Os que sabem morrer

O presente sem fim da guerra segundo Anthony Mann

Samuel Fuller uma vez cunhou seis mandamentos para se fazer um filme de guerra, apesar de não terem sido talhados em pedra, eles têm o seu valor. Tais “leis” parecem se opor categoricamente a uma visão romantizada da guerra, até porque Fuller lutou em uma. Um filme que parece estar de acordo com essas prescrições é “Os Que Sabem Morrer” (1957) de Anthony Mann.

No filme, que se passa durante a Guerra da Coreia, Mann e seus roteiristas Ben Maddow (não creditado*) e Philip Yordan parecem se afastar de uma idealização da guerra, embora ainda sujeitos a convenções de gênero e as limitações impostas pela própria natureza industrial do cinema de Hollywood. Mesmo com aparentes concessões, o exército norte-americano se recusou prestar qualquer apoio à produção do filme. Nada muito surpreendente, já que para os soldados de “Os que Sabem Morrer” o que importa é sobreviver e não patentes.

Pôster de “Os que Sabem Morrer”, onde podemos ver dois soldados aliados em conflito.

Aliás essa supremacia da sobrevivência sobre qualquer outro valor, parece permear todo filme. Por se tratar de um filme norte-americano da década de 50 — ainda faltava muito para a Guerra do Vietnã —, aos soldados representados nas telas ainda era obrigatório ter algum senso de justiça, mesmo que mínimo. Vale mencionar o embate entre o Lt. Benson (Robert Ryan) e Montana (Aldo Ray) por um jipe (algo fundamental para a sobrevivência tanto para o tenente e seu pelotão quanto a sobrevivência do segundo e seu superior); embora o fogo amigo não se concretize durante toda a cena, era algo possível de acontecer. Momentos como estes estão presentes em todo o longa e parecem remeter as carreiras pregressas tanto de Mann quanto de Maddow e Yordan. Os três haviam trabalhado em filmes noirs de baixo orçamento, por isso essa ambiguidade moral e constante jogo de poder (perceptível tanto nos diálogos quanto no mise en scène) podem ter origem nas intricadas tramas e relações dos filmes de crime, onde predomina uma atmosfera geral de desconfiança.

Em “Os Que Sabem Morrer”, também existe uma aura similar, porém esta suspeição parece se estender ao ambiente que cerca os personagens. Os soldados inimigos estão sempre espreitando, quase que em uma simbiose total com o território que, afinal, lhes pertence. Alguns enxergarão nisso uma tentativa de impor uma imagem de traiçoeiros aos “inimigos da América”, outros que isso reforçaria a condição de invasores das tropas norte-americanas; já eu não me contento em interpretar as partes, mas também ver o todo, de qualquer forma isso não é um assunto para agora.

Os soldados coreanos e a sua fusão a sua terra

Ainda sobre o terreno e o ambiente em que se passa o filme, vale mencionar como de alguma forma a sua beleza está associada à morte. As flores e a natureza muitas vezes servem como um disfarce para uma realidade cruel ou um prenúncio de morte; há um mundo além do mundo aparente. Não é por menos que o Sgt. Killian (James Edwards) é atraído, como um marinheiro perdido no canto de uma sereia, pela beleza de algumas flores até o local de sua morte.

Alguns planos da sequência da morte do Sgt. Killigan, interessante notar que a sequencia termina com um movimento da câmera sobre o campo indiferente, com uma certa simetria cruel com o início da sequência.

Toda esta sequência é feita por meio da montagem paralela, onde Mann e o montador Richard C. Meyer intercalam os momentos de aparente tranquilidade de Killian com os de aproximação do soldado inimigo. O sargento é morto sem nem ao menos saber por quem e por qual motivo (no longa, não há qualquer menção as motivações da guerra), seu corpo desaparecerá, tragado pela natureza do local, que parece ter poupado apenas o seu capacete como uma forma de aviso.

O capacete enfeitado com flores que será adotado por outro soldado

A montagem de Meyer parece ao mesmo tempo jogar com a distensão do tempo proposta pelos longos planos de Mann, com uma montagem mais rápida em alguns poucos momentos. Porém, o que chama mais atenção é justamente a longa duração de certos planos, que parecem esconder uma motivação para além do puramente estético/formal. Assim como em outros filmes de guerra, mais do que os tiroteios, o ato de caminhar ou de atravessar algo é uma constante. Durante toda a duração de “Os Que Sabem Morrer”, a ideia de travessia (muito reforçada pelo uso da profundidade de campo) está muito presente imageticamente.

A profundidade de campo e noção de eterno caminho.

Os soldados no filme estão sempre indo adiante rumo a um destino incerto. Seguir a missão e ir até a colina 465 representa uma esperança de sair da situação precária em que se encontram e conseguir se reunir com o batalhão, assim, o que os move é novamente a sobrevivência. Esses homens estão isolados, a comunicação está comprometida, eles estão cercados pelos inimigos e qualquer erro pode ser fatal. Mais do que criar tensão, os longos planos parecem nos dar a sensação de que cada minuto naquele lugar dura séculos, além de reforçar o cansaço e o desgaste físico e mental aos quais os personagens estão sujeitos. Como dito antes, a guerra não é uma coisa bonita nem um bang bang desenfreado, mas um martírio ao qual alguns desafortunados foram sujeitados.

