Barry: profundamente humano

Toda história que nos contam, seja ela uma longa jornada ou uma pequena anedota, é um retrato de acontecimentos ocorridos com uma pessoa e sob o ponto de vista dessa pessoa apenas. Claro que pode haver exceções, sempre vão haver, porém, para refletir melhor sobre uma história a qual somos apresentados, é importante pensar que estamos sendo conduzidos sob a visão de uma (ou mais) pessoa(s) e que a ligação entre ela e a construção da história é inegável.

Pensando nessa relação, podemos imaginar quais seriam os requisitos básicos para compor essa pessoa, ou, no caso, esse personagem principal. Bem, primeiro temos o Backstory, um elemento importante para entendermos as origens desse personagem, antes do período em que sua história começa; existe a caracterização, algo que nos ajuda entender boa parte do personagem só pelo que vemos, como sua altura, sua inteligência, sua sexualidade, seu jeito de falar e etc.; e temos também o verdadeiro personagem, aquele que existe dentro da caracterização e que somente se revela quando necessário, mostrando quem ele é além de tudo que podemos ver.

Para fazer esse “recheio” são utilizado alguns requisitos que nos ajudam a entender o personagem melhor e que, quando combinados da forma certa, podem sustentar uma história por bastante tempo. Não é necessário ideias muito mirabolantes, a simplicidade de algumas características pode falar mais alto do que as mais complexas. Para demonstrar isso, Barry (2018-), série da HBO criada pelo roteirista Alec Berg e pelo comediante Bill Hader, traz um caso interessante de como usando ideias simples é possível construir personagens fortes e, consequentemente, histórias com grande potencial.

’Achando o meu propósito’:

Para explicar melhor como esses elementos são mostrados na série, é importante fazer um breve resumo do primeiro episódio “Make your Mark”:

Barry Berkman (Bill Hader) é um ex militar que lutou na guerra do Afeganistão e atualmente vive uma vida mediana em um apartamento pequeno em Cleveland, meio oeste estadunidense. Para se sustentar, ele utiliza de sua habilidade com armas como assassino profissional, sendo gerenciado pelo colega de seu pai, Monroe Fuches (Stephen Root). Um certo dia, Barry é contratado pela máfia chechena de Los Angeles para se livrar de Ryan Madison (Tyler Jacob Moore), um personal trainer que estaria saindo com a mulher do chefe da organização. Barry aceita o contrato, vai à cidade e, ao começar o seu reconhecimento, descobre que além de personal, Ryan também é aluno de uma pequena companhia de teatro. Barry chega a entrar em uma aula, mas antes que possa localizar Ryan, se encanta pela arte da interpretação e automaticamente se apaixona pelo teatro. Ele então é deflagrado pelo seu alvo que o convida para contracenar com ele em um exercício, e pelo som da salva de palmas ele se convence que encontrou um novo propósito em sua vida.

Barry em cima do palco surpreso com os aplausos

Nesse momento fica estabelecido o Objetivo de Barry de ser ator.

Mais tarde, ele acaba conhecendo outros membros da companhia e é convencido pelo próprio Ryan a seguir com o curso, que o aconselha a adotar o nome artístico de Barry Block. Barry promete tentar e acaba sendo visto por membros da máfia dando um abraço naquele que deveria ser morto por ele. No dia seguinte, ele conversa com seu parceiro de negócios, sobre seu propósito de vida e, sem considerar o lado de Barry, Fuches reenforça que ele tem que continuar no ramo de hitman.

Fuches dando uma bronca em Barry
Fuches (Stephen Root) e Barry (Bill Hader)

Nesse momento fica estabelecido o Desejo* de Barry de achar um novo propósito de vida.

