Ad Astra: Rumo às Estrelas

Per aspera ad astra ou a longa jornada interior no filme Ad Astra: Rumo às Estrelas de James Gray

Frequentemente, a ficção científica clássica se utiliza de mundos futurísticos, tecnologia avançada, viagens espaciais e existência de vida alienígena em função de uma análise sociopolítica de sua época. Este talvez não seja o caso de “Ad Astra: Em Busca das Estrelas” (2019), de James Gray — o que não impede ninguém de enxergar tal teor na obra. O filme de Gray me parece seguir um caminho muito mais introspectivo e conciso.

Aliás, essas foram as palavras que me vieram quando terminei de assistir ao longa. Assim que me surgiram na cabeça, causaram certa estranheza. Isso porque a primeira parece indicar um movimento para dentro, um buscar pelo âmago de algo, no caso do filme, pelo âmago de Roy — o personagem de Brad Pitt. A segunda palavra me remete a um sentido “para fora”, a uma estrutura que só pode ser apreendida se olhada a certa distância, a uma questão formal.

Tratando-se de interioridade, não poderia terminar este tópico sem falar do uso da voice-over. Aqui os pensamentos de Roy (ou seriam solilóquios?) são revelados a nós de forma imprecisa. Não há uma definição do seu “eu”, mas uma constante luta consigo mesmo. Assim, a voz interna do personagem não tem a função de narrar, mas de evidenciar uma tormenta escondida por trás de seu rosto impassível.

Mas por mais conflitante que essas duas palavras possam ser, na minha ideia do filme, elas se conectam em uma unidade, se concretizam em uma só obra de arte, estando refletidas em cada um dos seus elementos constitutivos. Essa contradição está contida na própria história narrada, a de um personagem que parte numa jornada ao mesmo tempo externa (espaço sideral) e interna (sua individualidade). Para que eu possa ser melhor compreendido, vou tentar focar em três elementos do longa: o protagonista, aspectos narrativos e aspectos formais.

Protagonista

Em um ótimo texto, Miguel Forlin aborda um pouco a trajetória externa e interna presente no filme, que para o autor parece lembrar tanto a de Telêmaco, quanto a de Ulisses. Mas há uma imagem no texto que chamou muito a minha atenção: a ideia do protagonista como um “homem em queda”, ou seja, um homem solitário e traumatizado. Porém, vou um pouco mais longe, assim como sua existência, Roy é um fantasma, um ser sem forma definida, que se arrasta entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o presente e o passado — o que torna o fato da história ser ambientada no futuro um tanto irônico. Mas essa semi-existência espectral não é suficiente para o personagem — nem nunca foi —, ele busca uma forma corpórea, ainda que não saiba disso.

O Reflexo de Roy se fragmenta
Roy e a indefinição do seu “eu”

Como foi notado por Forlin, em dado momento do filme há uma sobreposição da figura do personagem a de alguns capacetes. Mas, além dessa, há duas outras sobreposições que também merecem destaque. A primeira acontece quando, ao descobrir o ato monstruoso cometido por seu pai por meio de uma gravação, a tela onde o protagonista assiste ao vídeo é enquadrada de tal forma que os rostos de pai e filho se fundem em um só. Outra sobreposição interessante ocorre quando, em um estado de desesperança, Roy flutua no espaço. Neste momento seu rosto é eclipsado pelo reflexo da escuridão sem fim do universo.

Roy assiste a um vídeo de seu pai, os rostos dos dois se sobrepõem
O rosto de Roy e de seu pai são sobrepostos
Roy flua pelo espaço sideral
O rosto de Roy é completamente eclipsado pelo vazio do espaço

Dessa forma, o personagem de Brad Pitt é uma alma sem corpo e um corpo sem alma, em uma existência precária. Roy é um indivíduo em busca de si. Para ele, encontrar seu pai é encontrar um sentido para a sua condição. De certa forma, esta foi a mesma busca empreendida por seu progenitor. H. Clifford McBride e Roy McBride, pai e filho, são indivíduos em busca de um significado, de um propósito. Por esse motivo, a não existência de vida inteligente fora da Terra (o nada) é insuportável para o personagem de Tommy Lee Jones.

H. Clifford McBride acuado em um canto da nave
H. Clifford McBride se comporta muitas vezes como um animal acuado, contrastando em muito com a imagem heroica propagada pelo poder constituído

Outra possibilidade que me ocorreu é que, não aceitando a sua condição de simples mortal, Clifford queria para si o papel de herói ao molde clássico, onde seus grandes feitos o imortalizariam na História. Mas sua falha é não notar que ele, talvez, já tivesse atingido tudo o que almejava. Já Roy queria ser o herói que seu pai era — uma figura parte real, parte fabricada pelo poder oficial —, mas nota que alguns feitos sobre-humanos, como a própria palavra já diz, são impossíveis de serem realizados por seres humanos. O espaço é a fronteira final que talvez nunca seja ultrapassada.

