Você já teve a sensação de que alguém está vivendo a sua vida? De que em algum lugar, em um apartamento, em algum canto do mundo, tem alguém que poderia ser como você, ter suas aptidões, sua estranheza, seus sonhos, seus traumas, até traços como os seus, mas que – por alguma razão estúpida do destino – vive infinitamente melhor do que você jamais poderá viver. Que come melhor, que transa melhor, que fala melhor, que se dá melhor com seus pais, com seus filhos, em seus relacionamentos, em seu trabalho. Que é mais compreendida, realizada, valorizada. E enquanto você come sua comida infestada de agrotóxicos, enquanto você deita em sua cama dura e áspera, enquanto você transa casualmente com pessoas e pessoas que só sabem meter e não te perguntar nada, você só pensa que existe essa outra pessoa que faz – cada uma dessas coisas, cada minucioso detalhe – melhor do que você. E a sua vida começa a parecer, cada vez mais, uma versão fracassada, de baixo orçamento, da vida de alguém. E não importa o que você faça, não importa que pacote novo você assine, que podcast você escute, o quanto você se esforce no emprego, nos relacionamentos, você nunca parece chegar mais perto de onde você merecia estar. A cadeira sonhada na mesa do banquete dourado, da fartura, da bonança, o seu bilhete premiado já foi pego. Você ficou do lado de fora, na fila, ao lado de inúmeras e inúmeras pessoas medíocres e frustradas. Que procuram estupidamente uma oportunidade de mudar de lado, de ascender, mesmo sabendo que é como perseguir o final de um arco íris, algo que nunca se pode de fato alcançar. Aprisionades em uma progressão aritmética invencível. Onde sempre se deparam com alguém mais apte, mais brilhante, mais bonite, mais excepcional para tomar o seu lugar. E você fica, dia após dia, apenas mais cansada, rancorosa, mortificada.
Cada filme, cada comercial, cada influencer, parece injetar em você esse rancor, essa raiva colossal por todes que são funcionais e bem sucedides. Por todes que diferente de você não são obrigades a suportar o labor mortificante e cansativo das relações medíocres, dos empregos exploratórios, da violência vívida e histérica que você foi, desde pequena, submetida. E você, sua imagem, suas ideias, não podem nem competir, não se classificam nem pra segunda divisão. Uma rivalidade profunda cresce em você e cresce de modo que você nem mais consegue ocultar, fakear. Você não pode estar feliz por algo que pra você é impossível. Você não aguenta mais brindar por uma vida que lhe foi negada. Pelo amor que lhe foi impedido. Você quer gozar com outres, mas todes parecem que só gozam de você. E todo esse ódio, volta também contra você mesma. Por se sentir tão gozável, por se sentir tão inferior àquele mundo que você almeja. Por se sentir tão pouco merecedora do sucesso, do orgulho, do afeto. “Eles que se fodam” você queria gritar. Mas a única pessoa se fodendo é você.
Você até tenta jogar o jogo deles. Re-harmoniza os poucos móveis do seu pequeno e fétido apartamento de acordo com as regras deles para “boas vibrações”, faz meditações guiadas com seus gurus, compra cremes e produtos pra mudar seu rosto, seu cabelo, se enche de dívidas para comer o que elus comem, beber o que elus bebem. Até que você desiste disso também. A impotência e a insatisfação parecem que vão lhe comer viva. Te mantém acordada durante a noite. Sabotam todas as suas aspirações, toda sua esperança. No dia em que você pensa em desistir, em aceitar que talvez seja melhor ser só mais uma figurante no mundo, nesse momento – como uma ironia do destino – você a encontra.
Nesse dia, você está sentada no ponto de ônibus, uma chuva torrencial cai sobre sua cabeça, encharca sua roupa, sua mochila, molha seu velho celular, seus documentos. O ônibus não passa há duas horas e a chuva parece apenas apertar. Você decide caminhar até seu apartamento, atravessando poças, antes que elas se tornem ruas alagadas. Você desbrava o percurso até chegar no seu bairro e, no entanto, não está mais chovendo e todos os prédios estão mudados. Você segue até onde seria sua casa e se depara com um portão novo e luxuoso no lugar das antigas grades, velhas e enferrujadas. Um porteiro – que você nunca viu em toda sua vida – lhe recebe sorridente segurando a porta do elevador. Você sobe, naquele elevador estranhamente bonito e perfumado, até o seu andar. No corredor, flores ornam com um papel de parede novo. Você pára diante da sua porta, agora lustrosa e nova. Você tenta encaixar sua chave, mas a porta não abre. Então você ouve passos e pela primeira vez, você a vê.
