Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças

Ela sabia que estavam se apagando um do outro. Mas nunca imaginou que sua última transa com ele seria assim. O fenômeno do esquecimento começou fazia alguns meses, devagar, nos detalhes. Percebiam uma ou outra foto que não se recordavam de terem tirado, ou aquele livro – com uma enorme e romântica dedicatória – que nenhum dos dois se lembrava de ter escrito. Até mesmo começaram a ter dificuldade de lembrar o nome ou a autoria de um ou outro poema que gostavam muito. Nas primeiras vezes culpavam o tempo, o desgaste natural de suas mentes, cheias de preocupações corriqueiras. “Não era como esquecer o endereço de casa ou datas importantes”, pensavam. Parecia apenas um reflexo de um desgaste, um desgaste inevitável. Foi quando aquela pequena névoa começou a empoeirar tudo.

Desde então, quando brigavam por um acontecimento já era impossível encontrar um ponto comum, ou saber quem estava realmente certo. Nenhum dos dois era capaz de assumir que, simplesmente, não sabiam afirmar o que tinha acontecido exatamente naquela vez na casa dos seus pais, ou no outro dia na praia. Apesar de sentirem que era algo importante, algo como uma violência terrível que precisasse ser combatida, acabavam apenas com uma tristeza embaçada. De forma que só podiam tirar o corpo fora e inflamar argumentos arrogantes de que aquela culpa com toda certeza não era sua. Só se deram conta de que aquele embaraço nebuloso era algo preocupante quando ele confessou, constrangido, que vez ou outra, no meio da tarde, a olhava sentava na poltrona trabalhando em seu computador e não conseguia chamá-la de nenhuma forma carinhosa. Como se os doces apelidos que tiveram sumissem todos da sua boca. Ele ficava alguns minutos fitando-a, perplexo, pra acabar dizendo o seu nome inteiro de forma estupidamente formal e grosseira. Do pior, pra sua surpresa, ela confessou envergonhada que às vezes acordava de manhã e tinha por alguns segundos um pavor profundo de não saber com quem tinha dormido. Quando finalmente o reconhecia, sorrindo amigável entre as cobertas, duvidava se estava em sua casa ou na dele, como se não morassem juntos. Como se fosse alguém que ela acabou de conhecer e teve um caso ou algo do tipo. Procuraram médicos, terapeutas, acupunturistas, erveiros, pais de santo. Mas não conseguiam ter nenhuma resposta, ou não eram levados tão a sério. Nas poucas vezes que lhes receitavam algo, não surtia efeito.

A cada tentativa frustrada de procurar ajuda pareciam desbotar mais e mais as cores das paredes e das roupas de cama. Algo se perdia todos os dias. Sentiam-se caminhando mais e mais pra dentro do nevoeiro. Com o medo, cada vez maior, de um dia acordarem sem saber mais absolutamente nada e incapazes de lembrar de absolutamente nada sobre aquele estranho amor. Escreviam bilhetes pela casa, cartas com descrições de acontecimentos que ainda podiam lembrar. Algumas calorosas transas, tardes familiares, um filme importante que assistiram juntos, aquela vez que choraram muito abraçados no sofá, ou uma briga que julgavam com desfecho importante. Coisas de todo tipo. E, principalmente, com o avançar do tempo, começaram a escrever seus nomes, apelidos, recados como: “não chamar a polícia pelo homem em sua cama, é seu parceiro” ou “não se assustar com a mulher que volta do trabalho às seis da tarde, ela mora com você”. Até que a inconstância era tamanha que decidiram começar o movimento pra separação, cada vez mais próxima e necessária. Porém quando começavam a separar suas coisas eram incapazes de distinguir o que deveria ser de quem, ou o que era mesmo que compraram juntos. Acabavam discutindo por horas, certos de que a escrivaninha tinha vindo de seu antigo apartamento ou que determinado quadro era algo que tinha comprado numa feira antes de se conhecerem. Às vezes algum amigo ou familiar conseguia tirar a prova, mas em alguns casos – até mesmo pra quem estava fora – os dois eram quase indivisíveis. Costurados um no outro, para o mútuo infortúnio. No final, com ajuda de advogados, concordaram em fazer uma repartição igualitária de bens. Por mais patético que fossem seus patrimônios, por mais que se sentissem igualmente fracassados e roubados. Um fracasso que os fazia odiarem cada vez mais suas próprias cabeças pela incompetência de ter protegido aquele amor. Um amor que sentiam que deveria ter resistido, que deveria ser estimado. Volta e meia, os dois tinham lapsos de memória, como flashes de momentos juntos; uma noite rindo em algum bar ou dos seus corpos nus colados em baixo da coberta, trocando juras, querendo filhos, viagens, estupidamente felizes e indefesos. Diante dessa visões, ambos choravam copiosamente. Se prometiam proteger aquele vislumbre de felicidade e carinho, em vão, pois horas depois não sabiam mais porque estavam chorando ou porque se abraçavam tão fortemente, terminando por se acharem inconvenientes e esquisitos.

