou tratado é inócuo e, por vezes, mendaz. Com diria Herbert de Souza, o Betinho; “Quem tem fome tem pressa”. Na boa, vocês já viram Largados e Pelados? Notaram como as pessoas se comportam quando estão famintas? E olha que ali há um cobertor, uma rede de proteção. A grande verdade é que quem tem fome tem o direito – o dever – de se revoltar! E quem não tem deveria ajudar. Enquanto não entendermos isso, o Brasil está lascado!

Ah, e quando estou falando em fome, campeão, não estou falando de dieta, de jejum intermitente, de detox fitness… Por favor, não confunda alho com caralho.

“Sirenes, buzinas, desespero, gritos, choros, trovoadas, que se confundiam no barulho ensurdecedor que vinha ninguém sabia de onde. Era o morro da ladeira trocando de lugar”. (Trecho do Livro)

Um recurso muito interessante usado na obra é a personificação da burocracia na figura da “Dona licitação”, que logo passa ser culpada pela falta de remédios, em especial o tegretol, indispensáveis ao filho do meio de Rosa. Ou seja, a autora traz oportunamente o que ocorre nos mais diversos rincões, a demonização de uma ferramenta criada com um propósito claro de transparência e impessoalidade, e que por conveniência política vira um espantalho blindando o gestor omisso. Em resumo, transfere toda responsabilidade para a malvada burocracia.

Na parte técnica, há uma consubstanciação rara entre estilo e enredo. A linguagem traz algo de caótico, misturando sonhos e devaneios, numa construção não linear que vai nos empurrando como uma verdadeira enxurrente. Há até um certo paralelismo verbal, que em um primeiro momento pode despertar um pequeno desconforto, mas, ao final, é possível enquadrá-lo na proposta original. Igualmente como a repetição proposital de palavras – e cenas – ao lado das vírgulas anárquicas, em alguns momentos, que te transportam para uma ideia de espiral, transformando o leitor em cativo de um vórtice repetitivo, sufocante e inescapável.

O livro é curto e precisa ser lido como uma enxurrente.

Avaliação: Todas as notas do nosso descaso, egoísmo e indiferença, que celebram o nosso retumbante fracasso.

Dica com Spoiler: Ao final do livro, se você também achar que faltou justiça ao Noel, o patrão desgraçado do pobre do Antônio, leia imediatamente o conto do André Sant Anna, “O importado vermelho de Noé” e veja a mágica acontecer. Beijo e de nada!

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Título: Enxurrente
Autor: Leda Spenassatto
Editora: MQP (Mais Que Palavras)
Ano: 2021

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Rafael Sollberg
Rafael Sollberg
Rafael Gondim D`Halvor Sollberg tem nome de príncipe escandinavo, mas é plebeu latino-americano até a raiz dos ossos. Antinatural em qualquer lugar, embora nascido no Rio de Janeiro, é um sociopata com consciência social, ateu pouco convicto, escritor moderado e leitor radical. Integrante proscrito do Podcast “Esculachos Cacofônicos” e vídeo-resenhista de clássicos clandestinos da literatura nacional no Canal do Youtube: “Adorei! Nota 2.”.

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