O que defendem os 7 de Chicago?

Reflexões sobre os discursos libertários estadunidenses de 68, representados no último lançamento da Netflix

O recente lançamento da Netflix, “Os 7 de Chicago”, conta a história de um julgamento ocorrido em 1968 após uma grande manifestação na cidade de Chicago que se opunha à Guerra do Vietnã. De perseguição política à violência policial e abuso de autoridade, a obra levanta diferentes debates acerca do sistema judiciário. Além disso, busca também discutir organização coletiva com personagens cativantes e seus diferentes pontos de vista sobre a condução da luta que os move.

O filme se passa quase inteiro dentro de um tribunal — com muitos momentos de flashback que ilustram as histórias contadas na Corte. As personagens que representam as figuras do judiciário são: William Kunstler (Mark Rylance) e Leonard Weinglass (Ben Shenkman) — advogados de defesa —, Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt) — promotor do Estado — e o Juiz Hoffmann (Frank Langella). Ambos os lados do caso têm advogados profundamente determinados e debruçados em suas causas. Ao mesmo tempo que Kunstler e Weinglass se mostram completamente comprometidos com aquilo que acreditam e claramente motivados por um ideal, Richard Schultz não só é um profissional competente, mas também um homem legalista e pragmático. Quanto ao Juiz, não se pode dizer o mesmo.

O embate filosófico entre Abbie e Tom começa logo no início e se perpetua até uma das últimas cenas, ilustrando de maneira muito envolvente um dos maiores problemas que a esquerda organizada sempre enfrentou: as divergências políticas.

A história já começa evidenciando que a perseguição desse caso é antes uma jogada política do que de fato uma condenação justa e cabível ao Estado. O próprio promotor Schultz, quando é indicado para assumir o caso, explica que sob o ponto de vista legal seria praticamente impossível condenar os réus pelas acusações de formação de quadrilha interestadual que o Estado buscava lhes imputar. Porém, devido a uma disputa política interna, o novo departamento da Justiça insiste em perseguir a denúncia. Os réus parecem ter sido escolhidos a dedo em uma tentativa de condenar os líderes de diversos movimentos sociais que se formavam naquele momento. Toda a premissa do filme já é uma crítica direta ao sistema judiciário ou pelo menos à forma como ele opera.

Com o surgimento e desenvolvimento da personagem do Juiz Hoffmann, essa crítica fica ainda mais explícita. Ao longo do julgamento, diversos escândalos são cometidos por parte do juiz conservador, que se mostra determinado a impedir qualquer chance que os réus possam ter para se defender. Desde ajudar a promotoria a remover algumas pessoas simpáticas aos acusados do júri, a impedir o mesmo de ouvir o depoimento de uma testemunha crucial para o caso por não o considerar relevante. Dessa forma, o filme demonstra como é fácil promover uma condenação política dentro de um sistema que se baseia na manutenção dos poderes vigentes e privilégios de classe.

O debate se aprofunda quando toca no racismo que permeia a Justiça americana — e de todo país que passou por um processo de colonização, diga-se de passagem. Logo no início do julgamento, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II), um dos líderes dos Panteras Negras, denuncia que sua inclusão naquele banco de réus foi feita com o único propósito de fazer com que os acusados parecessem mais amedrontadores. Bobby nem sequer participou dos protestos. Durante todo o processo, Bobby teve seu direito a representação jurídica negado. E quando o presidente nacional dos Panteras Negras é assassinado, durante o período do julgamento, ele protesta na Corte e é amordaçado por ordem do juiz. Um homem negro tratado como um animal em um tribunal supostamente democrático.

Bobby Seale levanta questionamentos muito importantes no filme. Não apenas por sua acusação injusta, mas pela motivação de sua luta. Durante o julgamento, faz questão de se diferenciar dos outros réus. Ele não aceita ser representado por Kunstler, não por arrogância ou desdém, mas sim por entender suas motivações como completamente dissociadas daquelas do resto dos acusados. Os direitos pelo qual ele lutava, eram direitos que seus colegas brancos de esquerda já desfrutavam há gerações.