Um dia, exausta daquela maratona emocional, ela finalmente conseguiu uma casa de uma amiga pra ficar. E sabia muito bem que aquele movimento deveria ser o último movimento, já que a distância física provavelmente fosse selar a cruel sentença às poucas coisas que restavam entre os dois. Ele também sabia disso, mas estava deprimido demais pra tentar pedir que ela ficasse. Afinal, não tinham nenhuma resposta do porquê que viravam cada vez mais e mais desconhecidos. Quando ela levou as caixas pra perto da porta, ele teve a sensação de que seu rosto se embaçava, como se ficasse, a cada segundo, um pouco mais fora de foco. “Eu vou esquecer até o seu rosto” lhe disse, num último apelo. E ela beijou suas bochechas, sem entender porque mereciam tanta indiferença. Tentava se dizer que deviam ter se causado muito mal, ou talvez que tivessem algo tão genuíno que suas almas fossem incapazes de suportar. Mas os motivos não importavam. Cada segundo diante dos olhos do outro era algo parecido com se ver morrer lentamente. Como cavar uma sepultura pra si mesmo no jardim de alguém. Era melhor dar um passo pro vale do esquecimento total e acabar de vez com a tortura em que se encontravam. Ela saiu e ele ficou sentado de pijamas diante das coisas que deveriam ser dele, dos bilhetes que deveria jogar fora, do apego indevido por uma pessoa que, algum dia, soube que deveria amar. E adormeceu de cansaço ali mesmo, na poltrona. Cansado de lutar uma luta perdida contra seu cérebro, contra o inevitável.

Acordou, em torno das três da tarde do dia seguinte, com batidas fortes em sua porta. Assustado, sem nem entender como havia dormido tanto em uma poltrona tão desconfortável, perguntou quem era a pessoa que estava esmurrando a porta tão violentamente e se surpreendeu com a voz de uma mulher. Ela, do outro lado, quase aos berros pedia que ele abrisse a porta: “Você já me esqueceu? Não é possível que já tenha me esquecido, merda”. Quando ele abriu, ela o olhou incrédula. Não sabia se era com ele que ela estava falando. Não reconhecia nada, não podia ser aquele homem em pijamas ridículos. Logo, perguntou se ele tinha um colega de quarto e depois se envergonhou ao perceber que tinha esmurrado a porta de um estranho. Ele lhe ofereceu uma xícara de café que ela aceitou, tentando um gesto de cortesia pra reparar o terrível engano, e entraram no apartamento juntos – novamente e ao mesmo tempo pela primeira vez.

