PERFECT SENSE

Tudo começou num desconhecimento. Essa estranheza que podemos sentir em direção a alguém. Estranhes que se cruzam, o olhar que atravessa a tela e esbarra em outre lá do outro lado. Tanta coisa que já foi perdida nessa guerra, mas essa pequena fagulha esses dois estavam tentando não perder. É um novo tipo de tratado de proteção para além da fisiologia do corpo, a proteção dessa delicadeza, desse mistério que o corpo guarda pra ser dividido e que do nada se acende, do nada ataca por dentro. É precioso. É uma constatação de que no meio da perda, da indiferença, da violência, ainda pode aparecer essa pequena delicadeza, o corpo ainda pode querer existir assim manhoso para além de só funcionar bem, para além de garantir que os órgãos e a ordem se mantenham em vigor. É uma desordem possível, isso enche os olhos de uma esperança. A ordem do mundo agora não devia ser objeto de desejo, mas sim desejar o seu desmonte. Os dois estavam propondo um desmonte às avessas, um desmonte íntimo.

Se conheceram assim num acaso, o acaso que ainda pode vir a acontecer na virtualidade. Como quando entrávamos numa festa e éramos apresentades a alguém numa roda de amigues bêbados, ou como quando num show percebíamos alguém encarando nossas costas suadas, ou como quando sobre um balcão do bar alguém apoiava as mãos rentes às suas e comentava “hoje está agitado” e assim um estranho sorriso aparece. Um sorriso que poderia ser jogado à toa, mas também poderia vir pra despertar essa chama, esse chamado. Nem todo chamado é atendido, mas às vezes nos pegamos muito tempo sem de fato sentir esse chamado acontecendo. Os dois sentiram. De início é muito estranho e perigoso. Aprendemos a colocar alarmes e sirenes contra tudo que faz com que talvez não queiramos ser ou proteger apenas nós mesmes. É um novo (ou muito velho) hábito do Eu acima de tudo. Então, quando o chamado acontece, soam os alarmes, balançam bandeiras vermelhas de que tem tubarão no mar e é melhor não mergulhar. Mas o que é exatamente esse tubarão? E se o tubarão for na verdade a resposta de que o oceano ainda não está morto? De que ainda existem peixes em algum lugar no meio do plástico e da merda? Não importa tanto. O fato é que os dois decidiram ser os loucos banhistas que sentem que é preciso aceitar a oportunidade rara de pôr os pés na água. Decidiram se encontrar, na contramão de tudo ou no que poderiam chamar de um ato de juventude ingênua. Quarentenar com uma pessoa que você nunca conheceu. Isso é um tipo de teste de empatia. Mas fizeram planos e malas, entulhando o melhor dentro, pra poder se dar a conhecer. Com que roupa vamos quando queremos ficar nus? Era uma jogada arriscada de querer muito outro corpo na sua realidade, materialidade, estranheza e, também, na sua ameaça. Ir mesmo que seja um tubarão, mesmo que seja.

“Atualmente tudo é contágio e dor”, ele pensava enquanto girava a chave na porta. Uma última tentativa de desacreditar aquele impulso e de abraçar a desesperança que estava assolando o país, o apartamento, suas ideias. Esperar o pior, mesmo que o melhor não seja algo tão impossível. Já ela, enquanto esperava na soleira daquela casa sem passado, pediu muito que ele não fosse mais um motivo para chorar ou para perder assim o paladar pra vida outra vez. Porém, a verdade é que a entrada não foi assim o clichê cinematográfico que imaginaram. Era preciso muito álcool em tudo. Estavam habitados de um nervosismo, não sabiam como se sentar, nem como se portar tão bem. Ela queria tomar um banho, ele ficou parado ao lado da porta fechada sem saber o que fazer. Queria entrar, mas sentiu que não tinham essa intimidade e não queria atropelar as etapas, mesmo sem saber ao certo quais eram. Sempre pensamos que existem protocolos e etapas mesmo que isso não esteja de fato posto. Em algum lugar construímos essa ideia de que a primeira vez que metemos o olho num corpo nu tem que ser especial, sexual, cerimoniosa. Por isso essa incapacidade de abrir a porta e se deparar com o corpo relaxado embaixo do chuveiro. Talvez se ele abrisse, ela também, do outro lado, iria encolher a barriga, empinar a bunda e arrumar os cabelos. Melhor seria, talvez, se demorasse uns segundos para percebê-lo ou se ele entrasse quase sem querer para poder aí ter o conhecimento do corpo inesperado, frágil, tosco, espumoso. Se entra e ela está ensaboando os sovacos ou o cu, se apaixonaria ainda sim? O encantamento é essa aparência? Essa superfície? Ou ele se apaixonaria mais ainda? Não sabemos, pois ele não abriu. Ela também não o convidou para entrar, apesar de ter pensado muito nisso enquanto a espuma caía. Teve outras inseguranças maiores que duraram todo o banho até se enrolar na toalha para finalmente sair e dar de cara com ele parado no corredor numa ansiedade até sedutora. A vida toda fantasiamos com alguém que não podemos evitar. Isso é tantas vezes confundido com alguém que devemos depender. Mas são propostas diferentes, se atente. Ele não conseguiu evitar que todo seu corpo não ansiasse por ela. Ficar esperando ao lado da porta era, na verdade, não se esconder. Não tentar mascarar aquela urgência. A urgência é algo bonito de ver, de expor. O mundo está cheio de urgências, não devemos tentar escapar delas, mas sim reconhecê-las. Essa era uma delas que ele teve a delicadeza de não sufocar.

