Nos três filmes de Jerry Lewis citados nesse texto, a recusa ao naturalismo, a ruptura com verossimilhança e com as regras da “boa narrativa” não são só uma forma de causar o riso, mas uma recusa em seguir uma lei oculta que parece se impor aos filmes de comédia: a de que para ser “legítimo” como obra, ele deve reforçar certos “valores”, muitas vezes relacionados aos “bons e velhos costumes” ou as “boas instituições”. Isso se pode ver muito claramente em comédias convencionais atuais — não que isso as torne menos agradáveis ou engraçadas. Há sempre uma exaltação na conclusão desse tipo de filme ao casamento e a família convencional, mas sem ambiguidade, sem contradição — uma artificialidade na ideia, e não na forma. Nesse tipo de filme, não há uma visão “realista” das relações humanas, mas sua idealização. Por outro lado, há comédias que buscam outro caminho, alcançando uma ambiguidade ou incerteza, por exemplo, o amor em comédias como “Se Meu Apartamento Falasse” (1960) de Billy Wilder ou “O Professor Aloprado” (1963) do próprio Jerry Lewis; ou noção de família (nem sempre biológica) em “O Garoto” (1921) de Chaplin ou em “O Terror das Mulheres” (1961), também de Jerry; fogem do convencional.
Jerry parece não querer ceder a necessidade de idealização, ele recusa terminar o seu filme com o sentimentalismo, mas sim com absurdo, o nonsense, o cômico.
Nos filmes dos três diretores citados há algum grau de ironia e malícia, assim como momentos de “distanciamento” em relação a narrativa. No entanto, enquanto em Wilder e Chaplin (excluindo os seus curtas) essas características são mais sutis e comedidos, tentando preservar alguma ilusão de realidade em seus filmes; Jerry vai muito mais longe, invertendo completamente o caminho de um certo tipo de comédia convencional — que busca pela não “artificialidade” do mundo/forma (o naturalismo e a narrativa clássica) uma ideal falso/artificial. Em “O professor Aloprado” como “O Terror das Mulheres”, ou ainda em “O Otário” (1964), o universo ficcional já de início se apresenta como falso: há o exagero em algumas atuações (geralmente na do próprio Jerry que contrasta com a dos outros atores), nas cores berrantes, nos cenários, nas roupas etc. Isso afasta totalmente o mundo dos filmes das regras do naturalismo e o aproximam do caos dos desenhos animados. Nos filmes do diretor, assim como nos cartoons, tudo é possível, já que tudo o que compõem a sua “realidade” se apresenta como artificial: mostrar um cenário como cenário, a quebra da quarta parede, o apego ao teatral etc.
São justamente esses mecanismos que permitiram Jerry Lewis se eximir de exaltar os “bons valores” em suas comédias, ao mesmo tempo que conseguiu a grande adesão do público (pelo menos até 1970, com a estreia de “Qual É o Caminho do Front?”). Porém isso teve um custo, ao abraçar a estética e a lógica caótica do desenho animado/mundo infantil, seus filmes não foram considerados artisticamente relevantes em seu país, sendo mais apreciado pela crítica europeia (que sina!) tendo um admirador em Godard, por exemplo.
Quando antes disse que em “Professor Aloprado” há uma visão realista do amor, quis dizer que no filme estão presente tanto o amor, quanto o desejo, estando ora associados, ora dissociados. Julius (Jerry Lewis) está apaixonado por Stella (Stella Stevens), porém ele é inseguro e passivo (assim como seu pai), não se sente atraente ou desejável, coisas que no mundo que o cerca parecem estar associadas aos músculos, ao físico e a dominação — não é por menos que, em muitos momentos, a altura e o físico dos personagens e dos figurantes são importantes para o sentido da cena.
Para inverter, a situação Julius — que mais que professor, é um cientista (louco) — cria uma fórmula que, assim como em “O Médico e o Monstro”, libera de dentro de si o seu lado “mal” (como o próprio Lewis o define), assim nasce Buddy Love, em uma cena que remete muito aos filmes de terror. Entre os três cria-se um triângulo amoroso, que no final, coincidentemente será resolvido em um baile, algo muito associado à transição para a vida adulta.
Mas é na cena do beijo entre Stella e Jullius que Jerry se revela mais criativo e não convencional. Na tela aparece, no melhor estilo Looney Tunes, a frase “Isso não é tudo pessoal”. Corta para uma das aulas de Julius que é interrompida pela entrada inesperada de seus pais (a quem, em determinado momento do filme, a fórmula secreta foi confiada). Os dois vendem um tônico que permite qualquer um ser outra pessoa — o seu lado mal, só que livre de controle. Logo todos se amontoam querendo comprar um frasco. Isso com certeza já daria muito material para qualquer análise psicanalítica ou coisa do gênero, mas o filme não acaba aí. Stella puxa Julius preocupado para fora da sala, afinal, ele agora está oficialmente de licença e eles devem passar um momento a sós. Quando finalmente eles se viram para partir, vemos que Stella escondeu dois frascos. O filme, então, assinala que o lado “mal”, em doses homeopáticas, não é algo ruim. Fica claro que no contexto do filme — diferente da novela de Stevenson — o “mal” tem uma conotação bem específica e menos “maligna” ou “metafísica”.
Em “O Otário”, um comediante morre e sua staff decide criar um substituto. Obviamente o escolhido é alguém inepto e completamente inocente: Stanley Belt (Jerry Lewis), um mensageiro de hotel. Entre a equipe de assessoria, há Ellen (Ina Balin), que confia na capacidade do novo comediante. O filme segue com as tentativas frustradas desse grupo em fazer com que Stanley se torne um astro — de fato ele se torna famoso, mesmo sem sequer fazer uma apresentação. Mais para o fim do filme, ele é abandonado por toda sua equipe (infelizmente, Ellen não chega a tempo) em sua estreia televisiva. Apesar dos pesares, a apresentação é um sucesso. Depois disso, na cena final, Jerry parece se aproximar do convencionalismo, mas então ocorre a ruptura total.
No momento de reconciliação (que seria reconfortante para o público), Stanley cai da janela e supostamente morre, mas logo toda a ficção é revelada. Algo parecido acontece em “O Terror das Mulheres”, onde um discurso muito comovente é interrompido por algo surreal e completamente fora da lógica do filme. Nesses dois casos as relações humanas também são complicadas: há interesses e necessidades envolvidas, mas no fim, se revelam ou se criam laços emocionais legítimos. Mas Jerry parece não querer ceder a necessidade de idealização, ele se recusa a terminar o seu filme com o sentimentalismo, mas sim com absurdo, o nonsense, o cômico.
Talvez possa se pensar nessa persistência de Jerry em não se render totalmente ao emocional em seus filmes como uma forma de cinismo, mas também se possa interpretar essa insistência como um forma de não resumir seus filmes a uma mensagem, não se resumir a dizer algo importante (embora Jerry não se exima disso); mas para mostrar basicamente que um filme não é a vida e que a vida não é um filme. Assim, a realidade é algo muito mais complexo, ambíguo e imprevisível do que um filme que, por si só, já é complexo, ambíguo e imprevisível.