Desde criança, sempre fui vidrada em musicais. Muitas vezes me apaixonei tanto pela trilha sonora dos filmes quanto pela obra cinematográfica em si. Cheguei até a cursar aulas de canto e teatro durante a pré-adolescência e acabei entrando em contato com o próprio fazer do musical. Ainda que a carreira de atriz-cantora certamente não seja pra mim, a experiência pôde me proporcionar um olhar particular acerca do gênero.
Começando pelo meu grande favorito. “Across The Universe” (2007) é um musical que retrata a vida de um grupo de artistas durante a Guerra do Vietnã, no ápice do movimento hippie dos Estados Unidos — mais especificamente em Nova York. O musical traz releituras de músicas dos Beatles, com novos arranjos e adaptações até mesmo nos gêneros das canções originais. Todos os personagens levam um nome que aparece na discografia da banda. Desde Jude (“Hey Jude”) e Lucy (“Lucy in The Sky With Diamonds”) à Sadie (“Sexy Sadie”), Maxwell (“Maxwell’s Silver Hammer”) e Prudence (“Dear Prudence”), passando também por Mr. Kite (“Being for The Benefit of Mr Kite”) e Jo-Jo (“Get Back”), todo o núcleo principal é uma referência direta à obra dos Beatles.
Além da trilha sonora absolutamente incrível, com diversas músicas que — ouso dizer — são até melhores que as originais, o filme faz críticas importantes que começavam a ser levantadas na época. A guerra é questionada. A estrutura de poder é questionada. Até mesmo a oposição é questionada, apontando diferentes pontos de vista sobre como se deve lutar contra o poder hegemônico. A própria sociedade civil norte-americana é contestada em números como o de “Let It Be”, que se passa em dois funerais. O primeiro de uma criança negra que tem seu sangue nas mãos da policia de Detroid e do exército estado-unidense. O segundo, de um jovem branco que perdeu sua vida lutando uma guerra criada pelos interesses econômicos dos EUA. O número, com elementos extremamente simbólicos, propõe uma narrativa que atribui o significado de destruição a signos como o da bandeira norte-americana.
“Let it Be” – Across The Universe
Um aspecto interessantíssimo do filme é entender como eles conseguem incluir todos os momentos de uma discografia tão diversa e evolutiva como a dos Beatles, conseguindo aplicar essas nuances de maneira delicada e profundamente representativa dentro do filme. Desde canções mais ‘conservadoras’ do início de carreira, passando pela psicodelia das drogas dos anos 70, até os rocks mais pesados do final da carreira da banda como “Helter Skelter” (White Album) e “Oh! Darling” (Abbey Road). Tudo é contemplado no filme de maneira muito inteligente.
Ainda na obra dos Beatles, vale citar também os trabalhos da própria banda dentro do audiovisual. Tenho especial afeição ao “Yellow Submarine” (1968), que é uma animação fantástica e extremamente marcante da minha infância. Além deste, outros dois álbuns dos Beatles ganharam seus filmes, “Help” (1965), um filme de comédia em que a banda é perseguida por conta de um anel de rubi que Ringo possui, e “The Magical Mistery Tour” (1968), uma espécie de mockumentary sobre uma turnê da banda.
Depois de “Across The Universe”, provavelmente o musical que mais me marcou na época em que foi lançado foi “Hairspray — Em Busca da Fama” (2007). O filme, que é um remake do original de 1988 (“Hairspray — E Éramos Todos Jovens”), traz uma narrativa política forte, falando sobre a segregação nos EUA nos anos 60. A protagonista, Tracy Turnblad, é uma mulher branca e gorda que sonha em aparecer no programa da TV local. Uma vez que não é aceita pelo padrão estético branco, Tracy acaba se tornando amiga dos alunos pretos de sua escola e se envolvendo com toda a cultura negra de periferia de sua cidade. O filme se passa em Baltimore, que foi palco de grandes manifestações antirracistas e, consequentemente, de uma população branca extremamente descontente com os movimentos de empoderamento preto.
“I Know Where I’ve Been” – Queen Latifah
“Hairspray” fala sobre o racismo histórico e estrutural, discute questões de representatividade e interracialidade, contesta padrões e pressões estéticas e, de quebra, nos dá de presente uma trilha sonora incrível — pessoalmente, minha favorita para faxinar a casa. Contando com presenças ilustres no elenco como John Travolta, que interpreta a mãe da protagonista, seu par, Christopher Walken, além de Queen Latifah e toda sua potência vocal absurda. Nikki Blonsky (Tracy) tem sua estreia no cinema de maneira espetacular, provando todo seu talento como cantora, atriz e dançarina. E é claro, ninguém menos do que minha ex-atriz-mirim (agora, atriz adulta) favorita: Amanda Bynes, responsável pelo alívio cômico do filme.
Seguindo essa linha de quebra de padrões normativos, “Billy Elliot” (2000), um musical que vi inúmeras vezes quando criança, foi um sucesso muito grande na época de seu lançamento. Eu tinha dois anos quando o filme foi lançado, então provavelmente não vi pela aclamação pública, mas alguns anos mais tarde, fui apresentada a obra. O filme protagonizado por um menino de 14 anos que é forçado pelo pai a lutar boxe, mas é secretamente incentivado a dançar. Billy (Jamie Bell) vive no interior da Inglaterra. É apaixonado por balé, e extremamente talentoso, mas as construções sociais se mostram como uma barreira constante para poder seguir seu sonho.