Com a cabeça ainda dividida, Barry vai até a companhia de teatro atrás de Ryan, porém muda de ideia de última hora e decide ter uma conversa com Gene Cousineau (Henry Winkler), professor do curso. Quando perguntado sobre seu desempenho no palco, Gene não poupa papas na língua pra falar mal do seu papel, e sobre como aquilo não era o propósito dele. Cansado de toda a situação, Barry desabafa sobre sua vida de assassino: diz que teve depressão depois de ser dispensado e que só começou a fazer isso depois de que foi convencido por Fuches que era uma boa utilização de seu talentos e um bem a se fazer para a sociedade. Porém, mais recentemente, a depressão voltou e não consegue sair do seu pensamento de que ele pode fazer mais do que aquilo e de que aquele não é único propósito dele. Gene encara aquilo como um monologo inventado e se convence de que Barry pode entrar em sua turma.

Barry se abrindo para Gene Cousineau

Nesse momento fica estabelecido a Motivação de Barry: Ele quer mudar de vida já que está passando por uma depressão provocada pela sua experiência na guerra.

Mesmo sendo aceito por Gene, Barry segue com seu plano e se prepara para matar Ryan. Ele chega no carro do personal e descobre que a máfia chechena já havia feito o trabalho pouco tempo antes. De frente para os capangas e sem hesitar, ele entra em confronto, mata todos eles, se livra de possíveis sinais e sai. Barry então entra em uma cafeteria próxima da cena do crime convencido de seu desejo de virar ator e de que acabara de se meter em um grande quiproquó.

Barry pedindo olhando o menu da cafeteria perto do local do tiroteio

Nesse momento fica estabelecido o Conflito da história e a Superação que Barry terá ao longo da série: O seu passado (assassino) vai sempre perseguir seu futuro (ator), mas mesmo que isso ocorra, ele fará de tudo para não perder a estabilidade de sua vida, custe a violência que custar.

Em pouco tempo de tela, já conseguimos entender como deve ser boa parte da história de Barry. Ele quer abandonar sua vida passada para seguir em um novo propósito e está disposto a fazer de tudo para conseguir isso. Todos esses elementos que nos ajudam a construir Barry formam o que chamamos de Carga ou Necessidade dramática de um personagem, sendo eles: a Motivação (o evento que faz com que justifique a busca de seu personagem), o Objetivo (em termos práticos: o que o seu personagem quer), o Sacrifício (o que ele pode perder ao longo de sua jornada), o Desejo (o que realmente seu personagem quer com seu objetivo) e a Superação (o que seu personagem está disposto a fazer para alcançar seu objetivo).

Cada um desses elementos nos ajuda a dar a base que precisamos para um personagem e, como pode se notar, a apresentá-lo ao espectador. Depois que isso é criado, é montado o Arco do Personagem, que determinará cada passo e cada escolha feita por ele até o fim da série. Até aí parece que temos tudo pronto, porém nem tudo se resume a esses elementos. Como consequência de suas ações vão haver reações e, para ir de frente a elas, um personagem pode acabar revelando seu verdadeiro personagem e uma faceta que nunca vimos antes.

“O Verdadeiro Personagem só se expressa em um dilema de escolha. Como a pessoa age sob pressão é quem ela é – quanto maior a pressão, mais verdadeira e profunda é a escolha do personagem” – Robert Mckee em Story

‘Berkman vs Block’:

Essa faceta revela uma característica contraditória a tudo que conhecíamos sobre esse personagem e, mesmo que não pareça que se encaixa nele, nada mais é uma parte que nunca vimos até então.

Imagine, por exemplo, um personagem extremamente calmo e centrado. Alguém que não se estressa por nada, nem com problemas mundanos, muito menos com problemas pessoais. É uma pessoa bastante “zen”. Porém, um dia ela acorda com um certo problema de pele e, ao invés de ir com calma a um médico, ela entra em pânico e fica paranoica imaginando que possa estar com um problema sério de saúde.

O lado calmo dessa pessoa era tudo que sabíamos até então e agora vemos ela numa faceta que nunca imaginamos. Não podemos dizer que ela se tornou outra pessoa, já que mesmo que esteja agindo diferente continua sendo a mesma. Não podemos dizer também que a partir de agora ela será paranoica para sempre, pensando que se virmos ela num dia sem problema de pele, ela provavelmente voltaria a ser ‘zen’ com a vida.