Ela abre a porta e fica diante de você incrédula. Seus olhos arregalados de horror, suas mãos tremem, você sente que ela irá gritar e por algum motivo estranho, você tem o impulso violento de tapar sua boca e entrar no apartamento. Vocês cambaleiam pra dentro, a porta se fecha. Você está grudada nela e quando a solta, ali tão de pertinho, você percebe que ela é exatamente igual a você. Não igual como são alguns parentes, ou irmãs gêmeas idênticas, mas igual como uma espécie de clone, uma espécie de duplo aprimorado de você. Você a olha por um tempo. É como olhar no fundo de um estranho espelho. Um espelho desses de distorção. Mas você é que é o reflexo tortuoso e disforme dela, a monstra, sua sombra. A pele dela é macia e lisa, sem nenhuma marca ou cicatriz. Os dentes dela são alinhados e radiantemente brancos. Os olhos dela brilham misteriosos, apesar do espanto profundo. Os cabelos dela são armados e bem cuidados, como uma juba poderosa de rainha, que faz tudo em você parecer defeituoso, ralo e sem vida. Ela não consegue olhar diretamente nos seus olhos, de tamanho horror. Logo começa a soluçar: “Eu sabia que esse dia viria, eu sabia”, ela repete baixinho. Sua voz é limpa e encorpada, mesmo que nitidamente embargada. Mas ela não consegue lhe encarar, e isso lhe deixa repugnada. Queria ao menos que ela tivesse um pouco mais de coragem, cortesia. Não deveria ser tão doloroso assim estar diante de alguém como você. “Por favor não me mate”, ela pede. “Eu não vou”, você responde, mas sua voz parece ainda mais fraca e estridente. Você observa o cômodo, todos os móveis que parecem tanto com os seus antigos móveis, porém reformados com cores extravagantes. Vê roupas e roupas que você sempre sonhou em ter, caídas sobre poltronas, quase como num descaso, em fútil abundância. As paredes da sala são cheias de espelhos grandes e dourados acompanhados de quadros modernos, ora abstratos, ora de dançarinas de ballet. Sua mesma maldita fixação com ballet. Um deles, o maior quadro, que ocupa o centro da sala, tem uma dançarina que parece muito com você, ou melhor, com ela. É como se o sonho que você teve, tantas e tantas vezes, estivesse ganhando vida diante dos seus olhos. “Eu posso lhe oferecer alguma coisa? Um chá?” ela diz, ainda assustada, ofertando uma trégua. Você faz que não com a cabeça, fazendo um esforço para não gerar mais alarde, pra ser menos ameaçadora. Ainda que saiba que apenas existir ali, diante dela, é motivo suficiente para ambas enlouquecerem. Vocês se sentam, tensas e vigilantes, no macio sofá de couro que ocupa o centro da sala, abaixo do grande quadro dela, que olhando dali parece lhe encarar. Ela puxa uma pequena garrafa, dessas de whisky que cabem numa pequena bolsa, e bebe nervosa vários goles, sem parar. Do sofá, você pode ver o longo corredor que leva a inúmeras outras portas que nunca sequer existiam no seu verdadeiro apartamento. Ela percebe seu olhar e fica envergonhada. Depois de um longo e embaraçoso silêncio, ela lhe pergunta – no que parece ser o tom mais firme que ela é capaz de conseguir: “O que você quer?”
Um milhão de respostas surgem em sua cabeça. Primeiro você sente a raiva. Quer ser violenta mesmo, espancá-la, humilhá-la, quebrar os quadros, os espelhos, os móveis, rasgar suas roupas. Quer poder arrancá-la daquela vida, pedir sua fatia daquele mundo que você tanto desejou. Despejar sobre ela toda a merda que você já viu e viveu, toda a dor e angústia que deixou marcas terríveis na sua pele, na sua alma. Explicar cada ferida, cada ressentimento, cada trauma. Perguntar quem deu o direito de que ela pudesse viver assim no seu lugar? Vocês são iguais, merda! Mas você só consegue responder uma coisa. Uma única coisa. Pra sua surpresa. Pro seu profundo espanto. Tudo se silencia em sua cabeça, e a única coisa que pode fazer, diante daquela imagem tão semelhante a você, é desejá-la. “Você”, você responde, “Eu quero você”.
