Antes de tudo é necessário falar o quanto o fenômeno de Bacurau é emocionante. Qualquer análise de virtudes ou ruindades vem depois. Preciso dizer como é gratificante ter a experiência de viver para ver, em tempos de desmonte da Ancine, um filme brasileiro sendo enaltecido, aplaudido, lotando sessões, estando em exibição por mais de um mês em grandes salas de cinema. Pela primeira vez em tempos, não tive que correr pra poder assistir a um longa brasileiro no cinema, porque via de regra ele sairia de cartaz na próxima semana. Enquanto Bacurau fala sobre o imperialismo americano, quem trabalha com cultura conhece diretamente como essa dominação funciona.
É incrível o equilíbrio com o qual o roteiro trabalha a linearidade e segue uma estrutura clássica de narrativa, mas se faz valer de diversos símbolos para ilustrar uma história épica sobre a organização de um povo pela sua sobrevivência. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, com muito primor, assumem o cinema de gênero, perpassando pelo faroeste, pela ficção científica, pela ação e aventura e pelo horror. Com uma estética “cyber sertão”, o período do filme se dá daqui há alguns anos, mas fala de problemas muito presentes nos tempos de hoje.
A oposição ao imperialismo e ao neoliberalismo é apresentada de forma perfeitamente dramatúrgica. Primeiramente, a figura caricata dos norte-americanos com seu tesão por armas e assassinato. Na minha opinião é uma das respostas mais interessantes à Hollywood que, se apropriando da sua linguagem, faz exatamente o que a indústria audiovisual dos Estados Unidos sempre fez: pintar o “inimigo da nação” como um selvagem sem propósito, ou com propósitos desumanos.
ATENÇÃO! ALERTA DE SPOILER
Tamanha é a dominação cultural americana que há quem viva sua realidade brasileira, agindo e pensando tal qual um morador de Manhattan. O que me leva ao segundo ponto: os personagens de Karine Telles e Antonio Saboia. O casal sulista é usado pelo grupo de gringos e, ao servirem o seu propósito, são assassinados pelo grupo. Antes de matar o casal, o grupo explica a eles que são brasileiros e não deixaram de ser, independente de seu fenótipo ou realidade econômica. A alienação da classe média e da classe alta se torna patética a ponto de virar piada nas telas de Bacurau.
Outro personagem fundamental para a trama é o prefeito. Não só é a pessoa que permite que a população seja brutalmente atacada, mas aparece logo no início, em uma cena profundamente representativa, com um caminhão de propaganda política e, em contestação simbólica, a cidade inteira se esconde dentro de casa. É importante frisar que tipicamente, em pequenas cidades do Nordeste, o prefeito eleito vive no litoral do estado e visita o município de vez em nunca, em tempos de eleição. Ainda em Bacurau, o carro do prefeito leva uma prostituta embora à força, o que gera um tumulto e é o único motivador para o povo sair de suas casas: a defesa dos seus. Tratando também, de maneira muito realista, a questão da prostituição. O prefeito recebe um dos finais mais icônicos dentre todos os vilões de Bacurau, porque morrer é muito fácil, o homem termina publicamente humilhado.
O filme é poético até na forma de fazer críticas a um sistema praticamente genocida, que é o neoliberalismo.
Mas a crítica à dominação neoliberal não aparece somente no prefeito vendido. A concentração fundiária é comentada no filme. A seca como instrumento político, igualmente. O abandono do Estado faz com que a organização autônoma da população se dê muito antes de começarem os ataques americanos. Em uma reunião dos cidadãos, a personagem de Sônia Braga, médica da cidade, dá um discurso sobre os remédios que são enviados pelo governo à Bacurau. Remédios de tarja preta sem prescrição médica, bem como a indústria farmacêutica gosta. Ela explica os efeitos colaterais e viciantes do uso desses remédios.
