São Pixinguinha – Parte 2

Acabou demorando mais do que o esperado, mas aqui está o segunda parte do meu artigo sobre Pixinguinha. Se não leu a primeira, leia aqui. Aperte o play e boa viagem!

Pixinguinha by Diego Cavalcanti on Grooveshark

A dupla com Benedito Lacerda

No ano de 1940 começa uma fase de grande dificuldade na vida e na carreira de Pixinguinha. Primeiro ele sofreu duas grandes perdas: em maio morreu seu amigo de longa data, o trompetista Bonfiglio de Oliveira (autor dos choros “O bom filho à casa torna” e “Flamengo”) e em junho morreu sua mãe, Raimunda Viana. Os trabalhos como arranjador já estavam mais escassos devido ao surgimento de outros maestros que arranjavam à moda das big bands americanas, de estética bem diferente da escrita de Pixinguinha: o estilo do mestre resistia gentilmente aos modismos. Além disso, mergulhado no alcoolismo (segundo ele próprio, chegava a tomar uma garrafa de cachaça por dia!), acabou perdendo seu emprego na Rádio Mayrink Veiga, e os consequentes percalços financeiros o fizeram atrasar as prestações da casa que estava comprando. Como se não bastasse, abandonou a flauta e passou a tocar apenas o saxofone, que já conhecia desde a viagem dos Batutas à Paris. Não há uma explicação definitiva para o abandono da flauta, uma vez que Pixinguinha nunca falou nada sobre isso; as versões mais difundidas são a de que teria perdido o controle pleno das mãos com os tremores causados pelo alcoolismo, ou que a embocadura para a flauta teria sido seriamente prejudicada por problemas dentários. O fato é que Pixinguinha não tocava mais flauta, estava sem trabalho, refém do alcoolismo, e prestes a perder a casa onde morava com a esposa, Béti, e o filho adotivo, Alfredinho. Tempos difíceis… Mas a tempestade acabou indo embora, através de uma parceria que até hoje gera alguma controvérsia em relação à ética.

Pixinguinha trocou a flauta pelo sax e continuou genial.
Pixinguinha trocou a flauta pelo sax e continuou genial.

O grande flautista Benedito Lacerda, líder do mais importante grupo de Choro de sua época, propôs uma parceria que tirou Pixinguinha do ostracismo artístico e do buraco financeiro. O trato era o seguinte: os dois gravariam, em dupla, 25 discos pela RCA Victor e cada música teria também a partitura lançada pela editora de música Vitale, com a condição de que Pixinguinha tocaria apenas saxofone e de que em todas as músicas de sua autoria gravadas pela dupla, constaria, dali em diante, também a autoria de Benedito Lacerda. Muita gente diz até hoje que, dados os termos do acordo, Benedito teria se aproveitado de Pixinguinha, que foi mercenário, que agiu de má-fé, etc., etc., etc. Bem, duas coisas podemos afirmar: primeiro, Pixinguinha voltou a trabalhar e quitou devidamente as prestações de sua casa; segundo, a música brasileira teve um de seus mais valiosos e relevantes episódios.

Dos 25 discos previstos acabaram saindo 17, lançados esporadicamente entre 1946 e 1951. Nas 34 músicas gravadas a dupla de flauta e saxofone tenor dá um espetáculo de interpretação e virtuosismo em clássicos do repertório do Choro. Benedito Lacerda executava na flauta a maioria dos solos, enquanto Pixinguinha realizava no sax o contraponto, melodia de caráter secundário mas em constante atividade, dialogando com o solista e preenchendo os espaços vazios da música. Sem dúvida Pixinguinha se inspirou nas gravações que fizera muitos anos antes, na década de 1910, com o grupo Choro Carioca, onde ele, ainda garoto, tocava os solos na flauta e seu professor Irineu de Almeida, os contrapontos no oficleide. O mais curioso é que a dupla Benedito e Pixinguinha desperta interesse até hoje muito mais pelos contrapontos do saxofone do que pelos solos de flauta. De coadjuvante a protagonista, o sax de Pixinguinha desenvolveu e fixou na linguagem do Choro o belíssimo recurso do contraponto, que na música erudita encontra em Bach seu maior expoente. Quando a dupla se desfez, o contraponto no Choro foi levado adiante sobretudo pelos violonistas de sete cordas, que têm como “pai” o genial Dino Sete Cordas; Dino traduziu para seu instrumento tudo que Pixinguinha fez no sax, criando uma escola violonística que influencia até hoje o trabalho de vários músicos, inclusive deste que agora vos escreve.