Os dois sentaram frente a frente na pequena mesa, a perna dela tocava a dele sem querer devido ao espaço apertado. Ele se excitava, a achou incrivelmente linda, mas ficou tímido demais pra lhe dizer. E ela lhe enchia de perguntas inconvenientes, se vivia sozinho, ou há quanto tempo estava solteiro, por que é que estava solteiro, num tom investigativo irritante. Inquisitório. Ele quis dizer que não era o homem que ela estava procurando, mas teve medo de afugentá-la. Em algum lugar, preferia sê-lo. Não queria que ela fosse embora. Então cedeu, se esforçando pra discorrer um pouco sobre sua vida. Depois de poucas palavras, teve o estranho desejo de falar sobre seus pais. O casamento frustrado da sua mãe, a casinha de paredes floridas que tinham na serra, a doença que obrigou seu pai a permanecer com ela, o fato de que nunca estavam satisfeitos com nenhuma namorada que apresentava. E ela riu agradecendo por não ser sua namorada. E ele riu também. Ela evitava lhe dizer porque tinha vindo até sua casa ou como tinha o endereço. Em algum momento, sem aviso prévio, ele segurou sua mão. Os dedos se entrelaçaram carinhosamente. Havia entre os dois uma infelicidade comum que parecia atraí-los, como um tipo de cumplicidade tristonha. Perceberam que não precisavam continuar entulhando o silêncio com historietas sobre seus passados. Que de nada lhes servia mais o passado ou todas as dores surradas que não lembravam mais há quanto tempo eram obrigados a carregar. O silêncio se instalou confortavelmente. Uma excitação familiar crescia nos dois. Um percebia no outro os primeiros sinais do tesão. As palmas suadas dele, a respiração com a boca entreaberta dela, como fagulhas brilhando no escuro, como um tipo novo e velho de esperança. Atentos e muito interessados em não perder o tom, nem por um segundo, daquela sedução tão detalhista, esperavam o primeiro impulso pra virar a mesa, quebrar as xícaras, estraçalhar todo e qualquer impedimento. Deixando a tensão beirar o insuportável, como uma provocação a si mesmos pra descobrir por quanto tempo permaneceriam apenas se desejando. Mas alguém devia dar o primeiro passo. Ela se debruçou sobre a mesa e o beijou.

O beijo começou muito delicado, os lábios abrindo e fechando, com medo de roubar totalmente o ar, com um pudor de iniciantes. Então entraram as línguas. Pelo toque de uma na outra, as mãos começaram a tomar coragem. Ela levantou a camisa dele, ele tocou o interior das coxas dela. Logo, a intimidade crescia, florescia, como se tudo que precisasse ser feito fosse simplesmente regá-la. As roupas foram abandonadas sem nenhum constrangimento. Ela se deitou na cama dele como se fosse em algum lugar (ainda) sua. Ele subiu sobre ela. Os dois sorriam, uma alegria travessa marejava os seus olhos. Espiavam a nudez do outro maravilhados. Como que arrebatados por um deslumbramento apaixonante. Quando ele começou a chupar o bico do seu peito, ela teve a impressão de que ao olhá-lo, ali tão próximo dela, ela podia ver o tempo passar por ele. Como se pudesse, por algum motivo fantástico, ver o brilho jovem nos seus olhinhos, que procuravam os dela vez ou outra tentando entender se estava no caminho certo, cheio de inocência. Assim como, na direção contrária, podia vislumbrar os anos passando por ele enquanto ela colocava as mãos em seus cabelos. Podia sentir sua barba crescendo fazendo cócegas em sua pele, os cabelos ficando grisalhos entre os seus dedos, marcas de idade e maturidade em sua testa. Precisou se afastar, por um segundo, pra tentar entender o que estava acontecendo. Mas ele estava de volta, como quando o viu abrir a porta: apenas o homem encantador dos pijamas ridículos. E sem entender, ela deixou aquela fantasia molhá-la ainda mais. Tinha a sorte de poder ter uma vida com alguém em uma única tarde, pensou.