Um novo fogo arde dentro de você. Você precisa devorá-la. Você abre um estranho sorriso. Pela primeira vez, ela olha no fundo dos seus olhos. Suas retinas, idênticas, refletindo uma a outra. Você percebe que ela começa a respirar mais devagar, com a boca aberta. Sua boca nunca foi tão carnuda e bonita. Ela passa os olhos pelo seu corpo, por sua boca, seu pescoço, seus peitos, sua barriga, suas mãos. Ela toca uma cicatriz em seu braço, franzindo a testa tristemente, como se pudesse sentir em si sua ferida. “Não tenha pena de mim, não é para isso que eu estou aqui”, você diz. Ela sorri pra você, você toca seu rosto macio com suas mãos ásperas, acariciando suas bochechas. Ela desce do sofá, se ajoelha. Tira os sapatos molhados que você usa, seca seus pés no próprio vestido, sujando-o, e os beija delicadamente. Sua boca é quente contra seu pé gelado. Você fecha os olhos para sentir aquele carinho tão delicado. Ela massageia sua sola, seus dedos, seu calcanhar, intercalando com beijos quentes e aveludados. Ela faz que vai começar a subir por sua perna e você a interrompe: “Eu me sinto suja”, você diz, “Eu peguei muita chuva no caminho até aqui”. “Tudo bem, vem comigo”, ela responde. Segura sua mão e te leva pelo longo corredor cheio de inúmeras portas. Você passa por diversos retratos, vê seus pais – estranhamente sorridentes e abraçados um no outro, vê sua infância – cercada de brinquedos bonitos e professoras de ballet; fotos e mais fotos familiares e, ao mesmo tempo, assustadoramente agradáveis e perfeitas. Param diante de uma porta azul turquesa que dá em um enorme banheiro de mármore – como que saído de uma revista – com uma grande banheira e uma enorme parede de espelhos. A água quente e límpida jorra pra dentro da banheira, enchendo o banheiro de uma névoa cheirosa e doce. Ela tem dificuldades de abrir o vestido justo que usa e pede sua ajuda. Você desliza o zíper por suas costas, podendo passar os dedos por sua coluna até tocar sua bunda. Ela rapidamente deixa o vestido pender no chão, seu corpo nu se revela diante de você. Por baixo da roupa, os mesmos peitos ligeiramente tortos, a mesma barriga, a mesma buceta com os mesmos pelos, as mesmíssimas coxas. Você tira rapidamente seu macacão, ficando nua também. Ela percebe a semelhança, deslumbrada. Um novo encantamento, menos perigoso, mais prazeroso, cresce em vocês. Como uma paixão narcísica esquisita. Vocês duas se olham no espelho, são uma espécie de par. Há em vocês um tipo de pertencimento.
Ela pede que você entre na banheira primeiro, a água quente toca seu corpo, aquecendo cada pedacinho de você. Você poderia ficar apenas ali, submersa, relaxada. Ela começa com uma esponja, esfregando delicadamente suas costas. Depois, com suas mãos macias, acaricia seu cabelo, massageando seu couro cabeludo. Uma espuma cheirosa escorre por seu pescoço até seus peitos. Então ela entra na banheira, sentando-se atrás de você. Encaixada em você. Você pode apoiar suas costas contra o corpo dela, sentir os bicos duros dela roçando em você. Sentir a buceta dela contra sua bunda. Relaxar seu peso nela. Por trás, ela começa descendo a mão até o seu peito. Tocando-o, segurando seu mamilo entre os dedos, apertando-o devagar. E depois com um pouco mais de força. Tudo fica cada vez mais quente, seu mamilo endurece. A outra mão dela acaricia delicada suas costas, passa pra sua barriga, a lateral da sua bunda, o interior de sua coxa, desce até sua buceta. Seus dedos tem um toque aveludado. Ela primeiro sente toda sua buceta com a palma de sua mão. Depois, dedilha devagar a entrada do canal, seus lábios, até subir pro seu clitóris. Você sente a língua dela na sua nuca, no seu pescoço, subindo pro seu ouvido. Sua boca abre devagar, um gemido tímido escapa de sua garganta. Ela fica um bom tempo no seu clitóris, tocando e tocando você de um jeito que até então apenas você sabia se tocar. Você se treme e se agita, derrubando água pra fora da banheira. Roçando sua bunda nela. Ela começa a te dedar com a outra mão. A mão no seu clitóris agora fica mais intensa, parece vibrar debaixo da água. Você vai escorregando do peito dela, seu corpo mais e mais pra dentro da água. Pode vê-la agora, quase acima de você, molhada, os cabelos escorridos, não sabe se suando ou apenas gotejando água da banheira. “Se ela quiser pode me afogar”, você pensa por terrível segundo. E se ergue. Quer encará-la de frente.