Parados então no corredor, o cabelo dela ainda pingando, a toalha como elemento intermediário, como o último véu antes do abismo e ele catatônico naquele doce flagra. Queria dizer algo inteligente, mas ela beijou sua boca, sem cantada, sem anúncio, no seco mesmo. Ou melhor, no molhado que ainda escorria de seus cabelos e encharcava a roupa dele. O beijo fez cair a toalha e a queda da toalha fez parar o beijo. Como continuar dando atenção apenas a boca quando tem todo um corpo? Um corpo tão imaginado e que de repente se revela em tamanho, carne, no seu milagre próprio. Todo seio, toda barriga, toda coxa, toda buceta é milagre. Ele quase cai de joelhos, mas sustenta um pouco mais o deslumbramento. Parados assim no corredor, a toalha molhando o chão, as roupas dele perdendo o sentido. Ele percebe que perderam o sentido e começa a tirar devagarinho. Ela mede meticulosamente o abismo do corpo dele, os pelos e tamanhos, a pele e suas marcas. Nada será como antes, essa ilusão deliciosa, e o pau milagroso se ergue numa virilidade silenciosa e densa. A primeira vez que um genital olha outro experimenta suas próprias sinapses, apaixonamentos e desconfianças. Nesse caso um apaixonamento de lábios, buracos e cabeças. As veias pulsam. O que será que sussurram os músculos mais baixos quando começa esse rebuliço? O que dizem às glândulas para que umedeçam tudo e babem assim fogosas? O importante é que a xota baba e o caralho enrijece, ganham os devidos nomes.

No entanto, apesar do frenesi, não há pressa. A graça é justamente o prolongamento e eles levam isso muito à sério. O risco do encontro é alto e por isso tudo merece seu próprio festejo. O cheiro na dobra do pescoço e na dobra das pernas, o gosto do suor nas costas, a textura da bunda e o caimento dos peitos se segurados com a palma da mão. Uma degustação, como se fosse possível degustar um mapa, um solo, provar de uma geografia. O outro é essa viagem, com cantos doces e salgados, ásperos e macios. Seguem em um jogo de mãos aventureiras e de línguas vorazes que se obrigam a passar por tudo antes de chegar nas famosas fontes, as zonas chamadas perigosas – que nada de perigo têm. Mas evitam ir com tanta sede ao pote. Gostam de saber se o caralho ficará ainda mais duro, se a xota poderá se afogar em si mesma. Sobem e descem um no outro. Da boca para o peito, do peito para a bunda, da bunda para as costas, das costas para a nuca, da nuca para as orelhas, das orelhas para as bochechas e para a boca outra vez. Depois, quem sabe, o pescoço ou direto para o umbigo. O único contágio – se é que se pode ainda usar essa palavra – é dessa excitação borbulhante que vai apressando o caminho, mordendo e beijando, acreditando mesmo que o milagre é algo que podemos forjar e engolir no outro. Caem as lágrimas porque o mundo já foi esse subir e descer nas pessoas e agora parece um ato assim tão raro. Não sabem se choram porque agora notam que sempre deveriam ter feito amor desse jeito ou se choram por desatar esse nó, por finalmente destruir essa solidão muralha que tanto se dedicaram a erguer.

Entre as lágrimas percebem que chorar é um facilitador da intimidade. Sentem pela primeira vez que têm algo em comum, aquele desabamento, aquela chuva. Se apertam, abraçam, acariciam os rostos. O beijo fica longo e lento. As mãos finalmente descem pela barriga até tocar, simultaneamente, a xota e o caralho. Um toque delicado, sem muita força ainda. A mão dele cobre toda a xana, toda sua extensão gigante. Depois abre os lábios com a ponta dos dedos, sente o calor entre as pernas, toca o topo, a cabecinha do clitóris. Com o toque as pernas dela abrem mais. Enquanto ele desliza ali naquele pico, ela molha as palmas das mãos e envolve a cabeça do caralho, girando, afagando e depois subindo e descendo. Descendo até as raízes, até apertar as bolas suavemente. O choro não cessa, só piora. Como um surto, choram mais e mais quanto mais gostoso e lento se tocam. Mas não dura, logo aquela tristeza tesuda se esgota e começam a abrir e fechar as bocas chupando o ar. Chupam todo o ar do corredor até caírem ofegantes no chão. Vai subindo um desespero. As bocas tentam se salvar, uma na outra. O pau cruza as coxas e tenta se salvar na buceta. A buceta tenta se salvar sugando o pau. Não tem ar no mundo suficiente pros dois. Não tem água que possa matar aquela sede. De repente tudo é essa falta. Penetram mais fundo. Grudando cada centímetro, o máximo de aderência possível para sufocar aquele vazio. Então, vem a raiva.