O que leva a uma das principais discussões na obra: as divergências e convergências de pensamento dentro da esquerda organizada. Dentre os principais acusados estão as personagens de Abbie Hoffmann (Sacha Baron Cohen) e Tom Hayden (Eddie Redmayne). Tom é um típico liberal de esquerda que acredita fielmente na possibilidade de transformação através das instituições democráticas. É o único réu que demonstra algum tipo de respeito pelo tribunal, pela autoridade do juiz e pelo processo legal. Enquanto isso, Abbie é um revolucionário da contracultura que não abandona nem por um segundo a importância do pensamento radical e insurgente. Certamente é a personagem com discurso mais imagético e bem construído, sempre com bastante dramaticidade. Quando é posto no palanque para depor, ele cita falas de figuras tradicionais como Abraham Lincoln e Jesus Cristo para corroborar suas ideias.

O embate filosófico entre Abbie e Tom começa logo no início e se perpetua até uma das últimas cenas, ilustrando de maneira muito envolvente um dos maiores problemas que a esquerda organizada sempre enfrentou: as divergências políticas. É claro que para a direita é muito mais fácil: se junta quem é a favor do extermínio. Do lado de cá, cada um tem uma solução e prioridades diferentes para os problemas da sociedade. Estamos todos indignados, rejeitamos todas as formas de exploração humana, mas pensamos de maneiras muito distintas a respeito da superação dessas questões.

Abbie e Tom protagonizam um debate delicado, mas também central para entendermos a luta pelas transformações das estruturas de poder. Tom defende a não-violência que acredita que será ferramenta de destruição da direita nas urnas. Ao mesmo tempo, Abbie argumenta que todas as outras coisas que faltam — fim da guerra, direitos civis, acesso à saúde, educação, segurança, moradia — são prioridade maior do que a eleição de um candidato de esquerda para presidência, e que na luta por essas conquistas, nem sempre é possível se manter pacífico. Um radicaliza o discurso na tentativa de botar em questão cada estrutura desigual de poder vigente na sociedade, enquanto o outro entende que essas estruturas só poderão ser transformadas pela via institucional. Talvez a lição que se deve tirar é que para se fazer política efetiva de mudança é necessário ter os dois.

Infelizmente, a pior parte do filme, para mim, mora na convergência. Há um discurso que se repete durante todo o filme, tanto por parte da direita quanto da própria esquerda, historicamente hegemônico e amplamente reproduzido nos EUA: o do heroísmo de seus soldados. É lógico que a direita se orgulha muito mais dos seus crimes de guerra do que a esquerda, mas o tempo todo o argumento antiguerra da esquerda transborda para o patriotismo. Não se questiona a motivação do governo estadunidense para iniciar e prosseguir essa guerra. Nem sequer se cita o genocídio do povo vietnamita. Seja pela direita ou pela esquerda, o discurso recai sobre americanos que estão sendo mandados para morrer no Vietnã.

A primeira cena do filme mostra de maneira crítica um pronunciamento de Richard Nixon falando sobre o aumento no recrutamento de soldados para sustentar sua guerra. Em uma sequência de imagens, ouvimos diferentes narrações de rádio anunciando o mesmo, cada vez com números maiores. Durante o desenrolar da narrativa, os acusados repetem em diferentes formas de discurso, críticas à tragédia que é terem seus irmãos americanos sendo recrutados para morrer numa guerra impopular.

Além do etnocentrismo que implica esse ponto de vista, o fato de nenhuma das personagens discutir as razões políticas do conflito armado ao qual se manifestavam contra, num contexto global de Guerra Fria, me soa como um certo apagamento histórico. Como se não fosse interessante abordar narrativas de pessoas que efetivamente travaram uma luta contra a Guerra do Vietnã através de um discurso verdadeiramente anticapitalista.

Na última cena, quando os sete são condenados e têm direito a suas considerações finais, Tom lê um documento contendo o nome dos mais de cinco mil soldados americanos mortos em combate desde que o julgamento havia se iniciado. Em respeito, o promotor Schultz se levanta. O que talvez possa indicar que ele pareça um ser humano mais íntegro. Para mim, só mostra que o discurso dos condenados pode ser um pouco mais parecido com o de seus inimigos do que se poderia antecipar.

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Magdalena Vianna
Magdalena Vianna
Magdalena é roteirista, diretora de arte e produtora cultural. Criada nos palcos dos teatros cariocas, é filha de atores e sempre viveu e respirou a cultura do Rio de Janeiro. Apaixonada por todas as formas de arte, hoje aspira criar no meio audiovisual.

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