Lt. Benson no início do filme
Lt. Benson junto com Montana no final do filme

Ligado a essa ideia, há uma noção no filme do aqui e agora, tudo o que há é o presente (algo que me remete a alguns aspectos deste texto de Francis Vogner dos Reis). Seja nos diálogos ou nas imagens, há apenas pinceladas sobre a história dos soldados. De alguma forma, esses personagens parecem estar ligados ao conceito de personagem fechado ou circular de Sganzerla (algo já mencionando por mim em um texto anterior). Em “Os que Sabem Morrer”, há apenas esboços das questões psicológicas que afligem estes personagens ou menção às suas marcas de guerra, mas nunca as entendemos por completo. Na sequência de abertura, algo análogo parece acontecer, só que no plano visual e narrativo, ficamos sabemos de um acontecimento pelas suas consequências — o que não significa a suspensão total das leis de “ação e reação” neste universo ficcional, mas sim que parte do panorama completo nos é negado.

Início do filme, onde a câmera passeia no cenário devastado.

Esse mistério que cerca o passado e o futuro, e esse constante agora apenas refletem e reforçam o sentimento de isolamento da guerra. Seguindo os mandamentos de Fuller, Mann faz da guerra um limbo, onde tudo que existe é ou o mero conceito de um mundo para além da guerra (onde se fundem o passado e o futuro, onde memórias e expectativas parecem habitar uma mesma ideia), ou a morte e o esquecimento (vale lembrar as vezes em que Lt. Benson anota os nomes de seus soldados mortos ou quando ele chama o nome de algum que já havia morrido).

Lt. Benson acha uma foto no corpo de um soldado inimigo.
O mesmo Lt. Benson olha para uma foto guardada dentro de seu capacete.

Essa ideia de limbo é reforçada em alguns momentos, por exemplo, nesse trecho de um diálogo entre Benson e Riordan (Phillip Pine):

Benson: Riordan.
Riordan: Sim, Senhor.
Benson: Jogue Isso fora.
Riordan: Achei que pudéssemos concertar, senhor. Achar alguma linha. Poderia ligar para o batalhão.
Benson: Batalhão? O batalhão não existe, o regimento não existe, o QG de comando não existe, os EUA não existem. Não existem, Riordan. Nunca mais os veremos.
Riordan: Não diga isso, senhor.
Benson: É a verdade.
Riordan: Sei que é, mas me assusta quando diz.

Como dito antes, em “Os Que Sabem Morrer”, Mann tinha certas convenções de gênero a seguir, assim como algumas concessões a fazer. Isso pode ser observado na parte final do filme, quando finalmente o pelotão de Benson chega à colina 465 e descobre que ela está sob o controle das forças adversárias. É aqui que os soldados norte-americanos são apresentados quase como heróis (embora seria melhor dizer anti-heróis), no sentido de que o que eles fazem é praticamente impossível: alguns poucos soldados tomarem uma colina. Porém mesmo esse ato parece estar ligado às duas ideias já apresentadas nesse texto: a necessidade de sobrevivência e o presente constante. Sem poder voltar (geograficamente e temporalmente), para sobreviver eles precisam avançar, esta é a sina desses indivíduos. Sem mais esperanças de retornar para casa de outra forma, eles seguem as ordens, não por qualquer querer, porém por necessidade. Como o próprio tenente diz em determinado momento, eles não têm escolha nem para onde ir.

“Conte-me a história de um soldado de infantaria e contarei a história de todas as guerras”.

Como resultado dessa missão suicida, o pelotão fica reduzido a três soldados, que no topo da colina prestam homenagem aos mortos. Todo momento é ambíguo, ao fundo ouve-se uma música edificante louvando a bravura daqueles que caíram no campo de batalha, porém na cena os nomes dos mortos são lidos em uma caderneta, enquanto medalhas (que seriam destinadas a outros soldados que também acabaram mortos em combate) são lançados displicentemente em direção a planície, como uma forma de compensação simbólica. Imagem e música parecem estar em completo desacordo, mas no caso as imagens parecem falar mais alto.

Imagens do último plano do filme, onde lentamente a câmera se aproxima para capturar um gesto de revolta, que não tem destinatário definido nem forma de concretização. 

Ao fim de “Os Que Sabem Morrer”, o que temos é um filme guerra que revela o não significado inerente da guerra, e por mais que se possa querer identificar heróis e vilões, tudo o que há são indivíduos (dos dois lados) tentando se manter vivos. Qualquer referência às instituições como Exército, Estado, Nação… são esparsas e circunstanciais. O que vemos encenado na tela é apenas a mais pura vontade de sobrevivência a um presente hostil.

Nota: o roteirista Ben Maddow não foi creditado, pois seu nome está na lista negra de Hollywood, consequência direta do macarthismo. Por outro lado, Philip Yordan muitas vezes assinava no lugar de Maddow e de outros profissionais que se encontravam nesta mesma situação, sendo até hoje suas reais contribuições aos roteiros a ele creditados motivo de muitas controversas. 

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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