Cada faceta dessa é o que chamamos de Dimensão de um personagem, sendo essa uma característica contraditória a outra, que faz parte da essência do personagem e que justamente se revela quando escolhas são tomadas.

Barry como militar em sua campanha no afeganistão

Barry caracterizado como jornalista para uma peça da companhia

“Dimensão significa contradição: ou dentro do Personagem Verdadeiro (ambição culpada) ou entre a caracterização e o Personagem Verdadeiro (um ladrão charmoso). – Robert Mckee em Story”

Por ser protagonista, Barry passa por muitas situações de risco ao longo das duas temporadas e, como consequência, revela uma dimensão diferente a cada escolha que faz. Cada faceta dele mostra o quão contraditória é a relação entre o teatro e a vida de assassinatos, chegando ao ponto dele ser caloroso e acolhedor com seu colegas de palco, e frio e focado em suas operações no mesmo episódio. Essa relação entre os dois lados não só mostram o alcance do seu personagem, mas também revelam um forte Conflito interno de Barry.

Além de histórias, personagens também podem trazer um conflito dentro de si, que é justamente o que nos ajuda a criar essas dimensões e por consequência as suas ações em sua história. Ao longo da série, Barry toma escolhas que revelam facetas dele e o fazem rumar para um caminho diferente. Porém, aos poucos ele vai cada vez mais se arrependendo de suas escolhas e de suas consequências.

Barry escondendo o choro com uma das mãos sujas de sangue

“É impossível ter a complexidade de personagem necessária para segurar uma narrativa de oitenta, noventa, cem horas [no total] sem contradição moral… Pessoas boas contra pessoas más, isso não dura muito, isso dá num filme… Então qualquer personagem com um conflito interno tremendo, e existem vários tipos de conflitos internos, mas os mais convincentes são conflitos morais com certeza…” – Robert Mckee
fonte: London Real

Esse conflito tem também um lado psicológico, que mostra que não só se trata de uma questão moral, como também uma questão intrinsecamente ligada ao comportamento humano, como é mostrado pelo biólogo e pesquisador Atila Iamarino em seu vídeo:

*Aviso de spoilers da série no vídeo.

Com uma base de personagens bem feita, uma trama que vai do suspense à comédia e à tragédia e um conflito preciso, série surpreende pois conseguiu criar um protagonista tão forte e cheio de potencial, com pouco tempo de estrada (16 episódios divididos em 2 temporadas) e pouco tempo de tela (30 minutos por episódio) em comparação a outras grandes séries dramáticas (Breaking Bad, por exemplo tem 62 episódios divididos em 5 temporadas e 50 minutos por episódio).

O que faz isso possível não é só o fato do conflito moral/psicológico de Barry ser uma questão naturalmente humana, mas como também tudo o que gira em torno do texto da série serem questões profundamente humanas, como por exemplo medo do julgamento, raiva, mudança, amor entre outros.

Barry tendo uma conversa emotiva com Gene Cousineau.

Barry: Você acha que eu sou uma má pessoa, Sr. Cousineau?
Gene Cousineau: Acho que você é profundamente humano. Você fez uma coisa horrível, mas se eu acho que isso o define? Não! – T02E04: “What?!”

* O desejo do personagem é algo que tem que estar determinado desde o começo pra quem escreve a série, mas que pode mudar de acordo com a percepção de quem assiste ao longo das temporadas.

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Yuri Cardoso
Yuri Cardoso
Roteirista, escritor e fotógrafo, todos ainda em prática. Sempre ouvindo podcasts e filosofando o porquê das coisas comigo mesmo. Amo cinema, relações Internacionais e história. Meio prolixo, só me concentro no trabalho ouvindo trilhas sonoras e bebendo um copo de mate.

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