Em contraponto, o personagem de Wilson Rabelo é professor e entende de botânica. Ele cultiva uma semente psicotrópica que é mostrada três vezes no filme: no momento de luto, no momento de morte e no momento de luta. Na primeira vez que aparece, a reação instantânea na minha cabeça foi a de pensar em hóstia, ainda que eu jamais tenha experimentado uma. A imagem de Plínio (Wilson Rabelo), colocando a semente na boca das pessoas me levou para o campo da espiritualidade na hora. Demorei a entender que se tratava de um psicotrópico, mas não deixo de achar, até por não entender como oposto, que há uma alegoria com o sagrado. Tanto existe presença do divino na trama que no final, possivelmente em uma homenagem a cultura nordestina, Lia de Itamaracá surge como uma figura angelical, impedindo o grande antagonista de nos dar um final pouco gratificante.
O tema da morte, não do assassinato, mas da morte, aparece também de maneira tanto literal quanto metafórica. A imagem do caixão se repete algumas vezes no filme: primeiro um caixão sendo atropelado, completamente destroçado, depois o caixão transbordando água em uma viagem alucinógena de Teresa (Bárbara Colen) e no final do filme uma caminhonete carregada de caixões chega na cidade. O filme é poético até na forma de fazer críticas a um sistema praticamente genocida, que é o neoliberalismo. Talvez como uma forma de deslocar a ideia de perda de vidas de um lugar estatístico.
O luto e a temática da morte aparecem logo de início, no enterro da avó de Teresa, a personagem de Lia de Itamaracá. Em uma das cenas mais bonitas de Bacurau, a cidade inteira aparece velando a morte dessa senhora tão importante para todos que vivem ali. É uma sequência quase documental de cenas, que mostram perfeitamente as relações de fraternidade, afeto, carinho e família em cidades do interior, onde todos se conhecem e crescem juntos.
A força do povo também está intensamente presente neste momento, não apenas quando estão lutando juntos em guerra. Inclusive, as escolhas de esconderijos nos momentos de guerra também são minimamente elucidativas. A população se protege e se fortalece, escondida na escola e no museu histórico da cidade. Se não foi proposital, é pelo menos uma coincidência feliz.
Outra escolha marcante é a de Silvero Pereira no papel de Lunga: que espetáculo. Fiquei emocionada demais. Sou suspeita para falar pois virei fã de Silvero desde sua peça de teatro “BR Trans”. Esse homem é um acontecimento. A escolha de uma figura LGBT para atuar como o grande protetor de um povo, o herói da cidade, trazendo simbologias como a de Canudos e do Cangaço, me agrada demais. E é interessante justamente porque o personagem apresenta traços queer, ainda que se trate quase de um bom selvagem. Silvero dá um show de atuação com um personagem que emociona profundamente a todos os espectadores.
Por fim, a gente de Bacurau. Sônia Braga, Udo Kier e Silvero Pereira são figuras renomadas por seu talento, mas o resto do elenco também é excelente e basicamente composto por atores sem selo global ou “não-atores”. O uso de “não-atores”, além de dar muita vida, humanidade e verdade aos personagens, é muito positivo para a produção de cinema, que tem que trabalhar e incluir a cultura local como parte da composição final. É um debate que vem sendo levantado com o surgimento de ficções documentais e até mesmo acerca de restrições ao gênero documentário. Nos créditos, a nomeação de cada pessoa participante de cada equipe. Nunca pensei que fosse me emocionar com créditos na minha vida. Com eles, a mensagem final, mostrando que cinema é arte mas também é emprego e dignidade pras pessoas. Bacurau é ficção, mas certamente é realidade.
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Depois dessa resenha crítica certamente voltarei ao cinema para rever Bacurau com novos e outros olhos!
Uma análise bem esperta e inteligente do filme pontuando aspectos que eu não tinha percebido. Parabéns pelo texto.
Uma análise bem construída e que soma à experiência de assistir a Bacurau. Eu mesmo o vi duas vezes e, com esse texto, percepções antes compartilhadas foram confirmadas e novas entraram para o debate desta obra prima do audiovisual brazuca.
Belíssimo texto. Na forma e no conteúdo. Bravo’