Aspectos narrativos

Para um filme que conta uma jornada ou odisseia espacial, “Ad Astra” é relativamente curto. Seus 123 minutos são menores que os 149 minutos de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968) de Stanley Kubrick e os 167 minutos de “Solaris” (1972) de Andrei Tarkovsky. Sem dúvida, assim como nos filmes mencionados, no longa de Gray há uma sensação de lentidão — para além do teor existencial —, mas ao contrário destes dois últimos, a dilatação temporal se dá menos numa tentativa de reproduzir uma percepção do tempo (no espaço, o tempo “passa” mais devagar) na mise-en-scène do que num tempo subjetivo construído na montagem e no design de som.

Roy olha para cima e deixa cair um lágrima
O momento em que Roy encontra seu pai

Em “Ad Astra – Rumo às Estrelas” a nossa percepção de tempo está ligada a percepção de Roy, por isso há mais variação e dinamismo neste aspecto no filme de Gray. Mas a temporalidade aqui não diz respeito apenas a duração das cenas, mas também como o passado se faz presente em “Ad Astra”. Flashbacks, elementos diegéticos e não diegéticos, surgem e duram conforme o tempo interno do protagonista. Algumas situações do passado surgem de formas imprecisas e abruptas — assim como algumas memórias invadem nossa mente — desorientando o público. Há momentos em que fotos e “vídeos-memória” de Roy (ou seriam apenas mais flashbacks?) aparecem rapidamente na tela. A própria virtualização dos seus entes queridos, nas telas dos aparelhos futurísticos têm um caráter fantasmagórico e imaterial, apenas reforçando suas ausências.

Uma criança admira uma paisagem, a imagem parece fazer parte de um vídeo caseiro

Uma criança abraçada a uma mulher olha pela janela, , a imagem parece fazer parte de um vídeo caseiro

Uma foto antiga do personagem de Tommy Lee Jones

Foto do personagem de Tommy Lee Jones vestido como astronauta

A memória de Roy materializada em elementos não diegéticos

Tratando-se de interioridade não poderia terminar este tópico sem falar do uso da voice-over. Aqui os pensamentos de Roy (ou seriam solilóquios?) são revelados a nós de forma imprecisa. Não há uma definição do seu “eu”, mas uma constante luta consigo mesmo. Assim, a voz interna do personagem, não tem a função de narrar, mas de evidenciar uma tormenta escondida por trás de seu rosto impassível. Isso leva a um outro aspecto interessante.

Aspectos formais

Em “Ad Astra”, os planos fechados predominam. São poucos os planos mais abertos, que nos revelam o espaço ao redor com clareza. A câmera sempre está muito perto dos rostos dos personagens, nos detalhes, nos fragmentos. Os planos amplos são poucos e breves, quase sendo utilizados para a função pragmática de localização e orientação espacial. Já nos planos médios, muitas vezes as figuras humanas são parcialmente reveladas ou destacadas do ambiente por escolhas de enquadramento, movimentação de câmera e mise-en-scène.

Roy sozinho na nave espacial
A solidão em uma imagem

Obviamente, há exceções durante o filme. Mas estas opções formais são um tanto curiosas se pensarmos não só nos filmes de viagens espaciais já citados anteriormente. O que interessa a Gray não é a grandiosidade do universo, mas a do rosto humano. Dessa forma, “Ad Astra” está mais para “A Paixão de Joana d’Arc” de Dreyer ou “Luz de Inverno” de Bergman, do que “2001: Uma Odisseia no Espaço”.

Olhos tristes de Roy

Uma foto do personagem de Tommy Lee Jones em meio a outras fotos e documentos

Roy dentro de uma sala, anda de uma lado para o outro

Helen caminha em direção a câmera
A câmera frequentemente busca a proximidade ou a fragmentação

Outro ponto interessante é o uso do som, ou melhor, a sua quase ausência em situações específicas. O silêncio do espaço e a claustrofobia dos trajes espaciais são utilizados para intensificar a realidade interna de um personagem. Nesse sentido, há uma cena evidencia muito bem esse procedimento. Quando, na Lua, rumo a nave que o levará mais próximo de seu destino, Roy e sua escolta são atacadas por criminosos (um bang-bang em plena Lua?). Aqui ouvimos o que ele ouve, ou seja, não muita coisa. O foco dessa cena de ação não é o confronto, mas o controle e frieza com que o protagonista lida com as circunstâncias. Seu comportamento é algo entre instintivo e mecânico, agindo quase como um autômato. Esse artifício, que está presente em outros momentos do filme, apenas nos isola do mundo externo e nos lança cada vez mais no seu universo interno.