No departamento de atores e atrizes mirins, sem dúvidas “Escola de Rock” (2003) tem um lugar especial guardado no meu coração. O filme é uma comédia-musical, que não é tanto musical quanto é comédia, mas tem toda a cerne da sua narrativa no conceito do rock ‘n’ roll. Quando falo em conceito, quero dizer que se trata menos das melodias e inovações sonoras em si, e mais do comportamento e da contracultura que o rock propõe. Jack Black — um dos meus comediantes norte-americanos favoritos — protagoniza o filme. Ele faz o papel de um músico que é expulso de sua banda e acaba armando um esquema para conseguir dar aula numa renomada escola particular.
“Rock Got No Reason” – School of Rock
Jack Black também tem outra comédia-musical incrível — essa tão musical quanto comédia. “Tenacious D” (2006), filme homônimo da banda de metal que o ator tem com Kyle Gass, conta a história de uma dupla de músicos que entram em uma batalha de rock com o demônio para se livrar da morte. Trazendo uma estética própria do universo do metal, o musical tem parte da sua narrativa trazida pelas canções, que além de contarem a história funcionam perfeitamente como piadas.
Em uma narrativa similar a de “Escola de Rock”, “The Commitments” (1991) é outro musical que traz a história da formação de uma banda “despreparada”. No caso do primeiro, se tratam de crianças que não tem ligação nenhuma com o rock. No segundo, o líder da banda, Jimmy Rabbitte, decide criar uma banda de soul music em Dublin, propondo uma desafio musical e cultural para os envolvidos no projeto, que pouca relação têm com a música negra produzida no outro lado do oceano. Tenho um carinho especial por esse filme. Me lembro de tê-lo assistido com minha mãe quando era bem novinha e ter me apaixonado pelas músicas.
“Mustang Sally” – The Commitments
Um musical que merece uma citação especial nesse texto é “Rent” (2005). O longa é uma adaptação do clássico “La Bohème”, e fala sobre a juventude, suas relações presentes e possíveis em um contexto de pandemia da AIDS, abuso de drogas, prostituição e desemprego dos anos 90. Provavelmente por ser tão trágico, foi um filme de enorme impacto sobre mim. Metade dos personagens principais são soropositivo em uma época onde não era possível conviver com a doença sob controle. A questão da sexualidade também aparece como mais um desafio a ser enfrentado, dado que se tem uma realidade social muito mais homofóbica. E sobretudo, por serem artistas independentes, não conseguem se sustentar de sua arte e, por isso não podem pagar o aluguel (rent = aluguel em inglês).
“Seasons of Love” – Rent
“Rent” foi um marco não só para mim, mas também deixou seu legado no universo dos musicais, — a peça ficou em cartaz na Broadway por anos, e sua trilha foi regravado por diversos artistas. Possivelmente se tornará uma referência do gênero com o passar do tempo.
Na seção dos clássicos, a lista vai dar uma engordada porque são muitas obras importantes demais para não serem comentadas aqui. Começando, obviamente, por “Grease” (1978). A mais linda história de amor entre dois adultos interpretando adolescentes que Hollywood produziu. Dois jovens que vivem um romance de verão e acabam descobrindo que frequentam a mesma escola. Quando se reencontram, se deparam com diferenças abissais de grupos sociais e percebem que terão que ceder um pouco em ambas as personalidades para viverem seu amor. Uma espécie de Romeu & Julieta que termina em suicídio social.
“Grease” é um marco estético na moda dos anos 80 e também na carreira de John Travolta, que já vinha do sucesso de “Embalos de Sábado a Noite”(1977). O filme ganhou até uma releitura no famoso videoclipe de hip hop do Ja Rule, nos anos 00.
“Mesmerize” – Ja Rule ft Ashanti
Seguindo a linha romântica de “Grease”, é importante falar de “Moulin Rouge” (2001). O filme de Baz Luhrmann tem não só uma direção de arte delicadamente trabalhada (vencedora dos dois prêmios no Oscar daquele ano: Direção de Arte e Figurino), mas escolhas de musicas e arranjos, coreografias e quadros absolutamente incríveis — e tudo isso num cenário de cabaré belíssimo. O filme conta a história de um dramaturgo (Christian) que se apaixona por uma dançarina do cabaré (Satine), que acaba sendo a protagonista de uma peça escrita por ele e patrocinada pelo grande vilão da trama. Diferente de “Grease”, o final não é tão recompensador, mas a história é linda.
Vencedor de inúmeros prêmios, incluindo o Globo de Ouro de melhor filme. O longa brinca com a metalinguagem, na medida que seu enredo se dá na maior parte durante os ensaios da peça, que retrata basicamente a própria história de amor proibido vivida por Christian e Satine. E como evidência de seu marco estético, assim como “Grease”, “Moulin Rouge” também ganhou sua própria adaptação para os videoclipes dos anos 00, dessa vez um grande hit da obra de Christina Aguilera.
