Finalmente a humanidade prosperaria de novo! Passadas pestes, enchentes, fome e séculos do dilacerar das camadas mais pobres, as coisas finalmente haviam se acertado. O Homem dominara a máquina, a química e a medicina. Um dos cientistas da pequena cidade de Golf Club, uma das últimas comunidades fechadas da superfície terrestre, conseguiu criar a fórmula que fez os alimentos voltarem a crescer no solo. O povo estava salvo para sempre, pensaram todos.
A falta de nutrientes na crosta terrestre não impediu a comunicação entre os poucos condomínios de luxo remanescentes. Logo mais da descoberta, Alphaville, Sun Palace e outros abastados povoados estavam cientes do que era necessário para voltarem a produzir comida em larga escala. O racionamento não era mais necessário.
Não que antes a escassez fosse uma ameaça, seus antepassados lhes deixaram estoque para mais de cem gerações. Mas, com essa nova composição química, nem o distante-futuro era mais uma ameaça. “Segurança alimentar para todos já!” bradavam os esplêndidos milionários. Depois de tantos anos.
Pensaram até que poderia ser um presente de Deus — apesar dessa figura ter sido renegada no período conhecido como A Primeira Queda. Mas quem ficou mesmo com a glória foi o Doutor Francisco Barbosa e seu laboratório. A boemia que se sucedeu nos dias seguintes foi repleta de brindes a ele. Diversas taças de Porto e Chandon batidas uma na outra pela honra e vida de Doutor Barbosa — e ainda mais brindes à SuperNatureza, como foi apelidada a “poção mágica” do Doutor.
A ciência abriu as portas daqueles condomínios. Os campos ao redor, outrora famintos, foram alimentados. A SuperNatureza espalhou o verde para além daqueles altos muros. A floresta cresceu até perder a vista.
Não que isso tenha feito com que as diferentes comunidades se conectassem. Seus habitantes não se gostavam. Mas, pelo menos, as paisagens que os separavam já não eram mais compostas de áridos e perigosos desertos e lixões.
Então, o “Nível Delícia” das comidas aumentava a cada ano, a cada década, liberando aqueles chiques-povos de qualquer preocupação. Se alimentavam até não aguentar mais. O conceito de Aproveitar A Vida nunca fora tão presente e tão festivo – o que fazia com que as pessoas enchessem os olhos de emoção, tendo em vista que elas eram as sobreviventes da Sétima Queda (rebatizada de Última Queda depois da chegada da SuperNatureza).
Mas eles não sabiam que não seria para sempre. De seus confortáveis condomínios, não tinham como prever: a SuperNatureza tocou os lixões e, para a surpresa de todos, as criaturas que, dentro deles, sobreviveram todos aqueles anos em meio à miséria.
E como não dispunham de equipamento algum, o contato dos bichos-lixões com a SuperNatureza seria fatal — para os milionários. A química fez com que as criaturas crescessem de um jeito que nunca fora visto. E elas estavam furiosas: a necessidade faz o ódio.
A cada remessa da poção que escoava até seu podre-terreno, elas bebiam como se fosse a mais fresca das águas. E enquanto os condôminos aproveitavam o Nível Delícia, os seres-impuros aumentavam a sua voracidade e tamanho.
E eles se vingaram. Não foi difícil, os portões já estavam abertos. Por mais de cem milhas, ouvia-se o grito das pessoas. Mas não havia nada que podiam fazer. Nem Deus estava do lado delas. “Ó SuperNatureza!” morreram berrando. Do Homem não sobrou uma costela, nem para contar história.
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Ilustradora Convidada:
Bruna Sudosk
Embora a ilustração sempre tenha feito parte da minha vida, foi só durante os últimos anos que encontrei nessa arte uma maneira de refletir e comunicar sobre minha vida e minhas filosofias. Com o tempo, passei a divulgar o que ilustrava, porque percebi que minhas reflexões iam além de mim. Acho que minha arte é isso, é sobre comunicação comigo mesma e, com sorte, também com o outro.
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Excelente conto distópico. Parece um episódio de Death, Love + Robots da Netflix. Quem dera fosse.