Um pequeno desvio antes do fim

Confesso que essa pequena secção me surgiu enquanto escrevia esse texto, por esse motivo as ideias que expressarei aqui funcionam quase como um parênteses. Uma parada antes do fim da jornada. Na segunda vez em que assisti a “Ad Astra”, uma personagem me deixou intrigado. Apesar de sua breve aparição, suas ações são fundamentais para o desenrolar da narrativa. Falo aqui de Helen, interpretada pela atriz Ruth Negga.

Roy está em um longo corredor

Helen surge no corredor e vai em direção a Roy

Plano mais fechado em Roy

Helen se vira na direção de onde ela veio. O corredor começa a ficar escuro.

Plano fechado em Roy, o corredor fica cada vez mais escuro.
Primeira vez em que Helen e Roy se encontram, há nesta cena um prenuncio de algo por vir

Desde sua primeira aparição, a personagem parece se destacar em meio ao elenco secundário. Assim como Roy, ela está imersa em sua atividade, em sua função na base em Marte. Helena funciona quase como um duplo e uma antítese de Roy. Assim como o protagonista, alguns de seus entes queridos estavam abordo no Projeto Lima — no caso, seus pais. Mas ao contrário dele, seus pais estão mortos, assassinados justamente por Clifford. Assim, os dois foram afetados pelo projeto e pelas escolhas de um só homem. Mas ao contrário do personagem de Brad Pitt, Helen conhece os fatos.

Helen e Roy caminha por um corredor
Helen leva Roy até os seus superiores

Essa relação estranha de simetria e dissonância entre os dois está muito clara na mise-en-scène. Primeiro por que Helen é uma das poucas personagens enquadradas de corpo inteiro ou em sua quase completude. A sequência em que ela revela toda a verdade para Roy é fundamental para entender esse ponto.

Plano médio de Helen

Plano americano de Helen

Close lateral de Helen

Close lateral de Helen

Close Brad Pitt

Close de Helen que encara o personagem de Brad Pitt

A mise-en-scène dessa cena se diferencia e muito do restante do filme, desde das cores, aos enquadramentos e até a relação entre os dois personagens

Acima, a cena em que Helen se aproxima de Roy com a intenção de revelar a ele toda a verdade. Em seguida, ela o leva para outra sala, um local mais sigiloso.

Helen e Roy caminham em um corredor escuro

Roy e Helen estão sentados um de frente para o outro

Helen encara Roy, que está fora de quadro

Helen se levanta

Helen caminha até um lugar

Plano detalhe de Helen pegando um tablet futurístico

Plano detalhe de Helen entregando o objeto para Roy

Close de Roy olhando surpreso para Helen

Plano americano de Helen que observa apreensiva

Obviamente esses são apenas alguns frames da cena, mas valem por revelar essa estranha simetria na decupagem e na mise-en-scène

Como dito anteriormente, Helen é fundamental para a jornada de Roy. Não só por lhe revelar quem de fato é seu pai, mas também por ter possibilitado que ele se infiltre dentro da nave que o levará até o Projeto Lima. Talvez, esse meu rápido momento de devaneio não sirva para grande coisa, já que parece ser apenas um acidente dentro de uma linha de pensamento que vinha construindo. Sem dúvida, essa sessão é uma pequena anomalia que, quem sabe, no futuro possa me ajudar a enxergar algo que ainda não fui capaz de ver neste longa de James Gray, algo ainda a ser desvendado.

Uma conclusão parcial

Brad Pitt sorri para alguém fora de quadro
O personagem de Brad Pitt após encontrar um sentido para sua vida

“Ad Astra – Em Busca das Estrelas” talvez possa decepcionar muitos, pelos mais diversos motivos. Mas trata-se de uma obra muito rica, que fala sobre a luta eterna que travamos com nós mesmos para descobrir quem somos e qual o propósito de nossa existência. Ao fim, o filme não nos responde a essa questão, mas nos indica que, talvez o que buscamos possa não estar onde poderíamos imaginar. Deixando claro que o “nós” aqui pode ser entendido tanto como uma ideia de um “coletivo” de indivíduos, quanto como uma generalidade: nós, a humanidade. Ou talvez este filme exista para nos lembrar que às vezes é importante nos deparáramos com o abismo, mas que não podemos nos deixar sermos tragados por ele. Ou ainda, talvez nada do que tenha dito faça sentido. Por qual motivo as coisas têm que ter um propósito, afinal?

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José Luiz
José Luiz
Roteirista wanna be, que acha que, já que o Terceiro Mundo (bom?) vai explodir, só resta avacalhar. Gosta de cinema e de dormir (que atualmente parece a única forma de sonhar). As vezes, faz referências que só têm graça para ele, mas é como dizem “ninguém é perfeito”.

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