“Diamonds Are a Girl’s Best Friend/Material Girl” – Satine (Nicole Kidman)
“Aquarius” – Hair
Assim como em “Hairspray”, “Hair” traz o cabelo como símbolo de uma época. Porém, na obra de Milos Forman, isso aparece de maneira mais icônica, dado que representa também uma ideologia, uma contracultura, um posicionamento político de um contexto histórico específico. Durante o filme é possível observar como o cabelo é um forte marcador de diferenças entre os personagens apresentados.
A crítica aos costumes e modelos tradicionais das famílias dos Estados Unidos é profundamente presente, trazendo ao debate muito mais do que apenas uma rejeição que deveria ser unanime à guerra. O que se discute é justamente cultura e contracultura, a oposição aos hábitos que garantem a supremacia do conservadorismo na sociedade. E essa crítica é feita de maneira brilhante, com o uso de signos icônicos e simbólicos, além de uma direção de arte, coreografia e música impecáveis.
Bem diferente de “Hair”, outro clássico da minha infância certamente foi “A Noviça Rebelde” (1965), que conta a história de uma noviça (Maria) que não se adapta às normas do convento e acaba desistindo de ser freira para ser governanta em uma casa cheia de crianças e um capitão viúvo. A princípio, Maria (Julie Andrews) também não se entende com o Capitão, que vislumbra uma criação rigorosa para seus filhos. Mas à medida que ela vai ganhando não só o respeito das crianças, mas também trazendo a alegria de volta para uma casa que perdeu sua figura materna, os dois acabam se apaixonando.
“My Favorite Things” – The Sound Of Music
O filme se dá pouco antes da Segunda Guerra Mundial estourar, levantando questões acerca do contexto social vivido na época. A família se vê numa encruzilhada quando o pai é convocado a servir a Alemanha nazista, e decidem fugir.
No ano em que foi lançado, “A Noviça Rebelde” foi nomeado para 10 prêmios no Oscar e levou 5 — incluindo melhor filme e melhor direção. Também ganhou os prêmios de melhor filme e melhor atriz no Globo de Ouro. A obra de Robert Wise certamente ganhou a chancela de referência no gênero, com toda sua delicadeza na montagem, fotografia e direção de arte. É realmente um filme belíssimo.
Se tratando de clássicos da infância, não dá pra ignorar a importância e o impacto que os musicais da Disney possuem sobre diferentes gerações de crianças. Em um texto com um recorte tão pessoal, não poderiam faltar minhas obras “waldisnescas” favoritas. Em primeiro lugar, o filme que provavelmente mais assisti em minha vida. Me lembro de chegar na locadora e correr para os VHS infantis, já sabendo exatamente onde é que estava a fita de “A Bela Adormecida” (1959). Uma animação mais velha que minha mãe e com desenhos e efeitos muito inferiores ao que já se produzia na minha infância. Independente disso, a pequena eu desfilava pelas ruas do Rio de Janeiro com seu vestido cor-de-rosa da Aurora, se sentindo a mais bonita das princesas.
“An Unusual Prince/Once Upon a Dream” – A Bela Adormecida
Um verdadeira clássico da minha geração que também não merece ser deixado de fora devido a própria importância que teve em minha vida, foi “High School Musical”(2006). Cinematograficamente, o filme não traz grandes inovações, o roteiro é simplérrimo e a direção de arte funciona na medida do esperado — nada de especial. As coreografias, por outro lado, são excelentes. Provavelmente, pelo fato do diretor (Kenny Ortega) ser o coreógrafo. A verdadeira potência de “High School Musical” está de fato nos números musicais, cujas canções marcaram intensamente a pré-adolescência de diversas jovens que, como eu, ficaram absolutamente enlouquecidas com o musical, e todas as suas continuações.
E para fechar com chave de ouro, um musical que é também a minha animação favorita de todos os tempos. “O Estranho Mundo de Jack” (1993) é um dos filmes mais bonitos do Tim Burton*, feito através de stop motion com massinha e bonecos de uma delicadeza ímpar. E se a beleza das imagens não fossem o suficiente, o roteiro também é extremamente poético. O filme conta a história de Jack Skellington, o rei do Halloween, que, cansado do seu universo festivo acaba se deparando com o mundo do natal e fica encantado com a possibilidade da alegria e felicidade no lugar do medo e do pavor.
“This is Halloween” – O Estranho Mundo de Jack
É claro que ficam faltando nessa lista grandes referências do gênero como “West Side Story” (1961), “Cantando na Chuva” (1952) ou “Cinderela em Paris” (1957), mas como apontado inúmeras vezes, o recorte foi feito baseado pura e simplesmente nos filmes que, de alguma forma, foram marcantes para mim. Sendo assim, os vínculos estabelecidos são totalmente pessoais e não pretendem apontar nenhum tipo de relação entre as obras escolhidas, para além de seu gênero cinematográfico. Ainda assim, se você chegou até aqui, espero que tenha gostado da seleção, que foi feita com muito carinho. Pode confiar.