Você sobe em cima dela na banheira. Agora seu corpo está fora, sentindo o vento frio, enquanto o dela está submerso na água quente. Você chupa os seios dela, ávida, sedenta. Sentindo o mamilo molhado dela contra sua língua. Sentindo seus peitos contra seu rosto. Ela geme, geme o seu gemido. Você então mete seus dedos na buceta dela. Ali embaixo, vocês são iguaizinhas, você pode reconhecê-la como se fosse sua. Ela lhe puxa pra mais perto e beija violentamente sua boca. As línguas se batem. Você quase sufoca nela. Ela se afasta, você dá um chupão em seu pescoço deixando uma enorme marca. Ela arranha suas costas. Você a ergue, sentando-a na borda da banheira. Segura nos seus joelhos e abre as pernas dela pra você. Estão encharcadas, as duas. Você se abaixa na banheira para encaixar o seu rosto entre as pernas dela. A buceta, linda, aberta diante da sua boca. Começa a chupar sua xota quente e úmida, sente sua língua no grelo dela, seus dedos a penetram. Chupa como você sempre quis que fizessem com você. Como ela sempre quis ser chupada, amada, devorada. Você sabe. Pode sentir. Vocês querem a mesma coisa. São parte da mesma coisa, do mesmo sonho. Então mete e lambe seu clitóris, cada vez mais pulsante. Mete acariciando o interior dela, tocando seu ponto g. Ela grita de prazer. E é um pouco como se você gritasse também. Você se levanta outra vez, continuando apenas a com a mão metida nela. Ela se agarra no seu corpo, trêmula, gemendo incessantemente. Principia a dedar você, enquanto você a deda. Suas bucetas quase roçando uma na outra, quase encaixadas de frente uma pra outra. Ela te deda e toca seu grelo, você a dedando e tocando o dela. Agora ambas em pé na banheira. Sentindo o calor do próprio corpo, da própria pele. Gemem em uníssono. O mesmo som, o mesmo rosto, o mesmo prazer. Uma o eco da outra. Não são mais uma sombra, ou um clone, são metades da mesma coisa, do mesmo jarro, da mesma obra. O orgasmo arrebata as duas, num último e forte grito. Um gozo em dobro. Um alívio duplicado.
Ofegante, agora começando a sentir frio, você volta pra dentro da banheira. Ela se encaixa novamente por trás de você, retomando a acariciar seus cabelos. Você apoia a cabeça em seu peito e se permite fechar os olhos. Nunca nada foi tão doce, tão delicioso, tão íntimo. Você está quase adormecendo nos carinhos dela quando sente como se escorregasse pro fundo da banheira, batendo a cabeça na borda. Você abre os olhos, o banheiro está coberto de um vapor espesso, que dificulta sua visão. Você se levanta, puxa uma toalha. Ouve um barulho na porta. Enrola-se na toalha e cruza o corredor até a sala. Nenhum sinal dela. O grande quadro da bailarina lhe encara. O barulho fica mais alto. Algo está estranho. Você se olha no espelho, você está exatamente igual a ela. Seu cabelo mais brilhoso, sua pele mais macia, seus dentes mais brancos. Ouve batidas violentas na porta. Você abre. Vê a mulher de macacão, encharcada de chuva, os olhos cheios de raiva. É você, igual a você, só que um tanto distorcida, assustadora. Você quer gritar horrorizada, ela tapa sua boca com a mão e força a entrada no apartamento. Você quer se explicar e percebe que ela tem uma tesoura em uma das mãos. “Bem, isso é novo”, você pensa.
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Ilustradora:
Rayane Damasceno
rtístico e agora se envolvendo com o ramo da ilustração.