Nada é o bastante, o mundo é só aquele apartamento, o ar vai acabar de todo modo, tudo está acabando, “Por que fazer outra coisa?”. Começam a foder forte, furiosos. Ele mete com força, ela quica e arranha, mordem os lábios até quase sair sangue. A raiva os ergue de pé outra vez. Fodem nas paredes, no chão, na mesa, na cadeira. Se olhassem de fora parecia uma porradaria. Os móveis batendo e arrastando no chão. Derrubam tudo. Transar assim com essa força bruta parece dar vazão pra aquela raiva súbita. E de só comer e dar vorazmente, passam a ter prazer em devastar as coisas enquanto transam. Quebram pratos, viram vasos de planta, arrancam o estofado do sofá. Tornam a soltar gemidos e sorrisos maliciosos. Porém, a raiva dá fome.

Abrem a geladeira. Ela entorna restos de macarrão nos peitos, ele chupa. Ele mela todo o pau com um vidro inteiro de mel e ela lambe. Ele vira um saco de açúcar no cu dela e vai passando a língua até limpar. Ela entorna vinho na boca dele e bebe de golinho em golinho. A lambança apazigua a raiva, mas logo se sentem estufados, sujos, caóticos demais. Tornam a se olhar como dois estranhos, não se reconhecem em nada daquilo. Querem dizer que nunca fariam nada assim, que nunca fizeram coisa parecida. Mas ficam mudos. Se afastam um pouco, ainda estão excitados e isso só torna tudo mais esquisito. Vão silenciosos até o banheiro. É um único banheiro. Dessa vez ela tem coragem de fazer o convite para que ele entre. Apesar da estranheza, uma tentativa. Se reconhecem unicamente pelo mesmo desejo ansioso de lavar fora aquele embaraço. Ele entra com ela no box, têm certa desconfiança. É apertado e úmido. A água cai. Nada particularmente excitante acontece, se lavam com certa indiferença. Não ligam se estão se esbarrando, roçando bundas ou braços. Em um ponto, param e se encaram. Tão desconhecidos e dessemelhantes com os cabelos escorridos para trás, a sujeira descendo para o ralo. Para surpresa de ambos, têm uma crise de riso incontrolável. Gargalham como dois loucos. Riem e riem. Se sentem ridículos assim incansavelmente excitados, ridículos assim por pensar que o outro ofereceria alguma resposta ou alívio para aquela loucura. “Eu pensei que iria te amar”, ela diz entre as risadas. “Eu pensei a mesma coisa”, ele responde. Quase se mijam de tanta graça. As bochechas e o abdômen doem um pouco. Porém retornam a se sentir mais simpaticamente estranhos. Se olham assim com a cara vermelha, com os espasmos do riso, percebem o caralho ainda duro e a xana ainda latejando. Acham engraçado. Se beliscam, pela graça. Se beijam, pela graça. Ele aperta os mamilos dela, ela aperta sua bunda. O riso vai diminuindo, vai se aliviando. Continuam se beijando e se apertando debaixo do chuveiro. Não sabem bem o porquê, mas continuam. Sentem então uma estranha alegria. Fecham os olhos. A água segue caindo. Sentem só os beijos, as mãos, o pau, a buceta, o silêncio, a alegria aumentando, o corpo tremendo, o milagre.

Ilustradora convidada:

Camila Albuquerque

Camila Albuquerque é artista, mulher, LGBT e nordestina. Ela trabalha com diferentes linguagens, especialmente com a Pintura a Óleo e o Grafite, onde aborda temáticas do sagrado feminino, Erotismo e do Folclore. seu trabalho dá um enfoque cada vez maior na Brasilidade, na experiência pessoal que se liga ao universal, através de suas pinturas sob um novo olhar do prazer.

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Julia Limp
Julia Limp
É artista multifacetada. Tem casa no teatro, onde está em formação, mas já trabalha profissionalmente precocemente como atriz e diretora. Tem quintal na música, onde canta, compõe e tem algumas coisas já gravadas e crescendo em direção ao mundo. Mas fez cama na palavra, com quem se deita e tece prosa, cada vez mais perigosa e úmida. É muito surto e muito afeto, trabalha com muito tesão e às vezes com raiva. Pode morder, mas esperamos que só de sacanagem.

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