Mergulho Mineral

Escutar o barro, comer terra e mergulhar na pedra: práticas artísticas contemporâneas que ampliam nossa conexão com o planeta, muito além do cubo branco e da caixa preta

O chamado cubo branco – também conhecido como “galeria de arte” ou “museu”, de paredes imaculadas e condições ideais de luz e temperatura – é tido como o lugar das “belas artes” por excelência. A caixa preta, por outro lado, ou o palco do teatro, é lugar da magia, da luz, do surround sound e da ação encenada. Claro que estou exagerando. Existem muitos outros meios e contextos em que manifestações artísticas podem ser vividas fora das normas clássicas. Porém, comumente comparados a caixas, o museu e o teatro são dois cânones institucionais onde a arte se legitima, bem longe das distrações do mundo real. Exibidos no cubo branco, os objetos ganham um status de culto, em geral pendurados nas paredes ou apoiados em pedestais. A apresentação na caixa preta, por sua vez, é conhecida por “estar em cartaz”, recebendo “espectadores” e concentrando a atenção num ritual com início e fim pré-estabelecidos. Mas felizmente há vida, suor e inspiração bem além dos moldes, das instituições e das convenções. De fato, os significados e as funções da arte sempre mudaram drasticamente ao longo dos séculos e através das culturas. Percebo a arte contemporânea como uma linguagem à parte, um meio que nos provoca, nos ensina, e nos move; toda forma de arte abre uma oportunidade para refletir, debater, aprender e gerar uma certa consciência.

Esse preâmbulo todo foi para introduzir outras formas de se experienciar arte. Formas que na minha opinião são expansivas, pois usam formatos múltiplos, são interdisciplinares. Hoje, como certas questões sociais e ecológicas se fazem urgentes, artistas podem ser peças-chave não só para propor modos de experiência de conexão com o mundo ao nosso redor, mas também para (re)educar o público. Uma delas é uma artista que conheci há dez anos atrás, a estoniana Marit Mihklepp, mestra em ArtScience, depois de ter estudado design têxtil, filosofia e dança. No mestrado ela começou a desenvolver encontros lúdicos e coreografias para objetos do cotidiano. Em pouco tempo, ela abstraiu os objetos e começou sua vivência com pedras, em suas palavras uma “imaginação geológica”. Sim, pedras, esses entes mineirais muito mais velhos que todos nós. De sete anos para cá, Marit compôs caminhadas, tirou som de pedra, convidou o público para mergulhar em rochas, imaginar sua idade, suas memórias, e quantas histórias para contar. Hoje a Marit viaja pelo mundo a visitar rochas, castelos, mausoléus, coletar lendas, entrar em diálogos ainda mais profundos e criar rituais com essas formas minerais que guardam segredos. Em seu site a artista descreve o que faz como “prática de convívio com aqueles menos notados – por muito distantes, muito pequenos, ou muito lentos – em experiências construídas, palestras performativas, perfumes microbianos, peças de vídeo e exercícios de escuta”.

Qualquer um que já tenha presenciado seu trabalho nunca mais esquece seu método da imaginação geológica, e você mesmx começa a expandir as histórias. Essa pedra rolou por muitos quilômetros, se entediou com o exército de Napoleão, abrigou milhares de lesmas; hoje virou um assento no parque etc etc. Se pensarmos na acumulação de fósseis, fungos e outros seres que se encontram dentro de cada formação rochosa, então, as histórias se tornam ainda mais complexas. Com seu jeito lúdico, Marit une ciência, contação de histórias, mitologia, performance, sem nunca se encaixar exatamente em nenhuma dessas disciplinas.