Então desceu as mãos por sua barriga até segurar seu pau duro entre suas palma suadas. As mãos dela eram quentes, úmidas e macias. Tocavam a cabeça devagar, o envolviam. Ele retribuía beijando-lhe a orelha, quando pensou escutar ela dizer que sentia sua falta, que sentia falta de ter ele dentro. Ele a olhou, confuso, seus lábios mal se mexiam, ela parecia apenas respirar com ele, gemer com ele e no entanto, era como se ele pudesse ouvir ela lhe dizer coisas. Sua voz dentro de sua cabeça lhe falava palavras tão lindas que seus olhos se enchiam de água. “Como ela sabia? Como ela podia saber lhe dizer coisas tão secretas, tão singulares? Como diabos podia ouvi-la sem que ela estivesse falando?”, pensava. Ele recuou para pegar uma camisinha, ela o abraçou por trás e beijou sua costas. Ele sentiu os peitos dela conta sua pele. Ele se lembrou.

Virou e puxou-a pra perto, abriu as pernas dela devagar. A buceta dela pulsava, úmida. Primeiro passou os dedos por seu clitóris e sussurrou: “Sou eu, eu não quero esquecê-la”. Sentiu as unhas dela cravarem em suas costas. “Eu sabia”, ela respondeu. Ele meteu nela. Estava tão molhada que quase conseguia sentir escorrer por suas pernas. As pernas dela abraçaram a sua cintura. Se reconheciam. Ele metia devagar, mais cada vez mais fundo. Quanto mais fundo, mais pareciam lembrar um do outro. Como se inundados por memórias preciosas. Os dois riam. O riso saía por entre os gemidos, contagiado pela corrente de lembranças doces, dos sonhos perdidos, da cumplicidade. Um novo tipo de esperança tomou os dois. Ele começou a meter mais rápido, ela se masturbava enquanto ele penetrava cada vez mais forte. Pareciam engolir um ao outro. Suavam. Os gemidos então venceram o riso. A vinda do orgasmo triunfou sobre a memória. Não pensavam em mais nada. Apenas podiam sentir o prazer impossível do agora. O gozo iminente, a pele arrepiada. Ele gozou num grito profundo, mas ela ainda não estava satisfeita. Precisava de mais dele, precisava permanecer naquela lucidez. Ele afundou sua boca nela. Chupou e chupou sua buceta. Os espasmos eram tantos que suas pernas tremiam freneticamente. Quase que eletrizadas. Ele amava como ela ficava antes de gozar. Quando o orgasmo tomou o corpo dela, tudo ficou calmo. Ouviam apenas a respiração ofegante um do outro. Ele deitou ao seu lado. As pernas se cruzando, os rostos colados, se olhando. Ia acontecer novamente, pressentiram. Quanto mais calmo tudo ficava, mas sentiam a presença do inevitável, a névoa retornando sobre suas cabeças, as memórias desbotando, seus rostos ficando turvos. “Eu aceito lhe perder um milhão de vezes”, ele disse baixinho. E se beijaram. Um beijo longo, sereno, molhado.

Os olhos se fecharam e quando tornaram a abrir, eram desconhecidos novamente. Ela se levantou e se vestiu apressada. O luto parecia a única coisa que tinham em comum. Os vestígios da felicidade soavam completamente indevidos. “Que perda de tempo ficar com alguém pra descobrir que ele é apenas um estranho”, ela lhe disse. “Que amor de merda você deve ter vivido”, ele respondeu. Ela desapareceu pela porta, ele desapareceu entre as cobertas, entregues ao esquecimento outra vez, à névoa.

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Ilustradora:

Camila Albuquerque

Camila Albuquerque é artista, mulher, LGBT e nordestina. Ela trabalha com diferentes linguagens, especialmente com a Pintura a Óleo e o Grafite, onde aborda temáticas do sagrado feminino, Erotismo e do Folclore. seu trabalho dá um enfoque cada vez maior na Brasilidade, na experiência pessoal que se liga ao universal, através de suas pinturas sob um novo olhar do prazer.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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