Como já foi escrito antes, é possível construir a atmosfera de uma obra audiovisual com apenas elementos simples de roteiro que nos passam a sensação sobre o universo que estamos assistindo. Ainda assim o texto não é o único que pode ajudar a construir isso, já que como se trata de uma série ou um filme, somos submetidos a entender, interpretar e (até mesmo) sentir a história que acompanhamos a partir das imagens que estes produzem.
Claro que, se não houvesse um roteiro, não teríamos imagens a serem produzidas, entretanto, se duas pessoas lerem a mesma história podem acabar a imaginando de forma completamente diferente, e por isso é preciso de uma interpretação e um direcionamento para saber como contá-la. Para fazer isso, é fundamental o trabalho de diferentes áreas da produção, desde o casting, design de produção, figurino e é claro a direção para orquestrar tudo. Porém, nesse texto, vamos nos focar no trabalho da direção de fotografia e o que gira em torno dela para construir tais imagens.
Considerando isso, a série Euphoria (2019-), se destaca por se utilizar de elementos estéticos já considerados comuns para criar uma identidade visual forte que não só dá sua interpretação sobre a história, como também complementa o roteiro para comentar sobre a geração a qual ela retrata.
Esses elementos podem ser divididos da seguinte maneira:
1) Luz e cores:
A leitura de luzes e cores que a série faz é bastante simples. Em ambientes abertos e de dia a série gosta de usar a iluminação natural sem criar muitos contrastes, destacando assim o clima ensolarado de East Highland na Califórnia.
Em ambientes escuros, fechados e em específicos casos abertos, a série sempre procura utilizar a combinação simples de tons de laranja com azul, cores complementares que já são usadas em diversos filmes blockbusters. Algo que é bastante compreensível, visto que é a junção que melhor enfatiza a pele humana, e além disso era uma opção simples para fugir da ideia de fazer uma série muito colorida:
“Precisa ser colorido de uma forma, acredito eu, para que se sinta a elevação. Mas nós não queríamos que fosse como as cores do arco iris, ou pelo menos sem nenhum sistema. Então, na maioria das vezes, nós usamos cores primarias, e eu contei muito com o contraste do laranja com o azul, que é um contraste bastante básico.” – Marcell Rév, diretor de fotografia de quatro episódios e responsável pela criação da estética da série.
Fonte: deadline
Em ambientes abertos e noturnos a direção de fotografia cria névoas que ocupam bastante espaço de cena. Algo que poderia ser facilmente usado para dar um ar fantasmagórico em um filme de terror, mas que nesse caso tenta criar uma aura entorno dos personagens, quase como se estivéssemos em um sonho.
Mesmo não querendo ser “muito colorida” a série dá bastante destaque ao roxo/púrpura, cores que geralmente simbolizam realeza e lealdade e que nesse caso serve para ilustrar justamente momentos de “euforia”, sejam eles de festa ou, no caso de Rue (Zendaya), para representar os efeitos das drogas sobre a sua percepção do entorno.
Já a focagem raramente faz takes com planos diferentes no mesmo foco. Sejam eles distantes ou muito próximos, eles sempre distinguem bem o personagem do ambiente, ressaltando o ponto de vista dele em cena. Se utilizando de um foco bem preciso e sem criar distorções de volume.
Por último a movimentação de câmera é o grande destaque da fotografia da série. É composta de movimentos contínuos, estáveis e de velocidade regular, que geralmente usam gruas e trilhos e dão exuberância para qualquer cena gravada. Ela está tão presente na série que até mesmo em cenas menores com falas de personagens e ações simples, são gravadas com aproximações, distanciamentos, panorâmicas ou até mesmo tracking shots.
Cada movimento desses não tem um propósito próprio. Mesmo que a série esteja cheia de exemplos, na maioria das vezes o único propósito desses movimentos é adicionar fluidez ao plano e ritmo a cena como um todo. E, apesar serem bem executados e se encaixarem bem na cena, boa parte deles nasceu de improvisos feitos no set:
Fonte: deadline
Ainda assim, mesmo não existindo um padrão minimamente planejado sobre a aplicação de cada movimento, vale ressaltar o uso constante da fotografia de chicotes (Whip Pans) que servem de diferentes formas: sejam transições de tempo, transições de espaço ou até mesmo identificar relação entre personagens.
Fonte: deadline
Essas movimentações também tem um papel crucial para a montagem da história. Como foi destacado antes, muitas cenas abrem mão do simplismo e decidem fazer movimentos complexos e ângulos não convencionais para criar uma estética diferenciada. Porém, em alguns casos essas gravações dão liberdade a montagem, permitindo com que ela alinhe a movimentação com o ritmo da trilha original e não original.
Note como a ação dos personagens e o movimento da câmera parecem seguir o ritmo da música.
Fonte: Build Series
Como é de praxe de programas da HBO, sexo é mostrado de forma explícita e sem restrição nenhuma. Porém, ao invés da câmera se utilizar de ângulos que valorizem os corpos dos personagens em cena, e subsequentemente, acabe os sexualizando, todas as cenas de sexo são gravadas de forma a tentar mostrar o sentimento dos personagens em questão e a naturalidade da situação:
Fonte: Vulture
Somando esses movimentos mirabolantes, cenários transformistas, luzes e cores bem marcadas, cada elemento, de uma maneira ou de outra, já foi utilizado à exaustão em outras obras. Mas o interessante de Euphoria é como uma reutilização, reapropriação e revisão dessas ferramentas podem ajudar a criar uma linguagem única para a conversa que a série propõe sobre a juventude.
Fonte: Deadline
Seja você mais jovem ou não, a estética da série tenta emular a emoção que sentíamos quanto ao nosso entorno quando tínhamos a idade de seus protagonistas. Era uma realidade crua como qualquer um pode ver, mas ainda assim afetada pelos sentimentos que temos por ela. Assim a série cria uma maquiagem bela e colorida, sobre a crueza e sinceridade que o roteiro da história conta.
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