Outro trabalho fascinante é a prática de masharu, artista de origem russa não-binárie – identificando-se com os pronomes elu/delu – que vive em Amsterdã. masharu, que também conheci por meio de Marit, define-se como uma “comedora de terra e amante da terra”. Com um doutorado em matemática, um dia elu decidiu tentar outro caminho e foi estudar fotografia em Amsterdã. Depois participou da prestigiada residência artística da Rijksakademie e, a partir daí, iniciou uma pesquisa sobre hábitos alimentares envolvendo terra – sim, terra, barro, argila, ou até mesmo compostagem – que elu vem descobrindo e compartilhando ao longo dos anos, e muitas viagens ao redor da Terra. Em suas apresentações, que incluem gráficos, conversas e, claro, degustação, a gente aprende sobre diversas culturas que apreciam uma terra, de uma forma bem literal mesmo. Seja por crença, ritual, deficiência mineral ou fantasia, nacos de barro são vendidas em feiras, mercados e mesmo online. masharu já viajou da Holanda para Gana, Zimbábue, Indonésia, Rússia etc., trazendo amostras para que outros terráquios possam provar, se lambuzar e refletir. Em pequenos potes, vidros ou sacolas plásticas, devidamente rotulados com informação da proveniência e o nome da amostra, suas aventuras de degustação dão suporte para conversas que abordam problemas contemporâneos, enquanto que elu se diverte, também comendo e trocando prosa com o público. Seu projeto “Museum of Edible Earth” (Museu da Terra Comestível) reúne uma infinidade de experiências já realizadas e continua a catalogar mais amostras e mais culturas da terra mundo afora.

A última obra que eu quero de trazer para esse bolo, na mesma linha de maravilhamento telúrico é o obra de Gemma Luz Bosch, uma artista sonora holandesa nascida na Espanha, que esculpe flautas de cerâmica. Só que as flautas são de outro mundo. São instrumentos que variam radicalmente de tamanho, assim como de potência sonora. Algumas flautas são feitas para serem sopradas; e outras, são mergulhadas na água, de tal forma que o ar as atravessa em assovios múltiplos, por túneis minúsculos que ela desenhou. Sua prática mistura conhecimento antigo – estudando a ocarina, flauta antiga, encontrada entre os maias, por exemplo, entre outros povos – com uma abordagem lúdica e mais experimental. As ocarinas, que ela também ensina a fazer em oficinas encantadoras, são geralmente flautas arredondadas, com tantos orifícios forem, cujas sonoridade ela vem examinando e acaba de compartilhar na sua tese de mestrado em ArtScience, que acaba de sair do forno. São objetos maravilhosos de se ver, tocar e ouvir. Em um trabalho incrível, instalado num canal de Utrecht, Gemma mergulhou uma de suas flautas gigantes, que mais parece um animal carnudo, submergindo e emergindo da água.

Atualmente ela trabalha numa cama de ar que se enche e esvazia, de acordo com o peso de uma pessoa deitada em cima, enquanto duas flautas sopram à medida que a pressão interior vai diminuindo. Sua obra já é vasta e já encanta multidões.

Muito mais do que representar, ou ilustrar ideias, esses trabalhos são concretos, e nos provocam de forma multisensorial, ou até mesmo visceral. Eles funcionam como convite para sentir, escutar, desacelerar e esticar a nossa capacidade de imaginar. Três práticas bem distintas, mas que nos ensinam a nos conectar com a matéria de forma intuitiva, gerando discussões profundas. Muito além de vivenciar tais obras, tocando, abraçando, escutando, provando e até engolindo, a gente é transformada por elas. Tocar a terra nunca mais será a mesma coisa.

Em tempo, pelo amor de todxs xs deusxs, por favor, Palestina Livre! Esse apocalipse em Gaza tem que acabar. Ninguém aguenta mais tanta violência.

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Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues
Ludmila Rodrigues é carioca, artista plástica, cenógrafa e professora, radicada em Haia, nos Países Baixos. Seu trabalho une a dança à arquitetura, construindo pontes entre os cinco sentidos e a arte, entre a experiência individual e a coletiva. Ludmila também é apaixonada por kung fu e por cinema.

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