Um a Zero, composto por Pixinguinha em 1919, ficou na gaveta até 1946, quando foi gravado em dupla com Benedito Lacerda e recebeu coautoria deste (trato é trato!). Repare na atividade constante da flauta (mais aguda, em primeiro plano) e do sax. As duas linhas melódicas estão sempre dialogando, ainda que cada uma conserve sua identidade e independência: isso é o quê chamamos contraponto.

Os últimos anos

A meu ver a dupla com Benedito Lacerda foi a último ponto de inflexão que o gênio de Pixinguinha colocou na linha evolutiva da música brasileira; não que depois disso ele tenha parado, mas seu trabalho foi seguindo de forma, digamos assim, menos revolucionária, mais mansa, me parece. Em seus últimos vinte anos, a carreira e a vida do mestre foi paulatinamente se aquietando, como que se preparando para partir, e dando espaço à outros nomes na continuidade da história de nossa música: Tom Jobim e a Bossa-Nova, Chico Buarque e a geração dos festivais, e daí em diante. Além disso sua saúde começou a dar alguns sinais do desgaste que a vida boêmia proporciona.

“… à benção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor.” Vinícius de Moraes
“… à benção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor.” Vinícius de Moraes

 

À medida em que foi adentrando a terceira idade as homenagens à Pixinguinha foram se multiplicando, e sua figura parecia evocar uma aura de beatitude, daí a alcunha São Pixinguinha, o primeiro “santo” homenageado no emocionado Samba da Benção de Vinícius de Moraes: “… à benção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor.” Em 1956, pouco depois de completar 59 anos, foi homenageado pelo prefeitura do Rio, e a rua onde morava no bairro de Ramos recebeu seu nome, “Rua Pixinguinha”. Alguns anos depois, em 1963, o bar Gouveia, na Travessa do Ouvidor no centro do Rio, o homenageou com uma placa e uma cadeira cativa, pelos 10 anos de freguesia. Nesta charmosa travessa carioca, existe hoje uma estátua de Pixinguinha, em frente ao Gouveia. No mesmo ano Pixinguinha fica 50 dias internado por conta de seu primeiro enfarto; durante o período acabo compondo, entre outras, “Chorando baixinho”, com letra de Hermínio Bello de Carvalho, seu último grande sucesso. Em 1968 é realizado um grande concerto no Teatro Municipal em comemoração aos seus 70 anos, onde Pixinguinha trocou o palco pelo camarote principal, e assistiu sua obra pela interpretação de vários artistas, com destaque para Radamés Gnatalli e Jacob do Bandolim. Na época ainda existia uma confusão sobre sua data de nascimento: pensava-se ser 1898; apenas mais tarde foi constatado que a data correta é 1897, através da descoberta de sua certidão de batismo no arquivo da Igreja de Santana; seus 70 anos na verdade foram comemorados com um ano de atraso!

Estátua de Pixinguinha na Travessa do Ouvidor, Rio de Janeiro, em frente ao bar do qual era freguês.
Estátua de Pixinguinha na Travessa do Ouvidor, Rio de Janeiro, em frente ao bar do qual era freguês.

Em 1972 sua esposa Béti é internada com problemas de saúde. Abaladíssimo, o coração de Pixinguinha acaba sentindo o baque e ele também precisa ser internado. Preocupado em não prejudicar o humor e o tratamento da mulher, Pixinguinha não a deixa saber de seu estado de saúde, e num gesto que demonstrava a grandeza de sua alma, ele vestia seu terno e seu chapéu, como se estivesse saindo de casa e se dirigia ao quarto de Béti nos horários de visita, para depois voltar ao próprio leito hospitalar. Béti acabou falecendo cerca de um mês depois, e Pixinguinha não demoraria também a partir para outros planos e reencontrá-la. Num sábado de carnaval, 17 de fevereiro de 1973, Pixinguinha foi com o filho Alfredinho para a igreja Nossa Senhora da Paz em Ipanema, onde batizaria uma criança, filho de um amigo. Antes que pudesse assinar a certidão de batismo, sofreu o segundo enfarto e partiu. Do lado de fora desabou um temporal e a Banda de Ipanema, tradicional Bloco de Carnaval do Rio, que desfilava naquele momento, se desfez ao adentrar a rua da igreja e receber a notícia da morte.

 

O Dia Nacional do Choro e a importância da obra de Pixinguinha

Outro dia assisti à uma entrevista de Marília Gabriela com Tom Jobim, em 1987. Em dado momento Marília diz, “… a identidade, mesmo, do músico brasileiro, começa a partir da Bossa-Nova, não é? Porque que surgiu a Bossa-Nova?” Tom deu uma profunda tragada no charuto, e do seu jeito meio elegante meio displicente de falar, foi se esquivando da pergunta um tanto boba, comentando que havia uma efervescência que acabou culminando na Bossa-Nova, e foi logo tratando de corrigir um engano da entrevistadora: “… eu acho que antes da Bossa-Nova o Brasil já tinha grandes músicos, né? A começar pelo nosso incrível Villa-Lobos, e também Pixinguinha, Ary Barroso, Custódio Mesquita, Zequinha de Abreu, tantos músicos notáveis, né?”. Felizmente, enganos como este são cada vez mais raros, e ainda que haja muito a se conquistar em termos de formação de público, o Choro vem desde o começo do século XXI numa fase muito bonita de valorização, com muitos lançamentos, sobretudo na bibliografia didática voltada ao gênero. Parte significante dessa valorização pode ser creditada ao decreto em 2000 do Dia Nacional de Choro, no dia natalício de seu maior mestre. A comemoração foi ideia de Hamilton de Holanda e de seus alunos da Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello, em Brasília, e transformada em projeto de lei pelo falecido deputado Artur da Távola.

A foto emblemática de Walter Firmo é a mais famosa imagem de Pixinguinha.
A foto emblemática de Walter Firmo é a mais famosa imagem de Pixinguinha.

O Choro foi a linguagem que forjou boa parte dos instrumentistas e muitos compositores populares do final do século XIX, como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, e outros, época em que se estruturaram os alicerces da música brasileira, sua instrumentação, seus caminhos harmônicos e melódicos. E dentro do Choro, Pixinguinha é, sem dúvida, o maior nome. Sua maior contribuição é ter unido definitivamente a influência europeia e a influência africana que já delineavam os caminhos ainda recentes de nossa música. Pixinguinha levou o pandeiro à sala de visitas e a flauta ao terreiro. Além disso foi virtuose na flauta e no saxofone, e seu trabalho como compositor e arranjador é até hoje uma referência, uma fonte onde todos bebem. Sua importância é como a de outros gênios: extrapola as definições de cada gênero musical. Villa-Lobos extrapola o Erudito, Luiz Gonzaga extrapola o Baião, Cartola extrapola o Samba, Tom Jobim extrapola a Bossa-Nova e Pixinguinha extrapola o Choro.

Com um pouco atenção e sensibilidade é possível ouvir o sopro e sentir a presença serena de Pixinguinha em tudo que é música brasileira. Permaneça atento e ouvirá.

À benção, São Pixinguinha!

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Diego Cavalcanti
Diego Cavalcanti
Músico, violonista, guitarrista, compositor, arranjador e professor. Gosta de música brasileira, especialmente Choro e Samba. Acredita que escrever na internet vai levar ao mundo a genialidade de sua obra, ainda restrita ao seu quarto, meia-dúzia de amigos compassivos e dois ou três alunos bajuladores.

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